Drummond e a poesia polifônica

Nas faces do ‘eu’, o ‘outro’, afinal, revela-se

Em Drummond, a incompreensão, o desajustamento e a indignação existencial intervêm como substrato às vozes sociais, fiadoras de uma poética em constante estado de tensão intersubjetiva | imagem: Carlos Varela

Os relógios disparam o tempo, ruas e mais ruas abrindo caminhos anônimos, gigantes arranha-céus empoleirando pessoas, multidões dispersas na vida insensível das cidades concretadas. Os tempos de Drummond, poeta itinerante pincelando uma nota lírica nas ruas asfaltadas – pedras no meio do caminho -, a flor, o medo, a noite… Ausência da vida natural e simples dos áureos tempos – tumulto – os convulsionados chaminés das fábricas vomitando o tédio da vida em série, vozes de protesto causando inquietação – atrito -, a infância itabirana submersa nos tempos modernos, a formação poética tradicional e o ouvido sensível às vozes da rua – inversão – criação, o lirismo poético, enfim, ganha ares de dramatização romanesca. Eis o assunto que nos interessa de perto, na fugacidade do instante que passaremos juntos, ainda mais passageiro e efêmero, nos dias de hoje.

Veja também:
>> “A Falha é um Prisma“: entrevista com Pádua Fernandes por Duanne Ribeiro
>> “Drummond e a política“, por Adelto Gonçalves

Em constante choque, o tempo sem freios vai, aos poucos, migrando sua feição, seu ímpeto desordenado e inquieto à poeticidade do canto poético. Em Drummond, especialmente, a incompreensão, o desajustamento e a indignação existencial intervêm como substrato às vozes sociais, fiadoras de uma poética em constante estado de tensão intersubjetiva, “nunca entendi bem o mundo, acho o mundo um teatro de injustiças e de ferocidades extraordinárias”, diz o poeta em depoimento a Zuenir Ventura. Mais do que nunca, os tempos modernos, hereditários das ambições desenvolvimentistas, interpelam espíritos sensíveis a absorver a lógica desgovernada da vida, de onde, esponjoso, fica o sujeito lírico drummondiano metamorfoseando o dizer da multidão e, semelhante ao narrador romanesco, empresta sua voz ao outro, personagem anônimo que encharca de coletividade o verso poético. Aí que, gloriosos, entram na equação os princípios teóricos de Bakhtin, sobretudo, os que referenciam a polifonia na linguagem.

Indo ao encontro, arte engajada, poesia social, imediatamente, polifônica, a voz alheia, do filósofo da linguagem, compartilha princípios à roda dialógica em formação: “Toda voz autenticamente criadora sempre pode ser apenas uma segunda voz no discurso”, diz ele, em Estética da Criação Verbal. E, ainda, seguindo as premissas de Estética… “Bakhtin e seus amigos afirmam o caráter primordial do social: a linguagem e o pensamento, constitutivos do homem, são necessariamente inter-subjetivos”. Ser é ser em relação. Esteticamente falando, na e pela voz do outro se viabiliza a exotopia1 da escritura, inevitável intervenção responsável, aliada, por afinidade formal, à revolução artística dos modernos. O poeta não mais se abstém da atmosfera social, ao contrário, é um eu que se contrai, redimido no (res)sentimento do mundo e, como quem explode, já totalmente possuído e perturbado por uma alma alheia, entra no diálogo. Em uma de suas falas inéditas, em texto, recentemente, descoberto, batizado de Sobre Maiakóvski, tributável às pesquisas de Beth Brait e seu círculo, o estudioso deixa pistas do que vem a ser ‘poesia polifônica’: “a história da autoconsciência do poeta encontra um remate interessante em Maiakóvski. […] Já bem desde o início a aspiração de fazer a sua voz passar pela voz de milhões, o seu ‘eu’ pelo ‘eu’ de milhões; a voz da rua sem voz, o mundo dentro de mim…”. Mestre na escuta das vozes alheias, o teórico do romance dá pinceladas do que vem a ser o sujeito lírico, permeável ao mundo da vida.

