Os próximos passos da investigação no Ministério Público Federal poderão levar empresas a ter que pagar reparações
por Marcelo Oliveira
O Ministério Público Federal (MPF) investiga 12 de 13 empresas brasileiras sobre as quais pesquisadores brasileiros têm se debruçado há mais de um ano para apurar os elos que estas mantinham com a ditadura militar (1964-1985) e sua participação ativa na espionagem e violação de direitos humanos de trabalhadores e moradores das regiões onde estavam instaladas.
As investigações estão abertas em seis Estados (SP, MG, RJ, ES, RS e PA) e, segundo levantamento da Agência Pública, 10 dos 12 casos já abertos são inquéritos civis públicos, o último nível de apuração antes que uma ação ou acordo sejam propostos.
Há inquéritos abertos sobre os casos da Folha de S. Paulo, Cobrasma, Paranapanema, Docas e Embraer, que tramitam em São Paulo, Josapar, no Rio Grande do Sul, Petrobras, no Rio de Janeiro, Fiat, Belgo-Mineira e Mannesmann, em Minas Gerais. O caso Aracruz, no Espírito Santo, é um procedimento de acompanhamento. O MPF não informou o andamento das apurações sobre a CSN, que tramita no RJ, e Itaipu, que não tinha um procurador designado até a publicação desta reportagem.
As investigações ganharam novo impulso no mês passado com a apresentação dos resultados das pesquisas realizadas por acadêmicos de diversas universidades brasileiras, que atuaram sob a coordenação do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), cujo resultado se transformou na série de reportagens da Agência Pública: Empresas Cúmplices da Ditadura.
Os relatórios agora são públicos
Entre 5 e 7 de junho deste ano, em São Paulo, durante o I Seminário Ditadura, Empresas e Violações de Direitos, realizado pela Unifesp, a Pública acompanhou os pesquisadores apresentarem os relatórios públicos das pesquisas sobre 10 das 13 empresas investigadas por violações de direitos humanos. As pesquisas apontaram a prisão, tortura e morte de trabalhadores, inclusive no interior das empresas, a formação de listas sujas de demitidos, a repressão violenta de greves, além da expulsão de indígenas, quilombolas, colonos e camponeses de suas terras para que no lugar se desenvolvessem gigantescos empreendimentos das empresas investigadas.
Até o momento foram apresentados os relatórios públicos das investigações sobre as estatais Petrobrás, Docas (atual Santos Port Authority) e Itaipu, e sobre as seguintes empresas privadas: Fiat, Josapar, Paranapanema, Cobrasma, CSN, Aracruz e Folha de S. Paulo. Este primeiro lote de investigações, que terminou em 30 de junho, está sendo realizado com R$ 2 milhões oriundos do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) no valor de R$ 36 milhões que a Volkswagen assinou com o MPF e o Ministério Público de São Paulo por conta de violações de direitos humanos praticados pela empresa contra funcionários durante a ditadura.
Também estão sendo investigadas – com recursos de outro TAC firmado pelo MPF com a Companhia Energética de São Paulo em virtude de a companhia ter descumprido condições exigidas para a implementação do Parque Estadual Rio do Peixe, uma compensação ambiental exigida por conta da construção da hidrelétrica Sérgio Motta, no rio Paraná – as empresas Belgo Mineira, Mannesmann e Embraer, mas a pesquisa científica, também coordenada pelo CAAF-Unifesp, está prevista para ser concluída em dezembro de 2023.
O trabalho dos cientistas visa a obtenção de provas, indícios e testemunhos sobre violações de direitos humanos cometidas pelas empresas para instruir as investigações do MPF que poderão resultar em medidas cíveis de reparação dos danos causados pelas empresas a trabalhadores e populações tradicionais e outros prejudicados, como colonos e camponeses.
Caminhos para a reparação
O caminho para buscar reparação aos trabalhadores e outros afetados será na esfera cível, pois, no Brasil, a lei impede que empresas sejam processadas criminalmente, exceto por crimes ambientais e contra a ordem econômica e à economia popular, o que não é o caso de crimes como tortura, morte e remoção forçada de moradores.
Uma abordagem criminal dos casos também é dificultada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, em 2010, julgou a Lei de Anistia constitucional, o que impede que ações penais prosperem, apesar de muitos procuradores do MPF pensarem diferente e alguns juízes de primeiro e segundo grau também. Recurso da OAB sobre essa decisão do STF nunca foi pautado pelos ministros da suprema corte.
“Esse trabalho me retira 3 ou 4 anos de investigação que eu teria que fazer”, disse o Procurador Regional dos Direitos do Cidadão no RS, Enrico Rodrigues de Freitas, um dos dois membros do MPF que apuram as violações de direitos humanos praticadas pelo grupo Josapar, do arroz Tio João. Freitas foi designado pelo Procurador Federal dos Direitos do Cidadão, Carlos Vilhena, para vir até São Paulo acompanhar o seminário.
