Michel Amary, os tempos da arte e a alegoria contra o totalitário

Uma pesquisa sobre a proposta de Walter Benjamin de analisar a obra de arte em suas existências histórica e contemporânea

“Gostaria que minha pesquisa fosse uma das portas de entrada para esse modo privilegiado do discurso e do pensar que é a filosofia”, afirma Michel Amary, mestre e bacharel em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), também graduado em publicidade e propaganda pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Conversei com o pesquisador sobre a sua dissertação de mestrado, defendida no fim de 2019: “A formação e a crítica de arte do drama barroco alemão“. Nela, Michel trabalha a obra do filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940): aplica o seu “método crítico-filosófico” de estudo de obras de arte — que, grosso modo, procurava captar o objeto artístico na história da sua formação e em como persiste vivo na atualidade — para estudar concepções do barroco alemão. Além de importante para discutir a tradição filosófica, retornar a essa parcela do pensamento benjaminiano pode trazer, segundo Michel, recursos para pensar a estética, a política, a literatura, a linguagem e a psicologia.

Michel também foi provocado a sugerir práticas a outros que estejam no caminho da pesquisa. Nesse sentido, ele falou das dificuldades do mercado de trabalho em filosofia e na academia em geral — “se preparem para a fila do desemprego, planejem-se para o que fazer depois da pesquisa, ter outras experiências na área ou em outros campos pode ser uma porta para o futuro” —, da solidão, da ansiedade e da depressão que podem afetar os pesquisadores — “cuidem da saúde mental, cultivem as amizades apesar da competição desenfreada do ambiente acadêmico” — e da necessidade de manter, apesar da exigência de “superespecialização”, uma vida cultural mais variada — “façam como um jogador de futebol que em suas férias joga bola e leiam literatura quando tiverem um tempo livre”.

A entrevista segue abaixo — os links nela foram acrescentados pela edição.

Fale sobre a sua pesquisa.

Procurei entender o método crítico-filosófico aplicado à arte que Walter Benjamin desenvolveu em sua tese de habilitação sobre o drama barroco alemão. Esse método não foi nem um pouco intuitivo e é pouco convencional para uma historiografia da arte puramente formalista, com pretensão cientificista, que em sua apreensão do fenômeno artístico acreditava representar em dados factuais a essência do objeto artístico e da sua história, catalogada em períodos específicos e classificados em supostos padrões de qualidade. O método benjaminiano pode ser considerado um pouco mais subjetivista porque, considerando a impossibilidade de experimentar o tempo histórico em que tais objetos foram produzidos, o que lhe interessava era como eles sobrevivem à atualidade.

A sua crítica consistia basicamente em dois movimentos, um de quebra e um de salvação. O primeiro passo era romper com a aparência de conhecimento sobre determinado objeto, passando da análise puramente formal para uma história cultural que percorresse as diversas camadas de constituição da obra — isto é, seu teor material —, todas aquelas fontes que dão um panorama geral da episteme de quando ela foi produzida; no caso do barroco alemão, os manuais de poética, os tratados de política, os ensaios de astrologia, teologia e filosofia do século XVII que se apresentavam como fragmentos desconexos. Já a salvação consistia em um processo de montagem desses fragmentos em relação à interpretação da obra que, também, não estava desconectada do fluxo contínuo do tempo, uma vez que se dava anacronicamente. O teor de verdade da obra aparecia como aquilo que resistiu ao tempo e ao escrutínio dos fenômenos. Nesse processo Benjamin estava profundamente interessado em observar como um fenômeno artístico descolado de seu contexto adquire sobrevida com novas significações no tempo e espaço presente. Nesse sentido o crítico filósofo é mais que um comentador da obra, é também um criador, seu alegorista.

