A Biopolítica do Coronavírus: O Paradoxo da Herança Foucaultiana na França

O coronavírus | imagem: VCU Capital News Service

texto originalmente publicado pela History of Philosophy of the Life Sciences, traduzido com permissão
por Mathieu Arminjon e Régis Marion-Veyron
tradução por Duanne Ribeiro

Nota do editor:

O texto a seguir aborda o contexto francês, mas a problemática que ele levanta fala de perto sobre o Brasil. O conceito proposto no artigo — fracasso biopolítico —, a ineficácia do Estado na captação de dados sobre a sua população expõe claras semelhanças entre os dois países. Por aqui, não só ao longo de toda a crise da covid-19 (que perdura) não tivemos a nosso dispor informações exatas sobre o desdobramento da doença como o governo se aplicou para dificultar a divulgação e mesmo a feitura desses registros. A cereja do bolo, nesse sentido, é o desmantelamento do censo nacional, suspenso por falta de recursos. Se um governo acha um censo excessivo, dispensável, ainda se trata de biopolítica?

Resumo

Neste short paper nós analisamos alguns aspectos paradoxais do legado foucaultiano na França: (1) ao passo que alguns acadêmicos franceses defendem que a pandemia da covid-19 é um exemplo perfeito do que Foucault chamou de biopolítica, reações populares indicam pelo contrário um fracasso biopolítico da parte do governo; (2) Falhas nesse sentido são a incapacidade do governo de produzir dados bioestatísticos confiáveis, especialmente quanto a desigualdades de saúde no que se refere a covid-19. Perguntamos aqui se o foucaultianismo contribuiu, no passado e no presente, para que houvesse uma certa miopia na França sobre a bioestatística e a sua relação com as desigualdades sociais em saúde. Podemos perguntar se esses dados não permitem dar uma resposta apropriada para a pergunta foucaultiana: Que tipo de governo da vida a pandemia nos está revelando?

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Os acadêmicos franceses1 com frequência afirmaram que a pandemia da covid-19 demonstra uma “biopolítica do coronavírus” (ZARKA, 2020, tradução nossa). A “biopolítica” foucaultiana é a crítica de um modo de governo historicamente situado que emergiu ao mesmo tempo que o estado liberal no século XIX. no governo biopolítico, os cidadãos não são sujeitos legais, mas uma população biológica que deve ser controlada por meios de vigilância epidemiológica (bioestatística) (FOUCAULT, 1997 [1976]). Aparentemente, então, vivemos hoje um “momento foucaultiano” (COT, 2020). Quanto mais se espalha o coronavírus, mais a vigilância populacional se torna visível.

Ainda assim, a ampla reação contra as decisões políticas para lidar com a crise na França contradiz essa leitura: as pessoas acusam o governo de falhar na administração da pandemia e demandam a liberação de estatísticas socioeconômicas de modo a avaliar a extensão desse fracasso biopolítico. Mas faltam os dados bioestatísticos que conectam a mortalidade causada pela covid-19 aos status socioeconômicos (NAIDITCH E LOMBRAIL, 2020). Notavelmente, ao contrário do que se passou em outros lugares, foi só durante a crise que alguns epidemiologistas lamentaram a falta de pesquisa sobre determinantes sociais da saúde na França. Ironicamente, a influência de Foucault nunca é discutida; evidências históricas sugerem que as críticas à biopolítica podem ter impedido a pesquisa ligada aos determinantes sociais da saúde na França.

Este é o paradoxo francês que nós queremos interrogar2 aqui por meio de uma breve exploração de duas hipóteses: (1) a pandemia revela menos uma “biopolítica do coronavírus” do que um fracasso biopolítico e, (2) uma arraigada suspeita foucaultiana sobre as bioestatísticas talvez tenha contribuído – e ainda contribui – para a falta de dados, na França, relativos à vulnerabilidade social a doenças. Em última instância, isso nos leva a refletir sobre as implicações paradoxais de se basear em Foucault no contexto de uma pandemia, especialmente no que se refere a como medir as desigualdades sociais na saúde.

O governo francês foi particularmente critica pelo despreparo e pela lenta reação diante da crise (DELÉAN, 2020). Jornalistas e especialistas realizaram o que chamamos de “biopolítica comparativa”, na medida em que as respostas da Coreia do Sul, de Taiwan, de Portugal e da Alemanha foram elogiadas por terem taxas de mortalidade menores que a França. Os cidadãos franceses foram encorajados a processar o governo por colocar a vida das pessoas em risco mais do que outras nações3.

Sem dúvida, a vigilância e o controle são ameaças potenciais às liberdades civis. Mas, para essas pessoas, a crise revela a inadequação da infraestrutura de saúde na França, debilitada por várias décadas de políticas de austeridade. O sociólogo Bruno Latour recentemente discutiu como a crise põe em questão o atual governo da vida; alguns veem na covid-19 uma oportunidade para imaginar um mundo mais igualitário, enquanto “globalizadores” enxergam nela uma chance ideal “para se livrar do que resta do estado de bem-estar social, da rede de segurança para os mais pobres (…) e, mais cinicamente, para se livrar de todos os supranumerários que oneram o planeta (LATOUR, 2020, tradução dos autores).

