Cinco Poemas de Christina Rossetti

Christina Rossetti (1830-1894) é uma escritora que realmente admiro bastante. Foi uma poeta inglesa da era vitoriana, irmã do também poeta e pintor Dante Gabriel Rossetti e, como quase todas as escritoras vitorianas, viveu e morreu solteira. Sua obra, pelo que eu sei, é quase toda inédita no Brasil, exceto pelo poema O Mercado dos Goblins, lançado pela Companhia das Letrinhas em tradução de Stephanie Cerqueira Leite Fernandes. E esse lançamento é o que faz dela uma autora tão interessante, porque o livro, propriamente, não é tão infantil assim: trata-se da história de Laura e sua irmã Lizzie, e goblins mercadores e suas frutas de efeitos narcotizantes, e (sem que seja um spoiler) a solução para o problema envolver uma irmã tocando o corpo da outra. É um livro incrível – que comprei pra minha filha, é claro.

O tom sinistro d’O Mercado é, na verdade, uma constante na obra de Christina, uma autora, como eu disse, vitoriana, isso é, sua escrita começa pautada na estética romântica-gótica, e carrega forte simbolismo. Mais especificamente, Christina foi irmã de Dante Gabriel Rossetti, pintor e poeta que co-fundou a Irmandade Pré-Rafaelista, um grupo de pintores que, buscando inovar a pintura excessivamente formal da Inglaterra de então, propõe a valorização da individualidade do pintor sobre o todo do objeto pintado; em outras palavras, uma pintura que reforça a personalidade do artista mais do que as imagens pintadas em si (e isso foi uma explicação bem simplificada).

Esses pressupostos são notados na poesia de Christina de modo único. Sua poética é marcada pelos simbolismos bíblicos, anglo-saxônicos e greco-romanos – um traço comum da escrita vitoriana. Entretanto, sua voz narrativa é muito mais feminina, ressalta muito mais uma independência feminina, que as mulheres, por exemplo, de um poema de Lord Tennyson, ou de um livro de Charles Dickens. Vale lembrarmos, ainda, que ela foi contemporânea de Mary Wollstonecraft, a principal filósofa do feminismo no século XIX, e Arthur Schopenhauer, o pessimista por excelência, o que pode servir para interpretarmos seus eu-líricos tão irônicos quanto aos seus interlocutores, e tão resignados quanto à mortalidade.

Assim, defendo que sua poesia deve ser buscada hoje, nesse 2018, por carregar imagens e símbolos que representam tanto o que temos vivido. Traduzi cinco poemas (porque não descobri ninguém que o tenha feito antes de mim); tenho ciência das eventuais falhas dessa tradução, mas acredito que, pelo menos num primeiro momento, serão uma boa porta de entrada a essa ótima escritora que foi Christina Rossetti. Os originais seguem também nesta página.

O Aniversário

Meu coração é ave cantora
Com o ninho em um rebento
Meu coração é uma macieira
De galhos curvos de frutos sedentos
Meu coração é nácar das ostras
Como Alcione a navegar
Meu coração muito se alardeia
Porque meu amor vai chegar

Armo um estrado de linho e seda;
Tinjo em veira e roxas colorações;
Entalho damascos e pombos,
E, com centena de olhos, pavões;
Cinzelo uvas de prata e d’ouro
E folhas de flor-de-lis argentas;
Que o aniversário de minha vida
Vem, meu amor se apresenta!

***

Ó rosas p’ro correr pueril
E louros à plena primavera
Mas arranque-me uma vinha
Madura antes de minha era.

Ó violetas nas tumbas púberes,
E loureiros aos juvenis mortos
Dê-me folhas alvas que tomo
Antes de serem remotos.

***

Quando eu morrer, querido
Não entoe tristes cantares
Não plantai rosas a meu crânio
Nem sóbrios ciprestes,
Sejas a grama que cresce
Molhada de chuva e orvalho
E se te curvas, lembres
E se te curvas, esqueces.

Não devo ver sombras
Não devo me molhar
Não devo ouvir o rouxinol
Maculado, que segue o cantar:
E sonhando pela aurora
Nem levantes ou fiques
Com graça, posso lembrar
E com graça, ignorar.

***

Margareth tem um jarro,
E levanta cedo;
Thomas tem um malho,
Logo desperta.
Às vezes cruzando gramados
De orvalho perolado,
Passam dizendo-se agrados
Sob troncos folhados.

***

Inverno: meu segredo

Devo contar meu segredo? Não, de fato;
Um dia, talvez, quem o saberá?
Hoje não: ele congela, assopra, e neva,
É tu, tão curioso: calado!
Queres ouvi-lo? Bem:
Mas é meu segredo, não conto a ninguém.