Gosto de pensar que pesquisadores e historiadores da filosofia são guardiões do conhecimento, cuidam para que esse saber não se perca e possa nos iluminar quando requisitado por um tempo que se fecha

O interesse [de Benjamin] no barroco alemão surge da crítica à historiografia positiva e formalista que predominava na Alemanha e, ao mesmo tempo, do resgate do gênero em estudos acadêmicos e manifestações artísticas a partir da Primeira Guerra Mundial, aparecendo, ora como expressão da desolação e sofrimento da guerra, ora pela sua instrumentalização ideológica na formação de um orgulho nacional alemão. O debate que Benjamin propõe não é apenas para fazer justiça a um gênero artístico esquecido e pouco falado, mas sobretudo para compreender seu próprio tempo e, por isso, a parte mais comentada e estudada de seu texto, nesse contexto, é o debate que abriu com o jurista Carl Schmitt sobre a teoria da soberania e o estado de exceção. Na minha pesquisa, busco aplicar o método de Benjamin, buscando comparar as fontes que formaram a concepção a que ele se contrapõe do barroco alemão com a sua própria leitura sobre essa dramaturgia. Nesse sentido busquei entender como os autores da tradição germanista compreenderam o barroco alemão, apresentando as críticas, mas também as apropriações que Benjamin faz desses autores, para constituição de um método próprio e uma interpretação original sobre essa manifestação artístico cultural.

De que modo a sua pesquisa é importante para a área principal em que se inclui? A que outras áreas, mais ou menos distantes, interessa?

Apesar do estudo de Benjamin sobre o barroco alemão ter sido reprovado pelos seus pares em sua época, frustrando os planos do autor de seguir carreira acadêmica, este texto específico marcou um limiar de seu pensamento filosófico para maturidade e posteridade.

Esse método crítico desenvolvido por Benjamin é importante para seus trabalhos futuros sobre a modernidade, muito mais estudados em nosso meio, e também guia uma parte importante da estética contemporânea, aparecendo em autores como Didi-Hubermann, Peter Bürguer, Hal Foster e outros. Ele também é influente no debate político atual trazido por Hannah Arendt, Jacques Derrida, Giorgio Agamben e Judith Butler em torno da violência e da teoria da história e da soberania. No campo da literatura e da linguagem, a teoria da alegoria que se desenvolve [no texto benjaminiano] traz considerações importantes sobre a representação artística e linguística. Para a psicologia há também uma teoria da melancolia que não deixa de ser interessante em sua compreensão histórica. A questão da memória pode ser reivindicada por psicólogos e historiadores, que contam também com uma gama de definições do conceito de história nesse processo de descrição do barroco. Na filosofia os interesses são diversos e acreditam que têm fim em si mesmo, mas para além da massa crítica que deixou tanto no campo da estética como na política, podemos tirar muitas outras lições do estudo do livro do barroco alemão como uma crítica epistemológica ao método científico e a filosofia representativa de Descartes até Kant, como noções de lógica na própria questão da linguagem, na qual vai dialogar com Bertrand Russell e até teológicas-metafísicas que aparecem pela influência de seu amigo Gersom Scholem.

Talvez Benjamin já tivesse previsto no capitalismo uma regressão totalitária. Nessa nova teologia, o que importa é a impressão de neutralidade passada pela frieza com que se interpreta os números e não mais as vidas afetadas e sacrificadas

Tento ressoar todos esses ecos que o texto de Benjamin traz para a história da filosofia, abrindo-o também para realização de estudos futuros, mas acredito que a maior importância que tem a minha pesquisa em particular e em filosofia em geral, seja o resgate cultural da história do pensamento, daquilo que nos formou e nos trouxe até aqui. Gosto de pensar que pesquisadores e historiadores da filosofia são guardiões do conhecimento, cuidam para que esse saber não se perca e possa nos iluminar quando requisitado por um tempo que se fecha. Gostaria que minha pesquisa fosse uma das portas de entrada para esse modo privilegiado do discurso e do pensar que é a filosofia, que ela seja um convite para as pessoas conhecerem o filósofo que eu estudo ou para que, em sua companhia, circulem pela história da filosofia alemã ou despertem para a filosofia em geral e sua valorosa história de pensamentos e contribuições.

No que ela poderia ser atraente para o público em geral – seja pelo todo, seja por partes, seja pelo impacto em um assunto.

