“Eu me Vejo Como Outra Quando Desenho”: Entrevista com Raisa Christina

Nas pinturas de Raisa, há liberdade e resistência: suas imagens representam uma intensidade que extrapola fronteiras e se torna um momento de uma vivência pré-social, uma vida que simplesmente quer ser viva

Raisa Christina
“O desejo me move a criar. Acho que a liberdade se dá quando nos abrimos à experiência, quando escutamos nossas próprias intuições e realizamos aquilo que temos vontade” | imagem: acervo pessoal

Gosto muito da pintura de Raisa Christina, artista e poeta, nascida em 1987 em Quixadá, no Ceará. Gosto, mas não sei bem o porquê. Acredito, porém, que, nesse caso, saber os motivos não tem muita importância mesmo. A arte de Raisa mexe com esferas da gente que nós nem sabíamos que existiam.

Não sei como descobri pinturas da artista. Foi no Instagram? Talvez. Uma divulgação feita pelo cartunista Allan Sieber? Talvez. Fato é: fiquei fascinado. Entrei na página de Raisa e veio um choque de emoções. Fiquei completamente fascinado por suas cores vivas, meio enevoadas, que parecem sair de um sonho. Ela trabalha com formas físicas em transição.

Raisa Christina
“Ao desenhar corpos de mulheres sobre mapas, é como se a presença delas pudesse alterar a geografia da forma como nos foi dada” | imagem: obra de Raisa Christina/acervo pessoal

Em especial, as suas pinturas acerca de mapas e relações afetivas me intrigaram. Vejo ali liberdade e resistência. Raisa está resistindo ao lugar de isolamento dos desejos. Está resistindo à contenção da vida em um espaço fechado. As suas imagens são maiores do que os limites políticos de um território: trata-se de uma representação de uma vida e de uma intensidade que extrapolam as noções de fronteiras e se tornam um momento de uma vivência pré-social, uma vida que simplesmente quer ser viva e não burocratizada.

Raisa Christina
“Desenhar é também um modo de imaginar, fabular, trazer imagens ao pensamento. Desenho muito espontaneamente, porque gosto de olhar as pessoas à minha volta e me deixar encantar por elas” | imagem: Obra de Raisa Christina/acervo pessoal

Entrevistei Raisa Christina e o resultado está abaixo. Fiz sete perguntas só, quando o que queria, de fato, era ter feito muitas mais. No entanto, acredito que essas sete são um bom começo para conhecermos essa artista tão incrível e com uma obra tão maior do que qualquer palavra. Confira!

Raisa, como surgiu a arte visual em sua vida? E a literatura? Onde ambas se encontram?

Desenho desde que me deram lápis. Na verdade, antes disso, porque desenhar é também um modo de imaginar, fabular, trazer imagens ao pensamento. Já as palavras me chegaram primeiro como figuras: os aprendizados da escrita e da leitura aconteceram integrados com a prática do desenho. De certo modo, tanto no desenho como na escrita, trabalha-se com linhas e produção de imaginário. Porém, a matéria da literatura é da ordem dos sons, da narrativa, da qualidade poética das palavras e do modo de combiná-las.

Desenho muito espontaneamente, porque gosto de olhar as pessoas à minha volta e me deixar encantar por elas. Desenhar se trata de uma desculpa para poder observar as pessoas com mais calma. A escrita, por sua vez, ajuda-me a dar alguma espécie de ordem aos pensamentos, de encadear ideias aparentemente vagas. Sinto-me em paz quando escrevo, ainda que o texto depois de escrito não me esclareça muita coisa.

Raisa Christina
“A paixão nos mostra o quanto não temos controle absoluto sobre nós mesmos. A consciência de nossa própria fragilidade nos faz, a meu ver, um pouco mais atentas aos processos de aprendizado” | imagem: Obra de Raisa Christina/acervo pessoal

Noto que, em sua pintura, os mapas surgem como plano de fundo da maior parte de suas telas. Sei que você nasceu em Quixadá, mas mora em Fortaleza. Existe alguma identidade geográfica que foi transformada nessa mudança? E as figuras humanas de suas telas estão passando alguma mudança?

Adoro contemplar mapas. Eles ativam em mim um desejo imenso de inventar os lugares que não conheço. Ao desenhar corpos de mulheres sobre mapas, é como se a presença delas pudesse alterar a geografia da forma como nos foi dada. O sexo da mulher, a solidão, alguns modos de atiçar suas zonas erógenas, as relações de distância, paixão e saudade que ela vai estabelecendo com amantes, tudo isso vai se inscrevendo junto à velha cartografia, propondo uma outra abordagem do espaço.

Li que a miopia é algo marcante na sua família, e, antes de você ver um rosto, você vê um borrão. Nas suas telas, esse “borrão parece ainda persistir nas figuras humanas. Ver e entender a forma humana ainda é um mistério para você? Por quê?

