Marcio Calafiori: “O jornalismo serve para ajudar as pessoas”

Calafiori fala sobre sua carreira, sobre as suas referências jornalísticas e sobre o que é fazer jornalismo hoje, especialmente em cultura

[entrevista publicada originalmente em 3 de fevereiro de 2015]

Márcio Calafiori exerce o jornalismo desde 1983. Entre outros, trabalhou nos jornais Cidade de Santos, A Tribuna, Diário do Grande ABC Folha de S.Paulo, tendo exercido ao longo da carreira todas as funções jornalísticas. Em 1999, tornou-se professor da Universidade Santa Cecília (Unisanta), em Santos. Do fim de 2007 e ao longo de 2008, Calafiori foi o orientador do trabalho de conclusão de curso que daria origem à Capitu, revista que é antepassada da Úrsula. Esta entrevista — na qual fala sobre sua carreira e sobre as condições atuais do jornalismo brasileiro — é uma homenagem da redação da revista e abre uma série de textos do tipo.

Comente sobre sua trajetória no jornalismo. Quais experiências profissionais te foram mais marcantes?

Desde o início todas as experiências que tive com o jornalismo foram marcantes. Passei por quase todos os cargos em redações: redator, repórter, editor, secretário de redação, chefe de reportagem e ombudsman. Comecei a exercer a profissão durante o primeiro ano do curso, em 1983. Foi assim: o Rubens Ewald Filho esteve na Faculdade de Comunicação de Santos (Facos) a fim de falar sobre o cinema e a função do crítico. Um colega de curso, o Fausto Siqueira, ficou empolgado com a palestra e me propôs: “Vamos fazer uma revista de cinema?” No dia seguinte nos reunimos na casa dele e bolamos uma revistinha que passou a se chamar De Olho Na Tela. Vendíamos a revista nas portas de cinemas [leia uma entrevista com Maurice Legeard publicada em De Olho na Tela]. A publicação foi encerrada em 1984, quando consegui um bom estágio na Carbocloro S/A Indústrias Químicas, em Cubatão. Fui contratado para fazer o jornal dirigido aos funcionários, O Clorim. A partir de janeiro de 1986, passei sucessivamente por três periódicos: S. Vicente JornalCidade de Santos A Tribuna. Em janeiro de 1987, fui contratado como redator na assessoria de imprensa do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, onde trabalhei por mais de dois anos. Cheguei lá no auge de um fenômeno que ficou conhecido como “sindicalismo de resultados”, cuja expressão fora magnetizada por Luiz Antonio de Medeiros, presidente dos metalúrgicos paulistanos que sucedera Joaquim dos Santos Andrade, o Joaquinzão. Medeiros era uma celebridade, capa frequente de jornais e revistas e assunto quase diário das tevês e das rádios. Jornalistas do mundo inteiro vinham entrevistá-lo. Foi aí que tive a chance de conhecer os bastidores da grande imprensa, do jornalismo formador de opinião. Repórteres importantes queriam um encontro com Medeiros. Assim, tive a oportunidade de me relacionar com profissionais que eu só conhecia de nome, gente aclamada no curso de jornalismo. De certo modo isso foi decepcionante, pois além da mitologia acadêmica não havia glamour nenhum em lidar com jornalistas, famosos ou não. A literatura desservia a vida real.

No início de 1989, eu me sentia frustrado como profissional. Queria ser repórter e não passava de redator. Em fevereiro, por intermédio de um amigo, Dinilson Vieira Filho, ingressei como repórter no Diário do Grande ABC, em Santo André. Considero esta a minha experiência essencial, o antes e o depois. Foi nesse jornal que aprendi a ser repórter de verdade, que aprendi a identificar o que é notícia, o que é uma boa história. Devo isso ao saudoso Rafael Guelta [falecido em 3 de janeiro deste ano]. Ele foi um dos mais talentosos e mais eficientes profissionais que conheci, editor ferrenho e criativo. Quando comecei lá o Diário do Grande ABC passava por mudanças significativas. Alexandre Polesi, filho de um dos donos, era o diretor de redação. O seu objetivo era fazer diferença, transformar o jornal num dos principais do estado de São Paulo. O Diário tinha uma equipe excelente de profissionais. Na sequência, passei pelo Caderno ABCD da Folha de S.PauloDiário Popular (São Paulo) e Diário do Povo (Campinas). Encerrei a carreira no jornalismo diário como chefe de reportagem da regional do Diário Popular (Campinas). Em fevereiro de 1999, fui contratado como professor de jornalismo pela Universidade Santa Cecília, onde me aposentei em novembro de 2012. Ser professor foi uma das experiências mais fundamentais que tive. Os conhecidos que sabem disso até hoje me chamam de “professor”. O que quero dizer com isso? Simples, que o brasileiro conhece o valor da educação. Os políticos é que não ligam pra isso.