Não podemos fugir da urgência de nossos dias para responder essa pergunta. De fato, o barroco alemão parece um tema superespecializado sem pouco contato com nossa realidade. Já na época de Benjamin era assim, [a atriz] Asja Lasci, quando o conheceu, o criticou por isso, reconhecendo depois que não havia compreendido o que estava em jogo para além das preocupações literárias em sua pesquisa. A resposta tanto naquele período como agora é a questão política.

Já foram feitas muitas comparações entre o período weimariano em que a tese foi escrita e a atual ascensão conservadora no mundo, sobretudo, no Brasil. É bom que guardemos as proporções e dimensões do que aconteceu na Alemanha para o que acontece agora, há sinais de preocupação, pastiches e proximidades, mas ainda estamos longe daquela “solução final”. Contudo, se a história funciona como eterno retorno, como Benjamin mostra a partir de Nietzsche, não podemos subestimar esse momento histórico. Em uma de suas teses sobre a história, Benjamin formulou a ideia de um estado de exceção permanente do ponto de vista dos oprimidos, e nos parece que mesmo as experiências democráticas liberais do século XX não puderam encontrar um novo conceito de história que desse conta disso. Não é por menos que as próprias constituições republicanas preservam essa possibilidade legal, cada vez mais requisitada por governos “democráticos” da direita a esquerda. Como um crítico da ideologia técnico-racional e da história em progressão evolutiva, talvez Benjamin já tivesse previsto no próprio desenvolvimento do capitalismo uma regressão totalitária. Para ele, na sociedade de consumo, fetichista, o capitalismo aparece como nova teologia, se naturalizando em rituais cotidianos que nos estranha primeiro enquanto coletividade e segundo de nós mesmos em nossa individualidade. Nessa nova teologia, a racionalidade técnica desenvolveria um papel importante destituindo as decisões de dignidade política, as escolhas não aparecem mais sendo uma questão em disputa, ainda que esteja implicada no olhar sobre as tabelas, o que importa é a impressão de neutralidade passada pela frieza com que se interpreta os números e não mais as vidas afetadas e sacrificadas. O marco civilizatório da modernidade que laicizou o Estado e nos livrava do temperamento tirânico de governantes nos submetendo ao império da Lei, é agora despolitizado pela figura do especialista competente e suas decisões técnicas abertas aos lobbys e ao culto à mercadoria compartilhado por consciências meritocráticas que individualizam o fracasso como culpa. A despolitização do político aponta certamente para o esfacelamento da arena pública da democracia e desconfiança para com a república. Surgida como forma de controle da humanidade sobre o mundo natural, a técnica trai a humanidade. Essa racionalidade técnica-fetichista não aparece apenas como um controle da natureza pelo homem, mas também como instrumentalização do homem pelo homem, que em sua condição natural é passível de ser eliminado. Nesta rua de mão única é que passamos da razão esclarecida para a barbárie.

Leia também:
>> “Como a economia se tornou uma religião“, de John Rapley

Observando a experiência social de sua época, Benjamin vê a impossibilidade de transcendência histórica; a falência das utopias e o declínio da esperança; o silêncio da natureza frente à sua destruição pela técnica e pelo desencantamento do homem que a abandonou enquanto se alienava na espera da próxima guerra; o lawfare em funcionamento que contrapõe o direito à justiça na produção de culpa e de destinos; e a própria ascendência do pensamento capitalista, que hoje se apresenta em sua fase neoliberal, não mais como ideológico, mas como episteme estruturante e organizadora da mentalidade e da vida em sociedade. Acho que tudo isso mantém atualidade no mundo em que vivemos e de certa maneira aparece na minha pesquisa quando falamos sobre a condição política e melancólica do herói barroco. Com a crise de representação democrática que abriu espaço para a emergência dos novos fascismos, torna-se natural que o interesse maior para um público geral seja a interpretação sobre a teoria da soberania e o estado de exceção, que põe em contato o barroco alemão com a República de Weimar. Acredito também que a manipulação da filosofia e da história cultural do ponto de vista ideológico na constituição de um ideário nacional que forjou uma mitologia para o nazismo possa ser de algum interesse para nossa época.

Para você, em particular, por que importa? Como ela se envolve com os seus interesses profissionais, pessoais, políticos? 