“É essencial um diálogo com os vitimados, com os movimentos sociais e com os pesquisadores”, afirmou Freitas no evento. Ele não pode falar por outros procuradores, mas deu a entender que priorizará tentar um TAC do que ajuizar uma ação civil pública, que pode levar 10 ou mesmo 20 anos até a obtenção de um resultado final. “O TAC tem uma grande vantagem que é o tempo. Ele pode ser elaborado em meses, enquanto que uma ação pode levar até 20 anos”, disse.
Segundo Freitas, o trabalho do MPF agora será o de verificar quais dos elementos trazidos pelos pesquisadores são violações de direitos humanos e quais evidências colhidas pelos acadêmicos servirão como prova numa eventual ação civil pública ou para serem levados à mesa de negociação para a discussão com as empresas (ou suas sucessoras) em busca da admissão de culpa e a negociação de um acordo.
Apesar da possibilidade de ações ou acordos que poderão ser revertidos em reparações milionárias – como ocorreu no caso Volks – para trabalhadores, indígenas, quilombolas e outras populações tradicionais afetadas pela coalizão entre empresários e a ditadura, há muitos desafios pela frente para que isso se concretize.
O primeiro deles é que os envolvidos, vítimas e seus herdeiros, entendam o que é a reparação e que ela deve ser buscada coletivamente.
“As portas da Justiça Criminal estão fechadas para nós. O que estamos pedindo agora é a responsabilização civil, e o castigo que têm para as empresas que fizeram malfeitos é a reparação do dano. Houve ilícitos, há vítimas e há o dano, portanto há direito à reparação. E o direito à reparação não tem um formato específico. A reparação pode ser criada, pensada, elaborada e definida estrategicamente”, explicou Rosa Cardoso, advogada e ex-coordenadora da Comissão Nacional da Verdade (CNV).
As possíveis reparações incluem desde placas informando que uma antiga fábrica foi palco de repressão, a destinação de um imóvel usado para tortura, por exemplo, como memorial, recursos financeiros para mais pesquisas sobre o apoio de outras empresas à ditadura, devolução ou aquisição de terras para aqueles destituídos de suas posses. A destinação das reparações pode ser feita a toda a sociedade e/ou a um conjunto determinado de vítimas.
“O termômetro das reparações será o desejo dos vitimados. Não dá para fazer nada sem isso”, afirma Sebastião Neto, coordenador da organização Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas (IIEP), e um dos maiores batalhadores por reparação para trabalhadores vítimas da Ditadura Militar. Ele sabe, porém, que nada se faz sem mobilização e que é preciso mais.
No IIEP, com o surgimento da CNV, em 2012, Neto alertou as centrais sindicais sobre a importância da luta por memória, verdade e Justiça. Ele enfrentou as divergências entre as centrais e as mobilizou para convencer a comissão da verdade sobre a importância de se investigar o papel das empresas na ditadura militar, o que resultou na criação do Grupo de Trabalho 13 da CNV, responsável por apurar essas violações de direitos humanos. Foi a partir das investigações feitas pelos sindicalistas, juntamente com pesquisadores da CNV, supervisionados por Rosa, que surgiram as representações feitas ao MPF que resultaram no TAC da Volks e nas pesquisas agora realizadas sobre essas 13 empresas. “Pela primeira vez na história as centrais se uniram em torno de um objetivo comum”, disse Neto, relembrando o processo.
Mobilização
Por falar em mobilizar, o tamanho gigantesco de alguns empreendimentos, o tempo decorrido e a dificuldade de manter as vítimas em contato fará com que seja preciso procurar pelas vítimas e seus descendentes. “Será preciso ir a campo e buscar as vítimas ativamente e colher depoimentos, mas isso custa dinheiro”, diz Neto. Pensando nisso, a procuradora da República Nathália Mariel, assim que receber o relatório completo do caso Josapar, por exemplo, pretende fazer um trabalho de comunicação no Pará em busca de potenciais vítimas da empresa em busca de mais depoimentos e provas. Ela atua com Freitas no caso, cuidando da parte paraense.
Uma das formas de mobilização encontradas, decidida em encontros paralelos ao seminário, foi a reativação do Fórum por Verdade, Justiça e Reparação, criado em 2015. Cada cidade ou região atingida por violações de alguma das empresas pesquisadas terá um grupo desses que irá aglutinar as demandas das vítimas. O grupo, antes formado apenas por trabalhadores de empresas urbanas, agora terá também a presença de outros vitimados pelas companhias investigadas e seus empreendimentos.