Ou talvez, enfim, não há nenhum:
Suponha não ter nenhum, entretanto,
Só minha diversão.
Hoje, dia frisante, dia cortante;
Um em que se quer um manto;
Um véu, agasalho ou capa:
Não posso abrir a todo que bata,
E deixar os debuxos soarem em meu recanto;
Vinde a confinar e cercar-me
Vinde assombrar e surrar-me
A beliscar e tosar todos os meus mantos.
Mascaro-me p’ra aquecer: há quem revelesSeu
nariz nas russas neves
Para ser bicado por toda a brisa que corres?
Não irias tu bicar? Agradeço-te pela boa vontade
Credes, mas deves deixar improvada a verdade.

A primavera é expansiva: ainda duvido
Março a poeira se faz montículo
Nem abril e os arco-íris de suas rápidas chuvas,
Nem mesmo maio, cujas floradas
Podem murchar-se, no escuro das geadas.

Talvez em algum dia de verão indolente,
Quando aves apáticas bem menos cantam
E as frutas douradas sazonam tanto
Sem tanto de nuvens ou de céu luminoso
E o vento não estiver nem calmo ou ruidoso,
Meu segredo, talvez, eu comente,
Ou faze adivinhação.

A Birthday

My heart is like a singing bird
Whose nest is in a water’d shoot;
My heart is like an apple-tree
Whose boughs are bent with thickset fruit;
My heart is like a rainbow shell
That paddles in a halcyon sea;
My heart is gladder than all these
Because my love is come to me.

Raise me a dais of silk and down;
Hang it with vair and purple dyes;
Carve it in doves and pomegranates,
And peacocks with a hundred eyes;
Work it in gold and silver grapes,
In leaves and silver fleurs-de-lys;
Because the birthday of my life
Is come, my love is come to me.

***

Margaret has a milking-pail,
And she rises early;
Thomas has a threshing-flail,
And he’s up betimes.
Sometimes crossing through the grass
Where the dew lies pearly,
They say ‘Good morrow’ as they pass
By the leafy limes

***

Winter: My secret

I tell my secret? No indeed, not I;
Perhaps some day, who knows?
But not today; it froze, and blows and snows,
And you’re too curious: fie!
You want to hear it? well:
Only, my secret’s mine, and I won’t tell.

Or, after all, perhaps there’s none:
Suppose there is no secret after all,
But only just my fun.
Today’s a nipping day, a biting day;
In which one wants a shawl,
A veil, a cloak, and other wraps:
I cannot ope to everyone who taps,
And let the draughts come whistling thro’ my hall;
Come bounding and surrounding me,
Come buffeting, astounding me,
Nipping and clipping thro’ my wraps and all.
I wear my mask for warmth: who ever shows
His nose to Russian snows
To be pecked at by every wind that blows?
You would not peck? I thank you for good will,
Believe, but leave the truth untested still.

Spring’s an expansive time: yet I don’t trust
March with its peck of dust,
Nor April with its rainbow-crowned brief showers,
Nor even May, whose flowers
One frost may wither thro’ the sunless hours.

Perhaps some languid summer day,
When drowsy birds sing less and less,
And golden fruit is ripening to excess,
If there’s not too much sun nor too much cloud,
And the warm wind is neither still nor loud,
Perhaps my secret I may say,
Or you may guess.

***

Oh roses for the flush of youth,
And laurel for the perfect prime;
But pluck an ivy branch for me
Grown old before my time.
Oh violets for the grave of youth,
And bay for those dead in their prime;
Give me the withered leaves I chose
Before in the old time.

***

When I am dead, my dearest,
Sing no sad songs for me;
Plant thou no roses at my head,
Nor shady cypress tree:
Be the green grass above me
With showers and dewdrops wet;
And if thou wilt, remember,
And if thou wilt, forget.

I shall not see the shadows,
I shall not feel the rain;
I shall not hear the nightingale
Sing on, as if in pain:
And dreaming through the twilight
That doth not rise nor set,
Haply I may remember,
And haply may forget.

Autor

  • Autor dos livros de poesia Nada (Patuá, 2019) e Hinário Ateu (Urutau, 2020). Já publicou em revistas como Mallarmargens, 7Faces, Zunái e publica com regularidade nas revistas Úrsula e Subversa.

Compartilhe esta postagem:

Um comentário sobre “Cinco Poemas de Christina Rossetti

  1. O poeta pernambucano Manuel Bandeira, um dos grandes nomes da literatura nacional, tem vários poemas traduzidos, e dentre esses, alguns dessa excelente poeta.

Participe da conversa