Da perspectiva interna à própria pesquisa, o ponto de partida pelo qual me interessei por esse tema foi a questão ética e política dimensionada na teoria da soberania e do estado de exceção. Mas também me detive em questões estéticas, que sempre me foram caras e que ganharam prioridade nessa etapa da pesquisa. A conversa entre estética e política é muito importante para Benjamin e acredito que continua a ser em nossa época, caso contrário não veríamos a centralidade de uma guerra de narrativas em torno do imaginário cultural. O meu maior interesse parte dessa relação, procurando em uma categoria prioritariamente estética, como a alegoria, uma conotação ética. É o que quero desenvolver no doutoramento.

Grosso modo, para Benjamin a alegoria se contrapõe ao símbolo em sua forma de representação pela identificação e constituição temporal: enquanto o símbolo apresenta a perfeita identificação entre significante e significado, a alegoria se constitui historicamente, ressaltando sempre uma quebra na linguagem e um significado escondido. Enquanto o símbolo aponta para aquilo que é, a alegoria aponta para a pluralidade de sentidos de uma mesma representação. No campo político da representação, o símbolo estaria próximo ao totalitarismo, seja permitindo apenas um discurso, seja na imagem simbiótica de identificação de um líder com a massa, com um povo, com uma nação. Já a alegoria sempre ressalta a alteridade, seja no estranhamento e na relação com o diferente e com o outro na representação, que revela não poder ser em si mesma, seja na pluralidade de visões nos mais variados sentidos acumulados pela descontextualização de seu elemento em uma relação espaço-temporal.

Apesar da situação péssima da pesquisa brasileira acredito no nosso trabalho e tenho certeza de que a filosofia tem muito a contribuir para a sociedade por vir. Desde que Sócrates tomou a cicuta tentam cercear e encerrar a filosofia sem sucesso, faz 2000 mil anos que ela sobrevive às investidas totalitárias das mais diversas

De tal modo, a alegoria se posicionaria mais ao lado do imaginário democrático, em sua construção social e expressão institucional. Não é por menos que a alegoria, marginalizada do ponto de vista estético, deu, em um gênero menosprezado pela tradição como o barroco alemão, vazão a vozes esquecidas como minorias religiosas e protagonistas femininos ([o drama] Catharina von Georgia, de Andreas Gryphius, é exemplar nesse sentido), além de ter deixado sua marca nos diversos personagens e grupos de excluídos que povoam também as passagens parisienses de Benjamin. Essas formulações ainda estão imaturas, mas pessoalmente e politicamente acredito que possam dar alguma contribuição para pensarmos a atualidade. Já profissionalmente não sei se o doutorado tem valido grande coisa no Brasil.

Como foi o processo de desenvolvimento da pesquisa? Quais os entraves e quais as descobertas ao longo dele? 

No geral não se precisa de muitas coisas para fazer pesquisa em filosofia, o que não significa que elas não sejam valiosas para o filósofo e para o mundo todo. É necessário bons livros e, principalmente, tempo. [O filósofo] Gerard Lebrun ressaltava a importância da paciência para se atingir um conceito, uma paciência que nem sempre o ritmo produtivista dos rankings e das agências de financiamento tem; o tempo do pensamento não acompanha a ansiedade por resultados. Na filosofia ainda temos alguma sorte porque há um prazo um pouco maior para entregar a dissertação, o que foi fundamental para o amadurecimento da tese. Contudo esse período a mais não é remunerado, ou seja, aí é preciso também de uma boa condição financeira ou se planejar para se fazer uma boa dissertação. Acredito que o financiamento e baixo valor das bolsas de pesquisa se impõe imperativamente como entrave para a pesquisa de qualidade, que exige dedicação exclusiva. As pessoas precisam sobreviver. Já em relação aos livros, nossa biblioteca tem um bom acervo e o acesso se democratizou com plataformas livres de compartilhamento de conteúdo editorial como Library Genesis e de artigos científicos como o Sci-Hub. Muito do material pesquisado só foi possível ser consultado por esses meios.

