Deus Ex Machina

A insistente crença do brasileiro numa solução mágica para a política

Dalton Dallagnol não sabia, mas naquela noite estava diante de uma audiência hostil. Ou, pelo menos, mais cética do que imaginava. O procurador da Operação Lava-Jato era o entrevistado da noite no Programa do Jô – por décadas, o talk show de maior prestígio da TV brasileira, mas naquele momento já em franca decadência. Ao perguntar se a plateia acreditava que a Lava-Jato iria mudar o país, recebeu um banho de água fria. Mesmo com o assistente de produção acenando para a plateia participar, poucas mãos se levantaram. Para a alternativa oposta (a Lava-Jato não mudaria o país), o resultado foi o inverso. Dallagnol ficou visivelmente sem graça.

 

Outros públicos, como o das igrejas evangélicas onde Dallagnol palestrou algumas vezes, teriam reagido com muito mais entusiasmo àquela proposição. E talvez ele próprio tenha se imaginado como um dos líderes de uma cruzada messiânica, abençoada, destinada a “limpar o Brasil” e “acabar com a corrupção”, mesmo ao arrepio de princípios éticos, legais ou profissionais, como ficou escancarado nas conversas vazadas anos depois.

A própria República, afinal, nasce de uma cruzada voluntarista. Marechais e generais veteranos da Guerra do Paraguai decidiram apear do trono o velho imperador Pedro II e mudar a constituição e o regime político para “salvar o país”. Dentre as justificativas para a quartelada, o temor de que o monarca fosse sucedido pela filha mulher (numa época em que mulheres não votavam), sob a influência do marido estrangeiro (o francês Gastão de Orléans, o conde d’Eu).  À Proclamação da República em 1889 seguiu-se a “República da Espada”, com as ditaduras militares de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, instabilidade política, revoltas e repressão. Se um marechal podia erguer sua espada e convocar “seu exército” por não estar satisfeito com o estado das coisas, por que o outro não poderia?

A Proclamação da República em charge do jornal argentino El Mosquito

Valores associados à Democracia, tais como Estado de Direito, liberdade de expressão, sufrágio universal e secreto, independência entre os poderes e as instituições e o reconhecimento da primazia do resultado das urnas, demoraram a vingar na República. Novas espadas se ergueriam ao longo do século XX, desacreditando os “malditos políticos” e impondo soluções de fora. O tenentismo surge em 1922 como uma nova modalidade de sublevação militar, desta vez entre oficiais de baixa patente e flertando até com movimentos de inspiração comunista, como a Coluna Prestes. As revoltas tenentistas chegam ao ápice em 1930, com Getúlio Vargas instalado na Presidência em nome de uma “revolução”.

Porém, a partir da fracassada Intentona Comunista de 1935, e sob a influência do próprio governo Vargas e da propaganda integralista, o anticomunismo se torna hegemônico no meio militar, com o fantasma da “ameaça comunista” sempre invocado como justificativa para novas intervenções, em especial no contexto da Guerra Fria. A insubordinação tenentista nunca deixou os quartéis, apenas subiu de patente, com os tenentes de 1922 chegando ao generalato e subindo o tom das ameaças aos governos civis, levando o próprio Vargas ao suicídio (1954) e culminando no Golpe de 1964.

Seria injusto e cômodo, porém, atribuir apenas aos militares a iniciativa e a responsabilidade por todos esses movimentos, revoltas e crises institucionais. A espada é o instrumento, e para cada momento da história em que um general estaciona um tanque em frente a um palácio do governo, existe uma articulação oculta entre poder econômico, classes políticas e grupos de interesse locais e estrangeiros que tornou a situação possível. Não por acaso, a retórica anticomunista das Forças Armadas serviu como uma luva à direita para barrar ou ao menos limitar o campo de atuação da esquerda, historicamente criminalizada como promotora de greves e “badernas”. Os slogans de 1964 guardam muitas semelhanças com a narrativa atual que convoca “intervenção militar” para “acabar com a bandalheira”.

