Sofrimento sem Desespero

A decadência física e mental exposta por Doris Lessing

Na longa carreira da inglesa Doris Lessing (1919) nunca deixou de haver surpresas: uma escritora de linha realista, autora inclusive de uma pentalogia autobiográfica em forma de ficção — Filhos da Violência — ela experimentou outros caminhos inesperados, como a ficção científica (nova pentalogia, Canopus em Argos: Arquivos e também romances e contos isolados) e, na década de 1980, já consagrada, escondeu-se sob um pseudônimo para verificar como tratariam a sua ficção madura com vestimenta de estreante. Daí nasceu O Diário de uma Boa Vizinha.

Escrito sob o nome de Jane Somers, narrado na primeira pessoa, o romance é muito simples: trata de uma figura feminina, Janna (a protagonista narradora) recém-viúva, trabalhando na redação de uma revista sofisticada, que por acaso faz amizade com Maudie, uma mulher idosa que vive sozinha. Apesar do temperamento difícil da anciã, Janna se sente atraída para ela. Passa a visitá-la, cuidar de sua casa, roupas, e fazer-lhe companhia. As outras idosas que fazem parte do mundo de Maudie (um mundo que Janna vai descobrindo) perguntam à mulher mais nova se esta é uma “boa vizinha” — uma daquelas senhoras que cuida de idosos em regime voluntário. Janna nega-o. Contudo, esse mundo que sempre exisitiu e que ela desconhecia passa a integrar o seu mundo.

Doris Lessing não assume nenhum rebuscamento para contar essa história da ligação entre uma mulher bem sucedida de 50 anos, cosmopolita, e uma idosa freqüentemente desagradável, solitária e que dá a impressão de não querer lutar com esse espectro — a velhice — que já se acercou dela. No mesmo estilo realista que marca sua ficção, a autora não poupa nada: doença, degeneração física e mental, o descaso por si mesma que Maudie aparenta — a sujeira do apartamento em que mora, porque já não agüenta limpá-lo; o mau humor; a agressividade explícita que a solidão e a carência afetiva só tornam mais patética.

E Janna? Janna, como esperávamos (nenhuma surpresa nisso) cresce. O relacionamento inusitado com essa mulher mais velha tantas vezes (mas nem sempre) descontente abre seus olhos. Janna aprende a se importar, abre-se para isso. Assim como a escritora apresenta as narrativas de Maudie quando conta a Janna suas infância e juventude, seu passado, os empregos que teve, também somos testemunhas dos insights de Janna a respeito de si mesma; da pessoa que ela era e da pessoa que está começando a ser.

Há momentos em que a leitura de O Diário de uma Boa Vizinha torna-se dolorosa. A decadência física e mental nunca é espetáculo fácil, porque nos põe outra vez de frente com nossa fragilidade; nossa mortalidade. Nada nos protege da doença e do sofrimento, ainda que, por razões várias, estas possam ser melhor suportadas e enfrentadas por alguns de nós. Todavia, neste romance pungente, nada piegas, não encontro o tom implacável da Doris Lessing dos 30 anos, quando lançou em 1949 seu A Canção da Relva. O Diário de uma Boa Vizinha é doído, mas não desespera. Há muita abnegação nele. Uma palavra melhor, malgrado seu abuso, seria amor. E a abnegação, o amor, pode ser o antídoto do desespero.

A escritora publicaria uma sequência, Se os Velhos Pudessem, acompanhando as novas aventuras de Janna, agora, aprendendo a lidar com a geração mais jovem. Ela tem também uma nova chance de amar — aos 50 anos. Doris Lessing assim faz de novo: surpreende. E bem.

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