Já no processo de escrita, acredito que a maior dificuldade que enfrentei foi em relação a disciplina. Escrever exige muita concentração e como nosso trabalho não tem hora e nem lugar definidos, muitas vezes nossa rotina se torna não convencional e por isso é necessário organização e adaptabilidade para escrita. Como, particularmente, eu gosto de escrever, a produção textual não foi efetivamente um problema, mas a necessidade de ter que escrever todos os dias, independente do estado de ânimo, é um pouco desgastante. Há dias que se escreve mais e outros que as palavras não aparecem, o importante é não deixar de escrever, um parágrafo que seja. O exame de qualificação também foi uma etapa importante da pesquisa, porque, por mais que ela estivesse estruturada, os apontamentos da banca deram um novo norte para que ela ganhasse profundidade necessária como fundamento do que quero desenvolver em sequência. No mais, a grande fortuna que tive foi encontrar muitos interlocutores que acrescentaram, no diálogo aberto, em contraposição e complemento, elementos para mudança de rotas e de interesses, como [a professora] Olgária Matos, que, compreensiva e companheira, me ajudou muito a organizar as minhas ideias para que eu pudesse dar-lhes forma, tornando-se mais que orientadora, uma verdadeira amiga.

Você consegue extrair desse processo dicas para outros pesquisadores? Práticas a levar adiante, problemas que se pode prever.

O trabalho de pesquisa em filosofia é fundamentalmente intelectual, muito solitário e na maioria das vezes pouco reconhecido socialmente. A pressão dos prazos que se apertam e se acumulam e as incertezas profissionais assola a todos os pesquisadores. Não é incomum que a combinação desses fatores leve a diagnósticos psicológicos complicados como ansiedade e depressão. Há diversas pesquisas que apontam esses altos índices de doenças psicológicas em pesquisadores de pós-graduação em relação a outras carreiras e grupos sociais, e, mesmo não tendo os números, acredito que a filosofia tenda a contribuir na manutenção desse quadro. Se eu pudesse dar algum conselho, seria para que cuidassem da saúde mental, que cultivassem as amizades apesar da competição desenfreada do ambiente acadêmico; os prazos apertam, mas não precisamos ficar enclausurados reforçando o estereótipo do filósofo excêntrico e isolado na montanha — se permitam viver. As trocas são fundamentais para o desenvolvimento de nossas ideias, estar em sociedade é crucial para não perdemos o chão da realidade, e ócio e momentos de lazer e descontração são importantíssimos para que a cabeça descanse e os pensamentos fluam.

Outra sugestão que daria é participação na vida cultural, o que pode parecer um oxímoro para pesquisadores de filosofia. Contudo, nosso curso tende à especialização extrema e se deixar experimentar por outras visões de mundo é um ótimo remédio para doença do filósofo, aquela que o prende em seu tema de estudo e o faz enxergar o mundo ao seu redor apenas com essa lente. Essa vivência cultural é importante não apenas pela bagagem que amplia nosso campo de visão, mas, sobretudo, porque nos permite encarar de maneira diferente e criar novas relações para nossa própria pesquisa. Nessa mesma chave, reforço: leiam literatura. Como já temos que ler muitos livros e comentários especializados sobre o que estudamos, pode acontecer de a deixarmos de lado. Ao contrário do texto filosófico que, em sua leitura técnica e estrutural, muitas vezes parece não sair do lugar, a literatura traz uma outra relação com o texto, de prazer e movimento e, além de todos os benefícios do que chamei de vivência cultural, ela com certeza te fará escrever melhor. Então, façam como um jogador de futebol que em suas férias joga bola e leiam literatura quando tiverem um tempo livre.