Manifestação de 1964, mas poderia ser de hoje | imagem: CPDOC do Jornal do Brasil

Com a redemocratização nos anos 1980 , a retórica de “salvação nacional” perde o protagonismo. A disputa por soluções para o país, por um breve período, passa para o campo da política institucional, com eleições diretas e abertas – embora o apelo messiânico estivesse sempre presente nas campanhas eleitorais, à esquerda ou à direita. O PT chega à presidência em 2003 com Lula, tido por muitos apoiadores como um “salvador da Pátria“, e se consolida, vencendo quatro eleições presidenciais seguidas. Mas, durante o governo Dilma, a crise econômica, o desemprego crescente e as graves denúncias de corrupção contribuem para corroer o apoio popular ao PT. Desta vez, a solução não vem da espada dos militares, e sim de um herói togado e sua intrépida força-tarefa. Nascia a Operação Lava-Jato: juízes, policiais federais e procuradores do Ministério Público (liderados pelo entusiasmado Dallagnol, do vídeo acima), com indisfarçável apoio da mídia, dispostos a “unir o Brasil” contra a corrupção (bem entendido, contra a corrupção do PT e seus aliados). Quando o juiz Sérgio Moro, celebrado por condenar o ex-presidente Lula à prisão, assume o Ministério da Justiça do recém-eleito Jair Bolsonaro, ainda em 2018, temos a união do messianismo judicial (lavajatismo) com o Messias dos quartéis. Este casamento, porém, teria vida curta, terminando com um ruidoso divórcio na primeira metade do mandato presidencial. A Lava-Jato, como projeto de “mudar o Brasil”, foi rapidamente relegada ao ostracismo. No picadeiro do Planalto, só há espaço para um astro brilhar.

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O bolsonarismo é o último herdeiro (até aqui) desta longa tradição de invocar “mitos” para resolver nossos problemas. Após dois anos e meio de governo, com o país atolado na recessão econômica, desemprego e contando meio milhão de mortes por uma pandemia brutal, sua imagem parece perder força. Segue firme, porém, em algumas regiões e vários segmentos sociais, a veneração em torno do “capitão justo”, do “outsider”, da “última alma honesta de Brasília”, rodando o país em sua motoca para angariar entre as pessoas comuns a força necessária para “vencer o sistema”, sob as bênçãos de pastores neopentecostais.

Bolsonaro em Chapecó (SC)
Bolsonaro discursa em Chapecó (SC), 26/06/2021. Foto: Alan Santos/PR.

O ineditismo do bolsonarismo foi ter chegado ao poder de forma legítima, pelo voto direto, ao contrário dos generais do passado. Mas se o capitão chegou ao poder à paisana, sem recorrer à espada, não está claro se ele não vai sacar o revólver na hora de sair. Diz, com todas as letras, que “só Deus” o tira da Presidência e, dia sim, dia não, conclama “seu exército” para defender o que ele considera ser a “liberdade” dos brasileiros. Também de forma recorrente, alega que somente com fraudes perderia a eleição do próximo ano, para a qual já está em plena campanha antecipada (em especial nas redes sociais, a base de sua campanha vitoriosa em 2018). Atiça, assim, sua base eleitoral, muito forte entre militares, policiais e evangélicos, contra eventual resultado que não lhe seja favorável.

Neste momento de incertezas, não está claro qual será o desfecho do bolsonarismo, ou mesmo se este movimento permanecerá ativo como oposição aos governos que o sucedam. Mas persistirá entre nós este resquício do sebastianismo dos portugueses, a crença na solução que vem de fora, no Leviatã que vai despertar de um longo torpor para corrigir, num passe de mágica, todos os males da política brasileira. Não por meio de uma revolução popular – jamais de baixo para cima! – mas a partir de um vigoroso “Basta!” vindo de alguém em posição de poder: um civil munido de uma caneta Bic ou um militar com uma espada, montado em um reluzente alazão branco. E a este condutor abençoado seguir-se-á uma “ampla mobilização popular”, unida, coesa, mas naturalmente sem margem para muitos questionamentos. Quem tem fé será bem-vindo; quem faz perguntas demais, não.

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