A Origem da Superstição

A superstição se põe como ciência — como forma de explicar as coisas do mundo —, e possui defesas contra o que pode pode desmistificá-la. Por tudo isso, é constituinte de uma forma de poder

Ilustração da revista Puck (1871-1918) | imagem: Stuart Rankin

Para o filósofo holandês Baruch Espinoza, na origem da superstição está um entendimento equívoco sobre as coisas do mundo. Os homens ignoram as causas e têm sua compreensão entorpecida por preconceitos – que surgem de tendências humanas comuns e de impressões recebidas da imaginação. Diz ele na Ética (edição de Os Pensadores, 1991, p. 114-5), todos esses prejuízos

(…) dependem de um só, a saber: os homens supõem comumente que todas as coisas da Natureza agem, como eles mesmos, em consideração de um fim, e até chegam a ter por certo que o próprio Deus dirige todas as coisas para determinado fim, pois dizem que Deus fez todas as coisas em consideração do homem, e que criou o homem para que este lhe prestasse culto.

Em outros termos, trata-se do preconceito finalista. O apêndice da primeira parte da Ética identifica duas de suas partes fundamentais: a primeira, que os homens creiam-se dotados de livre-arbítrio, que desconheçam as causas de suas vontades; a segunda, que ajam sempre em vista de um fim e que acreditem que esse modo de agir é análogo nos demais homens, na natureza e em deus. Frente a fatos que causem perplexidade, catástrofes, grandes bonanças – o que questiona é não propriamente o por quê, mas qual o fim pelo qual se deram . A superstição parece ser a sistematização desses prejuízos; é sua forma complexa e mais resistente:

“(…) este prejuízo tornou-se em superstição e lançou profundas raízes nas mentes, dando origem a que cada um aplicasse o máximo esforço no sentido de compreender as causas finais de todas as coisas e de as explicar; mas, conquanto se esforçassem por mostrar que na Natureza nada se produz em vão (isto é, que não seja para proveito humano), parece que não deram a ver mais do que isto: a Natureza e os deuses deliram tal qual os homens.” (Ética, p. 116)

O medo assume aí uma função fundamental: como define o pensador no Tratado Teológico-Político (edição da Martins Fontes, 2003), ele é “a causa que origina, conserva e alimenta a superstição”. De acordo com Rogério Silva Magalhães, no artigo “Imaginação e superstição no Tratado Teológico-Político (Cap. I ao XV)”:

“A insegurança perante as adversidades da vida transforma o homem em um ser vulnerável às superstições. O medo de males futuros ou de não obter os bens materiais que almeja no presente nutre a superstição, levando o homem a se tornar um fervoroso devoto, dando assim origem ao abandono da razão.”

Tanto o temor do perigo quanto a esperança de bonança parecem ser duas faces da mesma moeda: são a expressão do desconhecimento humano sobre as condições futuras. Portanto, o medo – em sentido amplo, com suas duas formas – e a ignorância se fundem e se tornam mais complexas nesse sistema que é a superstição. Sistema, porque se põe, como a ciência, feito uma forma de explicar as coisas do mundo; e, principalmente, porque resistente, com defesas próprias contra eventos que poderiam desmistificá-la:

“Embora a experiência de cada dia protestasse e patenteasse com exemplos sem conta que os eventos benéficos e maléficos atingiam indistintamente indivíduos devotos e ímpios, nem por isso abandonaram o inveterado prejuízo. Foi-lhes mais fácil colocar isso no número das coisas cuja utilidade desconheciam, e assim se conservarem no estado presente e nativo da ignorância, do que destruir toda essa construtura e pensar numa nova. Daqui assentarem por certo os juízos dos deuses ultrapassavam muitíssimo a capacidade humana.” (Ética, p. 116)

Frente aos desacordos da explicação supersticiosa e do mundo, ergue-se a ignorância como uma espécie de princípio epistemológico absoluto: há finalidades que não nos é possível ou cabível conhecer. A superstição está, pois, resguardada no que Espinoza chama de “asilo da ignorância”. Em suma, ela nasce de predisposições naturais do humano, do seu desconhecer e do seu medo, do seu mover-se em prol de fins e da sua esperança; funciona para confortar o homem nesse núcleo em que ele é muito suscetível ao engano. É também nesse ponto que um poder alheio sobre o indivíduo pode ser fundado: um poder teológico-político

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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