Já no âmbito profissional, se preparem para a fila do desemprego. Quando a pessoa escolhe seguir a carreira acadêmica ela já conhece as pedras no caminho, mas a situação de alguns anos para cá piorou muito com a política anti-iluminista de Estado. Não falo apenas dos cortes orçamentários que preocupam todas as áreas, mas da afronta à liberdade de cátedra e de expressão e à pluralidade de ideias nas universidades, da condenação de fatos científicos que desagradem oficiais do governo e, também, da perseguição ideológica a temas considerados proibidos por uma visão fundamentalista religiosa. Na filosofia vemos o desmonte da carreira de baixo para cima, nas escolas que passam pela censura de projetos como Escola Sem Partido e pelo fim da obrigatoriedade dessa e outras disciplinas de humanidades no ensino médio, assim como pela contratação por “notório saber”, que desincentiva a formação na área e coloca o ensino de filosofia sob a tutela de astrólogos, coachings, religiosos e outros tipos charlatões que se autoproclamem filósofos; na pesquisa temos cada vez menos financiamento e suspeita sobre nossos trabalhos, ao mesmo tempo; temos que publicar em produção industrial, muitas vezes sem ter algo relevante para dizer, para pontuar nos concursos de professor praticamente escassos em universidades públicas. A competitividade se torna insana. No campo privado a situação não é melhor, não só porque as escolas estão fortemente pressionadas pelo clientelismo e pela vigilante censura de movimentos civis conservadores, como também porque as universidades privadas têm preferido mestres a doutores como política de redução de custos. Falam em meritocracia, mas a qualificação está sendo punida. Outras áreas que poderiam nos abraçar, como a cultura e o mercado editorial, também têm sido muito maltratadas nos últimos anos no Brasil seja pela política, seja pela economia. É uma terra arrasada. Além disso, a gente acaba nossa formação com um capital cultural muito grande, mas em uma idade mais avançada e sem muitas experiências profissionais mercadológicas o que dificulta também nossa inserção no mundo do trabalho. O que eu diria para quem está começando agora nessa caso é para se planejarem e prepararem para o que fazer depois, as bolsas são fundamentais e a pesquisa exige muito de nosso tempo, mas se puderem ter outras experiências na área ou em outros campos de trabalho é recomendado que aproveitem, porque pode ser uma porta para o futuro.

O que você pretende fazer agora? Quais seus próximos passos como pesquisador?

O caminho natural seria dar continuidade à pesquisa no doutorado. Apesar da situação péssima da pesquisa brasileira acredito no nosso trabalho e tenho certeza de que a filosofia tem muito a contribuir para a sociedade por vir. Desde que Sócrates tomou a cicuta tentam cercear e encerrar a filosofia sem sucesso, faz 2000 mil anos que ela sobrevive às investidas totalitárias das mais diversas. Nem mesmo a ditadura militar conseguiu matá-la e não vai ser essa onagrocracia que tomou o poder que vai conseguir. Não sei que resposta podemos dar a essas ofensivas, mas devemos continuar, não só porque alguma hora o pêndulo da história muda e essa tortura anti-humanista passa, mas também porque qualquer manifestação de pensamento os ofende.

Em palestra recente, [o filósofo] Paulo Arantes nos lembrou que a resposta da Faculdade de Filosofia durante os anos de chumbo foi exatamente essa, engrossar o caldo cultural e continuar a fazer filosofia com voz ativa, fazer com que as ideias circulem, o que, de certa forma, acabou formando a geração que acabou por assinar a democratização. Ao mesmo tempo nos parece muito difícil ficar indiferentes, apenas pesquisando. O filósofo Günther Anders nos conta, falando sobre a emigração de Benjamin em Paris, que se engana quem pensa que eles tinham tempo de conversar sobre filosofia, porque naquele momento de luta por autopreservação e sobrevivência, acima de tudo era preciso ser antifascista. Acredito que podemos encontrar um meio termo dessas duas experiências da filosofia em tempos sombrios. Não devemos romantizar nosso trabalho como se nada mais importasse enquanto somos testemunhas de perseguições políticas e graves retrocessos civilizacionais: nessa situação ele nos parece menor, contudo, não devemos também abandoná-lo de todo. Talvez para além de transformar o mundo, como inferia Marx, seja também o momento de filósofos darem um passo para trás e voltarem a interpretá-lo, como sugeriu Adorno de frente ao abismo. Entender “isso que tá aí, tá ok?” Devemos continuar a pesquisar, invariavelmente, carregando bandeiras antifascistas.

Autor

Compartilhe esta postagem:

Participe da conversa