E, para não nos perdermos do fluxo interativo, o aspecto formal se constituiu, tanto para o pensador russo quanto para os poetas modernos, em ponto-chave da reviravolta conceitual. A hegemonia dos tempos prosaicos, aliada à germinação das sementes revolucionárias bakhtinianas, mesmo que, historicamente, tumultuados pelos regimes ditatoriais das guerras mundiais, favoreceu, no modernismo brasileiro, mais uma quebra de paradigmas, a que se refere à mudança do ponto de vista da fenomenologia que, até então, colocava-se no lugar do ‘eu’ para o ponto de vista do ‘outro’.

O medo, o grotesco, a dúvida, as incertezas entram em cena, sem fazer questão de disfarces. Começo do realismo em poesia, sobretudo, desde que a contaminação prosaica dos versos atinge a maioridade: com os de 30, o início de uma nova era, o nacional exportado ao mundo, com o Drummond de 45, a experimentação de um novo gênero, a palavra do outro importada para dentro do ser. O poeta destronado, como o romancista, é, antes, um orquestrador da multiplicidade discursiva que a última voz a ditar o caminho, “é apenas um participante do diálogo (o seu organizador)”. Aqui “eu vivencio, aspiro a algo e falo no coro dos outros”. E corre solta a voz poética em sintonia com o mundo, surpreendendo, por vezes, a autoridade subjetiva, reduzida a mínimo, o eu-elefante, o eu-inseto, o eu-pomba, personalidades gauches que, assim como a flor no asfalto, a orquídea na perdição, a rosa na máquina, representam a voz da esperança, a possibilidade de redenção que, nem sempre, se realiza, falta reparo, falta escuta, falta resposta.

No meio da noite, o alvoroço dos revoltados, o lamento dos desenganados, a súplica dos esquecidos, dramatizando a voz do sujeito lírico, coletiva, múltipla, heterogênea. E todas elas, mutantes aleatórias no jogo da existência, possibilidade de vida, possibilidade de morte, a saída mágica em Áporo, o pathos idealizante em A flor e a náusea, o resgate inusitado de Noite na repartição. E, enquanto isso, por parte da criação…

E a matéria se veja acabar: adeus, composição

que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade.

Adeus, minha presença, meu olhar e minhas veias grossas,

meus sulcos no travesseiro, minha sombra no muro,

sinal meu no rosto, olhos míopes, objetos de uso pessoal, idéia de justiça, revolta e sono, adeus,

vida aos outros legada. 

E o mundo criado, sua geografia e suas criaturas, órfão do paraíso, imperfeição congênita, subitamente, retrai-se ante a presença onírica do pai Criador, simbiose do silêncio, profunda reflexão, amargor, e o que era espírito, sopro da vida angelical e pura, surpreendido pela avassaladora consciência, princípio da queda, se faz carne, imagem refletida no homem que anda, no meio do povo, ofertando a palavra. Ninguém, absolutamente, é tão alguém, irredutível, imparcial, neutro, “até Deus precisou encarnar-se para amar, sofrer e perdoar, teve, por assim dizer, de abandonar o ponto de vista abstrato sobre a justiça”. E, dito isso, afinal, o que esperar mesmo do eu que se espelha na criação? 

Referências

BAKHTIN, Mikhail Mikhalovich. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BRAIT, Beth (org). Sobre Maiakóvski: apresentação e comentário. In: ______. Bakhtin: dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009c, p. 205-224.

DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Entrevista com Carlos Drummond de Andrade. [nov., 1980]. Entrevista concedida a Zuenir Ventura. Disponível em: <http://portalliteral.terra.com.br/artigos/eu-fui-um-homem-qualquer-zuenir-ventura> Acesso em: jun. 2012.

______. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

TODOROV, Tzvetan. Prefácio à edição francesa. In: BAKHTIN, Mikhail Mikhalovich. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. XIII-XXXII.

Autor

Notas[+]

Compartilhe esta postagem:

Participe da conversa