Outro grande problema enfrentado pelos pesquisadores é a escassez de recursos. Em alguns casos, o acesso a fundos com documentos muito importantes ocorreu mais para o final do trabalho de pesquisa acadêmica, mas os recursos para pesquisar as 10 primeiras empresas já acabaram e não há previsão de renovação depois de 30 de junho. “Quase todas as equipes estão terminando o trabalho com a sensação de que ainda há muito que ser investigado”, afirmou a professora da Unifesp, Carla Osmo, que trabalhou na Comissão Nacional da Verdade e é doutora em Direito e fez um relatório sobre o andamento das pesquisas no seminário.
Outro ponto recorrente nas falas dos pesquisadores durante o evento foram os diferentes padrões de trabalho do MPF. Como gozam de independência funcional, os procuradores da República não trabalham da mesma forma. Enquanto alguns já avançam e até já chamaram empresas para conversar sobre as demandas das vítimas, outros mal receberam as demandas dos pesquisadores, que pediram ajuda dos procuradores para que estes requisitassem, por exemplo, acesso dos acadêmicos a documentos em fundos de arquivos privados.
O caso Itaipu, por exemplo, não tem um procurador para atuar na investigação. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal obriga que casos envolvendo a companhia devem ser julgados pelo STF, onde o MPF é representado pelo Procurador Geral da República, Augusto Aras. Contudo, segundo a Secretaria de comunicação da PGR, a assessoria técnica de Aras entendeu que o caso envolvendo as violações de direitos humanos na ditadura em Itaipu não cabe nessa jurisprudência e não seria necessário que Aras designasse um procurador, mas a PGR, contudo, não respondeu à Pública qual será o destino do procedimento, que é o único sem investigação até o momento.
O procurador Enrico Freitas apresentou uma sugestão aos pesquisadores: que os resultados finais das pesquisas sejam entregues num evento com a presença de Vilhena e de todos os procuradores responsáveis pelos 10 casos de forma que se inicie um diálogo mais amplo.
Na avaliação de Neto, outro grande problema é que não está havendo interlocução com o governo Lula 3 para que a Advocacia Geral da União (AGU) designe procuradores federais para cuidar dos casos das estatais e das ex-estatais investigadas, o que poderia acelerar os processos em busca de reparação.
“O MPF pagou pela pesquisa, mas ele não deve ser o único canal de interlocução. Acho que deveria haver um papel também da AGU, em relação às estatais e da PGR, por causa de Itaipu. Como o governo vai encarar a presença de estatais nesse meio? A gente precisa saber”, afirma Neto.
Uma coisa positiva desse processo de pesquisa da relação de empresas com a ditadura foi que o mergulho nesse tema poderá continuar trazendo frutos. Jovens pesquisadores de diferentes universidades participaram voluntariamente das investigações, como é o caso de descendentes de ex-funcionários da CSN que pesquisaram o racismo na relação da empresa com os trabalhadores.
O mergulho nos documentos e na pesquisa surpreendeu até os mais experientes, como a doutora Vera Vieira, da PUC-SP. “Tenho 72 anos e a gente sempre aprendeu que o golpe de 1964 foi para derrubar Jango, mas não foi. O golpe foi para reprimir e interromper a luta dos trabalhadores. Isso fica claro quando a gente se aprofunda na pesquisa”, afirmou, emocionada, ao concluir sua apresentação sobre o andamento das investigações do caso Docas, antigo nome da empresa que administra o Porto de Santos.
As vítimas podem não estar ainda completamente mobilizadas, mas onde a luta nunca parou, os líderes têm grandes ambições. O cacique Jonas, líder dos Tupiniquim e Guarani, e Domingos Firmiano, o Chapoca, líder dos quilombolas, ambos na casa dos 70 anos e que tiveram seus povos expulsos de suas terras no Espírito Santo para a criação da Aracruz, fizeram questão de vir até São Paulo acompanhar a divulgação das pesquisas e contarem um pouco de sua luta. Eles não têm dúvida: querem a saída da Suzano Papel e Celulose, hoje dona do que foi a Aracruz, de seus territórios ancestrais, ocupados por séculos por seus antepassados. “Queremos a Aracruz fora de nossas terras. Nada mais”, afirmou Domingos.
A condenação em primeira instância do ex-agente do DOPS Claudio Guerra, que prestava serviços de assassinato e destruição de corpos, incinerados nos fornos da Usina Cambahyba em Campos dos Goitacazes (RJ), a mando dos agentes do Centro de Informações do Exército (CIE), que tomavam conta da Casa da Morte, em Petrópolis, e os 10 anos do relatório da CNV, em 2024, podem ser impulsos para mobilizar a sociedade em busca de memória, verdade e Justiça, assim como ocorreu em países vizinhos como Argentina.