Na primeira série

Todas aquelas sensações misturadas me fizeram entender como o tempo passa

“A imensa copa da árvore foi arborizando as lembranças, organizando-as desde as raízes, dentro de minha cabeça” | imagem: Márcio Vinícius Pinheiro

Esta é uma crônica selecionada pela Úrsula a partir da dissertação de mestrado “Narrar a experiência da escola: um ensaio poético filosófico à luz da teoria da experiência e da narração de Walter Benjamin”. Leia todos os textos seletos.


O quintal tem sido uma janela para as lembranças. Sempre que me recosto ao muro baixo, fico na expectativa de que o esquecido vá se abrir como as nuvens de um dia muito nublado e tornar as lâminas do Sol mais visíveis do que se fosse um dia de céu azul. A vista para a cidade de Carapicuíba é longínqua, graças à posição da minha modesta casa, que do alto me oferece uma visão por si nada modesta. Enxergo quilômetros até o horizonte, coisa rara nas grandes cidades. Mas hoje, não me chamaram a atenção os passarinhos, nem vi meninas com suas mochilas. Pesquisei com meu olhar a velha cidade de Carapicuíba, aquela em que morei por apenas um ano, justo o ano da minha primeira série na escola. Avistei uma grande árvore, foi então que localizei a cobertura daquele típico prédio de escola estadual, uma construção térrea, contudo. E a imensa copa da árvore foi arborizando as lembranças, organizando-as desde as raízes, dentro de minha cabeça.

Foi ali que me encontrei com a minha primeira professora, Berenice, pois as professoras da pré-escola não tinham esse ar para mim, elas me pareciam mais mulheres adultas, altas, tão altas que não fui capaz de guardar suas fisionomias. De Berenice, porém, me lembro bem, sua pele escura, seu batom vermelho, seus cabelos curtíssimos, seus brincos dourados, suas roupas quase sempre amarelas ou vermelhas.

Uma tristeza foi o dia em que ela insistiu para que eu fizesse o trabalho de lembrancinha do dia dos pais, mesmo eu explicando que eu não tinha mais pai, e ela argumentava dizendo para eu escolher um homem da família para homenagear. A lembrancinha era a pintura de um rosto masculino, e encaixado à altura do bigode ia um aparelho descartável de barbear, daquelas antigas e básicas giletes no suporte de plástico amarelo. Em alguma outra parte dessa composição, que já não me lembro, encaixava-se um par de meias de traje social. Pintei e armei a lembrancinha contrariada. Dei todo o arranjo para o meu irmão. Ele disse, “obrigado”. Mas meu irmão ainda nem tinha barba ou bigode para se barbear, tampouco usava meia social. Talvez ele as tenha usado para coar o material do cerol em suas aventuras de pipa.

Berenice, ainda assim, era doce, e outro dia, a lembrança de agora é boa, pois eu fui até a mesa dela, mesmo me sentando no fundo, mas tive coragem de atravessar toda a sala, vencendo a vergonha, só para contar para ela que eu estava com dor de cabeça. A turma estava muito agitada naquele dia. Na minha ideia de contar para a professora, não me ocorreu que ela faria aquilo em seguida. Acho que só fui contar como criança que conta pra mãe onde está doendo. Mas ela, então, acariciando minhas costas, eu naquela camisetinha branquíssima de algodão gostoso de pegar, que minha mãe sempre lavou muito bem, anunciou então a professora para toda a turma: “Pessoal, menos barulho, vamos agora todos falar bem baixinho, que a nossa coleguinha está com dor de cabeça”. Ela me liberou da lição, dizendo para eu repousar a cabeça sobre a carteira. Coisa que aprendi. Mas é curiosa essa lembrança, pois naquele mesmo ano em Carapicuíba, lembro também de conversas aleatórias entre brincadeiras nos arredores de casa com minha amiguinha, e de uma tarde em que eu lhe perguntei, “Como será que é ter dor de cabeça?”, pois eu não sabia. Sempre escutava os adultos da família, especialmente minha mãe, reclamarem de dor de cabeça, e via sempre à mão aqueles comprimidos marrons em embalagem amarela. Por isso, duvido de que aquela dor, durante aula, era uma verdadeira dor de cabeça. Talvez eu quisesse aprender o que era aquilo que tanto incomodava o clima em casa. E aprendi, algo aprendi. Pois, hoje, sempre que vem até mim um aluno ou aluna reclamar que a cabeça está doendo, e isso não é raro, logo me lembro da professora Berenice, e faço o mesmo gesto.

Teve uma tarde de aula, então, que foi completamente diferente. Logo após desmancharmos todos as filas, feitas por classe, para cantar o hino nacional, que já tinha acabado, a senhorinha de avental azul, que sempre estava por perto na hora do recreio, e que só muito depois fui aprender que ela era a inspetora, veio dizer, “A professora Berenice não vem hoje, vocês vão se dividir nas outras turmas da primeira série.” De primeira, fiquei muito assustada. Eu era muito assustada no geral, a escola me parecia gigantesca, e desde que tive o azar de, no primeiríssimo dia de aula, um garotão da quarta série ter vindo por trás de mim e me agarrado pelo pescoço, assim, de graça, e depois saiu dando risada junto aos seus amigos, fui entendendo que, apesar da minha sempre grande alegria em estudar, a escola parecia também lugar perigoso. A angústia com a ausência da professora Berenice naquela tarde, contudo, logo se dissipou, pois, fui parar sentada nas últimas carteiras da outra turma, e nem me lembro do rosto da professora lá na frente, mas lembro direitinho que naquela única tarde de aula aprendi a ver as horas no relógio, e o desenho na lousa redondo, colorido, com ponteiros e tudo mais, competiu tão fortemente com a imagem da professora, que foi ele que me ficou guardado na lembrança. Certamente a interação da professora foi imprescindível para que eu aprendesse olhando aquela imagem no quadro e copiando no caderno de brochura e capa vermelha, sua voz explicava, mas o que ficou foi a experiência, não a explicação. Pois como eu poderia me esquecer de uma tarde atípica, sem a minha professora querida? E mais… agora foi a sorte que me assaltou, pois acabei caindo, na redistribuição dos alunos da professora Berenice, na turma do Natã, que era meu vizinho, e eu era apaixonada por ele. Então, a imagem dele, sentado mais a frente, na direção da minha vista para a lousa, também competia com o relógio no quadro. E todas essas sensações misturadas me fizeram entender rapidinho como o tempo passa, e como também o relógio conta isso pra gente.

Chegando ao fim desse novelo de memórias da primeira série, e deixando de lado o beijinho que eu e minha amiguinha experimentamos uma na outra, só para ver como era, escondidas no banheiro, o que certamente me agrada muito lembrar é dos dias de inverno, pois então o uniforme estava dispensado e podia ser outra roupa quentinha, desde que fosse azul-marinho. Daí, minha irmã mais velha que conhecia uma costureira boa, encomendou um conjunto de calça e agasalho de lã, e tinha também um par de luvas e um gorrinho que eu amava, amava demais, ficava bonitinho na minha cabeça, com aquelas cordinhas penduradas abaixo das orelhas, escondia o volume do meu cabelo que, muito curto, armava, mas era curto para não pegar piolhos. Sinto saudade imensa daquele conjunto todo para os dias frios, e nem reclamava do tempo, se chovia, se enlameava a ladeira por onde tínhamos de passar a caminho da escola, pois eu amava a minha primeira escola.

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