Nos anos 1970, Foucault apontou os riscos de um potencial estado autoritário armado com tecnologias epidemiológicas como a bioestatística. Mas, em tempos de crise pandêmica, as pessoas passaram a valorizar os benefícios dessas tecnologias. As palavras de Latour ecoam a acusação popular sem precedentes do fracasso biopolítico do governo. Nesse sentido, a opinião pública parece expressar que a noção de vigilância epidemiológica – entendida como limitadora das liberdades civis – tem menos peso que os seus potenciais nos campos da proteção social e da boa política pública de saúde. As pessoas internalizaram o que os epidemiologistas sociais têm defendido há muitas décadas: sim, a bioestatística pode ser usada como uma tecnologia de controle social, mas também como ferramenta de empoderamento.

Uma das principais contribuições da epidemiologia social foi usar as estatísticas para demonstrar que “quanto mais alta a posição social, melhor a saúde” (MARMOT, 2006, p. 1304). A pandemia atual não é exceção: um dos mais pobres departamentos franceses, o Seine-Saint-Denis, tem uma das mais altas taxas de mortalidade (MARIETTE E PITTY, 2020). De mesma forma, alguns pesquisadores denunciaram a falta de dados públicos disponíveis para analisar a mortalidade da covid-19 em relação com status socioprofissionais e étnico-raciais4.

Os estudos históricos jogam alguma luz sobre esse vácuo na pesquisa francesa no que concerne aos determinantes sociais da saúde. Em 1980, o Black Report [documento sobre desigualdades sociais na saúde publicado pelo governo inglês], baseado nas estatísticas do censo, mostrou que a mortalidade geral caiu entre os anos 1950 e os anos 1970, mas que o desnível entre as classes mais baixas e as mais altas se alargou. Esse relatório foi debatido em nível global, tendo atingido muitos países e causado a produção de muita pesquisa. No mesmo período, na França, um dos poucos artigos sobre o assunto (escrito por um epidemiologista) concluía com uma crítica da epidemiologia social, fazendo referência explícita a Foucault: “No cruzamento entre as ciências da vida e as ciências humanas, a epidemiologia [de fatores sociais] agora parece ser uma das expressões mais completas da influência exercida, desde o fim do século XIX, por um modelo biológico baseado na noção de norma sobre as ciências sociais” (Goldberg, 1982, p. 99, tradução dos autores). Uma mentalidade foucaultiana desacelerou o desenvolvimento, na França, da epidemiologia social e fez com que todo conjunto de dados bioestatísticos socioeconômicos se tornasse suspeito do risco de controle social?

Dito isso, retomemos dois aspectos do paradoxo foucaultiano francês:

(1)

No contexto de um estado de bem-estar social enfraquecido, a crise não parece evidenciar riscos de controle social, mas, em vez disso, as falhas biopolíticas do estado. Isso levanta questões com que a ortodoxia foucaultiana não consegue lidar, mas que são foucaultianas por excelência: em um tempo de pandemia, qual tipo de governo é revelado pelo fracasso biopolítico do estado? É a globalização que nos carrega, como afirma Latour, para uma biopolítica em que a vida não é mais um objeto político, ou em que as vidas daqueles que não podem pagar por cuidados médicos valem menos do que aqueles que podem?

(2)

Essa crise revela uma inexistência de vigilância epidemiológica ligada ao fracasso biopolítico do estado. Ainda mais, nós temos boas razões para sugerir que a predominância do pensamento crítico foucaultiano, de fato, atrofiou consideravelmente uma cultura francesa de pesquisa sobre os determinantes sociais da saúde. Em um período de crise pandêmica, a denúncia foucaultiana dos riscos de controle social pelo uso da bioestatística ainda leva a uma miopia dos pesquisadores franceses quanto às desigualdades sociais em saúde.

Se é assim, isso leva a crer que os pesquisadores franceses – de forma geral, nós, pesquisadores sob influência de Foucault – deveriam questionar mais sobre os resultados paradoxais de defender que a crise exibe uma biopolítica do coronavírus. Ao fazer isso, nós não indiretamente prolongamos a suspeita de vigilância epidemiológica, quando, com efeito, são dados bioestatísticos o que pode nos ajudar a entender com profundidade (e, potencialmente, criticar) o tipo de governo que a pandemia atualmente mostra?

Referências

Black, S. D. (1980). Inequalities in Health: The Black Report. London: Department of Health and Social Security (DHSS).

Cot, A. (2020). Quand Michel Foucault décrivait « l’étatisation du biologique ». Le Monde.fr.

Deléan, M. (2020, March 26). Coronavirus: le pouvoir est visé par plusieurs plaintes en justice. Mediapart.

Foucault, M. (1997[1976]). Il faut défendre la société [É Preciso Defender a Sociedade]. Gallimard, Paris: Cours au Collège de France.

Goldberg, M. (1982). Cet obscur objet de l’épidémiologie. Sciences sociales et santé, 1(1), 55–110.

Latour, B. (2020, March 29). Imaginer les gestes-barrières contre le retour à la production d’avant-crise. AOC media—Analyse Opinion Critique.

Mariette, A., & Pitty, L. (2020, July 6). COVID-19 en Seine-Saint-Denis (1/2) : quand l’épidémie aggrave les inégalités sociales de santé. Métropolitiques.

Marmot, M. G. (2006). Status syndrome: A challenge to medicine. JAMA, 295(11), 1304–1307.

Naiditch, M., & Lombrail, P. (2020, April 30). COVID-19 : « Refuser de prendre en compte les inégalités sociales face à la maladie est suicidaire ». Le Monde.

Simon, P. (1997). La statistique des origines : L’ethnicité et la « race » dans les recensements aux États-Unis, Canada et Grande-Bretagne. Sociétés contemporaines, 26(1), 11–44.

Zarka, Y. C. (2020). Biopolitique du coronavirus. Cités, 82(2), 3–6.

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