O que te formou na profissão, te fez o jornalista que é?

Primeiro de tudo foi o simples fato de ter conseguido entrar na faculdade. Eu sempre quis ser jornalista — não sei bem de onde tirei essa ideia — , já tinha prestado três vestibulares e não conseguira passar. É claro que jamais eu tinha me empenhado. Até que num fim de tarde de dezembro de 1982, conversando com um amigo, ele me convenceu de que eu estava ficando definitivamente para trás. São dessas coisas mágicas que acontecem na vida: no instante seguinte me flagrei levando pra casa um monte de apostilas com as quais esse amigo tinha estudado, no ano anterior, para prestar o vestibular de história na PUC-SP [Pontifícia Universidade Católica de São Paulo]. No dia seguinte, faltando um mês para o vestibular da Faculdade de Comunicação de Santos, me pus a estudar doze horas por dia, sozinho. Pela primeira vez na vida estava decidido a ir em frente. Passei no vestibular de jornalismo em décimo terceiro lugar. Já estava com mais de vinte e cinco anos de idade. Agarrei essa oportunidade como um náufrago se agarra em alto-mar a um pedaço de tábua. Quando entrei na faculdade, as minhas referências eram o cinema, a literatura e o Paulo Francis. Mais referências: a leitura frequente do Jornal do Brasil, Truman Capote e seus dois livros mais sensacionais: A Sangue-Frio Música para Camaleões. A Sangue Frio me fez aprofundar mais o questionamento nas reportagens; de Música para Camaleões peguei como modelo a entrevista que Capote fez com Robert Beausoleil, um dos assassinos da atriz Sharon Tate, ligado a Charles Manson. Bem mais tarde, anos depois de formado, Gay Talese foi e ainda é uma grande referência. Na literatura, a minha leitura constante é Isaac Bashevis Singer.

O que pensa do jornalismo brasileiro de hoje? Quais os seus problemas e suas possibilidades?

Na média, se faz um bom jornalismo no Brasil. Só que hoje é preciso saber diferenciar as coisas e separá-las. Um pouco de história: a partir de meados dos anos 1950, os grandes jornais começaram a se preocupar cada vez mais com a questão da ética e a velha imprensa baseada em histórias e no discurso político quase desapareceu. Assim, os jornais adotaram um novo padrão de relacionamento com o público. Aqui, os anos 1960 e 1970 marcam definitivamente o amadurecimento e a modernização da imprensa e da reportagem. Nesse período de ouro, as redações são dirigidas por grandes jornalistas e surge uma nova safra de repórteres compromissada com os ideais da profissão e com a qualidade do noticiário que chega ao leitor. (A obrigatoriedade do diploma de jornalismo para o exercício da profissão tem a ver com o desenvolvimento da ética. E nem é preciso lembrar a postura fundamental dos jornalistas na luta pela volta à democracia, não obstante o fato de boa parte da imprensa ter aderido ao golpe de 1964). As décadas de 1960/1970 foram tão essenciais que nunca mais o mercado editorial brasileiro conseguiu superá-las em termos de importância e de qualidade. Paulo Francis escreveu que a transmissão espetacular da chegada do homem à Lua — evento que apareceu nas televisões do mundo todo — mataria a reportagem impressa. Acertou na mosca. A partir de 1970, com a hegemonia da Rede Globo, em pouco tempo aqui a imprensa escrita foi sendo superada. É nesse contexto que a Folha de S.Paulo promove a sua grande reforma editorial, que investirá no poder do marketing em detrimento da redação. Importado do USA Today, o modelo Folha, entre outros procedimentos, prescreve o texto direto e curto, pois na sua visão o leitor do fim do século 20 quer sair do banheiro bem informado, sem mais delongas. É claro que esse modelo de fazer jornalismo veio aliado com os cortes no orçamento que foram reduzindo mais e mais a relevância da reportagem. Surge então um novo exemplar de repórter — o cara que em vez de ir pra rua fica na redação fazendo três ou quatro matérias por telefone. O significado disso: acomodamento. Ao longo dos anos 1980/1990, todas as redações, importantes ou não, recorreram ao telefone e reduziram a sua frota de carros e de motoristas, de transporte e de viagens, e até o mesmo, em vários casos, obstruíram o uso do próprio telefone. Tudo isso, é claro, resultou na falsificação do conceito de jornalismo. Enquanto a Folha se fortaleceu, alguns jornais desapareceram e no seu lugar surgiram tabloides populares de textos curtos e manchetes chamativas. Em razão do preço baixo, o formato é um sucesso. Mas aí é que está: não se pode confundir esse tipo de jornalismo de consumo rápido com o jornalismo que forma opinião, que é credenciado. Aqui, quando se critica a imprensa, se põe tudo no mesmo saco. No entanto, é preciso verificar que o mercado editorial oferece hoje uma gama de jornais e revistas — produtos — que tentam se conectar com as várias camadas da população. O mesmo fenômeno ocorre também com o jornalismo digital e a televisão aberta e a cabo. Particularmente, acho que os grandes jornais impressos que sobreviveram ainda vão continuar por muitos anos. Por enquanto, mesmo com todas as mudanças operadas pelas novas tecnologias, é importante notar que o público ainda busca referências. As denúncias vindas dos grandes jornais ainda impõem respeito, como se a população fizesse questão desse certificado de autenticidade. O mesmo já não ocorre quando uma revista como a Veja faz denúncias. O público lê, mas tende a relativizar: “Ah, é denúncia da Veja. Veja é contra o governo.” Um aspecto que considero importante, e o leitor deve tomar cuidado, é que a grande imprensa aqui não declara de qual lado político está. A revista Carta Capital tem feito isso. Hoje, o jornalismo de opinião tem cada vez mais peso na imprensa. O problema é que são sempre os mesmos a opinar: no jornal, na tevê, na internet, no rádio, no celular. Jamais a opinião de quem quer que seja vai superar o impacto de uma boa reportagem.