O outro é sempre um mistério. Eu mesma me vejo como outra quando me desenho. Por alguns instantes, sou uma estranha. Não me interesso em entender o outro, mas sigo observando-o, investigando olhares, gestos de mão e boca, volumes de cabelo, modos de caminhar e franzir a testa. É um hábito esse de olhar muito para o outro e perguntar-lhe coisas, tentar saber de suas experiências. Parece com o jogo da paquera e, quando estou na rua, torna-se um exercício recorrente.

Raisa Christina
“O sexo da mulher, a solidão, alguns modos de atiçar suas zonas erógenas, as relações de distância, paixão e saudade, tudo isso vai propondo uma outra abordagem do espaço” | imagem: Obra de Raisa Christina/acervo pessoal

Em algumas de suas pinturas, as mulheres têm uma linha na altura do ombro, igual a uma linha que você tem tatuada. O que essa linha separa e o que ela liga entre você e as telas?

Muitas vezes, essas pinturas consistem em autorretratos, alguns acidentais, mas isso não faz muita diferença. O autorretrato só ganha status de autorretrato quando a autora assim o declara. Acho essa constatação curiosa.

A linha é o osso, a estrutura, a natureza do desenho, mas ela não existe de fato na maioria das vezes. Não se pode tocá-la. É pura abstração. A linha do horizonte, por exemplo, as linhas que conectam as estrelas dentro de uma constelação. Então, essa linha que tenho tatuada em baixo dos ombros me lembra que a matéria do desenho é ficção.

Notei que a nudez e a sexualidade aparecem em muitas de suas telas. Não são, contudo, uma coisa católica de reprodução e idealização machista da arte clássica. Além disso, você fala em “cartografia erótica”. Como que a sexualidade se associa à liberdade? Redescobrir o prazer é refazer alguma identidade?

O desejo me move a criar. Acho que a liberdade se dá quando nos abrimos à experiência, quando escutamos nossas próprias intuições e realizamos aquilo que temos vontade. Cuidar de si e perceber o próprio corpo afetado, mergulhado em um estado de paixão, é transformador. A paixão nos mostra o quanto não temos controle absoluto sobre nós mesmos. A consciência de nossa própria fragilidade nos faz, a meu ver, um pouco mais humildes, mais relaxadas, mais atentas aos processos de aprendizado. O corpo despido de roupas é, antes de tudo, um corpo apenas – em sua dimensão de memória, narrativa, afeto e também erotismo.

Raisa Christina
“Emoções e sensações acontecem no nível físico. O corpo, afeta e se deixa afetar o tempo todo. A questão relevante é o quanto temos afetado e nos deixado afetar pelo outro” | imagem: Obra de Raisa Christina/acervo pessoal

As suas telas têm cores fortes, vivas, algo fauvista e, concomitantemente, onírico. Já em uma das suas crônicas, você retoma Borges e Derrida para falar sobre como o desenho envolve uma tentativa de reconstruir o ausente… As cores da arte são as cores que perdemos na nossa vida “real”? Vivemos um mundo de emoções e sensações monocromáticas?

Nunca pensei assim. Acho que, pelo contrário, há sempre cores demais à nossa volta. O meu trabalho tende a ser superpovoado de manchas e traços coloridos. Emoções e sensações não são coisas desassociadas, recortadas dos contextos; elas acontecem no nível físico, no nosso corpo, porque ele, o corpo, afeta e se deixa afetar o tempo todo. Então, a questão relevante é o quanto temos afetado e nos deixado afetar pelo outro.

Uma pergunta que eu sempre gosto de fazer para encerrar: que escritores você tem lido? Quais são os nomes de que você mais gosta na nossa literatura hoje?

Leio muita coisa ao mesmo tempo, porque tenho o hábito de alternar um texto ensaístico com uma narrativa em prosa e um livro de poesia, por exemplo. Tenho lido a obra de Amós Oz, que me intriga e deleita. Conhecer uma Mulher (1989) foi o último romance que li dele. Venho me encantando com o poeta Charles Simic, que não conhecia. Estou também relendo uma coletânea de poemas da Emily Dickinson, traduzida por Augusto de Campos.

Raisa Christina
“Há sempre cores demais à nossa volta. O meu trabalho tende a ser superpovoado de manchas e traços coloridos” | imagem: Obra de Raisa Christina/acervo pessoal

Autor

  • Autor dos livros de poesia Nada (Patuá, 2019) e Hinário Ateu (Urutau, 2020). Já publicou em revistas como Mallarmargens, 7Faces, Zunái e publica com regularidade nas revistas Úrsula e Subversa.

Compartilhe esta postagem:

Participe da conversa