Mais especificamente: e quanto ao jornalismo cultural brasileiro?

Com o enxugamento das redações e a redução do espaço nos jornais, o jornalismo cultural perdeu muito. O que se diz é que hoje o leitor quer textos curtos. Foi a Folha quem começou com esse papo e parece que acertou em cheio. O modelo de agora, em qualquer mídia escrita, é o texto enxuto, seco, direto, cada vez mais fracionado e lincado. Ora, o jornalismo cultural é o oposto disso. Lembro muito bem de que em 1975 ou 1976 o Jornal da Tarde trouxe uma reportagem de página inteira sobre dois filmes importantes: o relançamento em cópia restaurada de A Doce Vida, de Federico Fellini, e O Passageiro, Profissão Repórter, de Michelangelo Antonioni. Uma página imensa de jornal falando sobre esses filmes, mas não apenas isso: ambos os textos eram verdadeiros ensaios sobre as obras de Fellini e de Antonioni. Empolgante. Quando li essa página primorosa eu ainda não tinha ainda dezoito anos. Acabei de lê-la e quase na mesma hora me mandei pra São Paulo pra ver A Doce Vida O Passageiro. O jornalismo cultural brasileiro formava o leitor. Se escrevia e se discutia de tudo em páginas e mais páginas, em cadernos e mais cadernos, das artes plásticas à arquitetura, do cinema à literatura à música e ao teatro. Os jornais eram frequentados por grandes pensadores culturais. Fazia-se reportagem de cultura. Havia a polêmica. Tudo isso ficou no passado. O jornalismo cultural virou resenha, cujo tamanho de texto está adaptado à atualidade, segundo dizem. Não concordo com isso. Hoje em dia o número de espectadores que um filme teve é mais importante que a discussão da obra!

O que é jornalismo para você?

Certa vez, quando eu trabalhava no Diário do Grande ABC, em Santo André, eu estava fazendo o plantão dos bairros. Como funcionava isso? A gente pegava a lista telefônica, escolhia uma cidade, um assinante da lista e discava. Quando o assinante atendia, a gente se identificava e perguntava se por acaso no bairro em que a pessoa morava havia algum problema. Fazíamos isso com todas as cidades do ABC. Pegávamos detalhes e o fotógrafo ia ao local fotografar o problema. Às vezes, determinada reclamação virava manchete do jornal, com o devido aprofundamento, claro. Bem, estou fazendo o plantão dos bairros e o telefone ao meu lado toca. Atendo. É uma mulher. Ela pergunta se está falando com um repórter. Respondo que sim. Ela é moradora de Santo André e tem uma reclamação grave a fazer: a filha dela, de cinco anos, foi expulsa da escola. Por quê? Porque numa reunião de pais e mestres a mulher ousou reclamar do aumento da mensalidade. No dia seguinte, quando ela foi levar a filha à escola, não deixaram a menina entrar. Fiquei indignado com aquilo. Falei com o meu editor, o saudoso Rafael Guelta, e fui fazer a matéria. Todos os dias, desde que fora expulsa, a menina se vestia para ir à escola, que tinha convênio com a Prefeitura de Santo André. Que história! Isso foi em 1989. O prefeito era o Celso Daniel. Ao tomar conhecimento do caso, a prefeitura cessou o convênio com a tal escola e imediatamente pôs a garota que fora expulsa em outro colégio. A mãe da menina me agradeceu muito. Hoje, essa garota deve estar com trinta e um anos. Provavelmente, se deu tudo certo, deve estar formada e tem um bom emprego. Tomara que sim. O que é o jornalismo para mim? O jornalismo serve para ajudar as pessoas.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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