O que aparentava ser liberdade de expressão, tornou-se imposição, um tributo que se transforma em reprimenda e amargura
Devemos falar apenas do que não podemos calar; e falar somente daquilo que superamos – todo o resto é tagarelice, “literatura”, falta de disciplina. Meus escritos falam apenas de minhas superações: “eu” estou ali, com tudo que me era hostil, ego ipssimus [meu próprio eu]… Mas sempre foi necessário antes o tempo, a convalescença, a distância, até que em mim nascesse o desejo de explorar, esfolar, desnudar, “apresentar” (ou como queiram chamá-lo) posteriormente, para o conhecimento, algo vivido e sobrevivido, algum fato ou fado próprio.
– Humano, Demasiado Humano (II), Friedrich Nietzsche
Como discutir a exposição pessoal de cada indivíduo imposta pela sociedade, diante da liberdade e individualismo conquistados, que tiveram que percorrer em seu caminho tamanhos sortilégios e prejuízos? Se vivemos hoje em uma liberdade e individualismo reais, como se acredita viver, talvez as diferentes interpretações que se podem fazer de tais termos estejam colocando em desordem a sociedade e suas diversas culturas.
O surgimento do pós-modernismo e suas consequências
Surgindo como um novo comportamento social, em que o novo não era mais temido, e sim celebrado, o modernismo originou uma quebra de padrões em todos os níveis e classes da sociedade. Através da exaltação do imoral e do individualismo, deu início a um novo comportamento da sociedade baseado no consumo de massa e no culto a uma vida de prazeres, não mais de obrigações. Os movimentos de personificação, do consumo de massa, do individualismo, e de uma consequente transformação da cultura em bens de consumo, e da produção cultural em uma ferramenta a serviço do capitalismo, serviram de base para a construção dos valores da sociedade em que vivemos hoje.
É claro que diversas mudanças ocorreram entre a passagem do modernismo ao pós-modernismo, como uma revalorização moral e espiritual, assim como a valorização do pluralismo e da heterogeneidade, que reconhecem os seres como múltiplos e indivíduos únicos, e admitem a coexistência de representações de organismos e grupos diferentes em suas subjetividades. A cultura atual adquiriu novos significados diante dessas mudanças, passando de uma produção guiada pelo capitalismo e pela cultura de massa para uma nova produção guiada por discursos fragmentados advindos da própria massa.
A concessão ao direito de representação e expressão de todo e qualquer grupo e indivíduo, somada ao surgimento de diversos meios e facilidades voltados para o interesse pessoal destes, geraram uma explosão de discursos, expressões, pensamentos, significações e tagarelices de variadas procedências, sejam estas de indivíduos, grupos, ou personagens inventados. Nesta exagerada exposição pessoal, o indivíduo revela-se nos perfis das diversas mídias sociais da internet, apresenta-se com suas roupas (que mais se afiguram como adornos), manifesta-se em seu exercício do dizer e expressar, e sujeita seu íntimo à tudo com o qual possa customizar-se e se diferenciar em seu meio.
E o que a princípio aparentava uma poderosa liberdade de expressão, tornou-se uma imposição, um tributo que para muitos se transforma em reprimenda e amargura, como afirma Nietzsche:
Para um certo temperamento é útil desafogar em palavras o aborrecimento: ele se adoça ao falar. Um outro temperamento chega à sua plena amargura somente se exprimindo: para ele é mais aconselhável ter de engolir algo; a coerção que homens desse tipo exercem sobre si mesmos, na presença de inimigos ou superiores, melhora seu caráter e impede que se tornem muito ásperos e ácidos.
Terá esta imposição transformado nossos indivíduos únicos e plurais em ásperos e ácidos? Esta pergunta nos leva a refletir o porquê de a questão ser tratada, incrivelmente, deixando-se de lado aquilo que mais (supostamente) se preza hoje: a individualidade.
A imposição como inimiga do indivíduo
O caráter perigoso da imposição em questão é sua dissimulação. Não existem associações e organizações, nem ao menos regras ou leis que claramente a revelem. Nem ao menos se discute a imposição à exposição pessoal em qualquer meio que alcance um número mínimo de pessoas. Se existe algum indício, este apenas ocorre em conversas íntimas à quais não se tem acesso nem a certeza de que ocorram. A única afirmação à qual podemos apelar é a de que um indivíduo de caráter reservado, quando exposto à tal imposição, reconhece apenas duas saídas, as quais Simone de Beauvoir conhecia muito bem. A primeira sendo a escolha de uma “dependência interiorizada”, em que apesar de “escravo” dos costumes de uma sociedade, representando um papel com único intuito de fazer-se sentir parte desta, “se conduz com aparente liberdade”. A segunda, a escolha de uma dependência exterior, em que o indivíduo segue sendo verdadeiro consigo, “é essencialmente autônomo e é de fora que está acorrentado”.
Este inimigo invisível está em todas as áreas da sociedade, e persegue aqueles a quem escolheu como alvo de sua indiferença e rejeição. A problemática manifesta-se diante o indivíduo durante toda sua vida. Quando ainda criança, esta é escolhida por professores para ler um texto em voz alta ou vir a frente resolver uma conta matemática diante de todos. E grandes pedagogos que são, acreditam estar fazendo algum bem a esta criança, quando na verdade estão impondo-lhe à exposição. Um pouco mais tarde, já um adolescente retraído, uma atitude invertida causa o mesmo resultado anterior quando os pais se encarregam de comunicar em lugar do filho, não lhe deixando a opção de escolha sobre o que gostaria ou não de comunicar. O adolescente resignado, renuncia a seu direito de comunicar-se, fechasse em si, até que alcance sua maturidade. Exposto então, a uma certa liberdade, suas emoções começam a acordar e reconhecer algo a muito esquecido, a liberdade da qual desfrutou durante sua mais tenra infância. Acredita então estar finalmente livre da opressão, e que deste ponto em diante fará a livre escolha do que expor, para quem e quando expor.
Esta ilusão dura pouco, pois logo se lança em sua carreira. Durante todo seu desenvolvimento profissional, é questionado sobre sua capacidade de liderança, comunicação interpessoal, dinamismo e todos os jargões de perfis profissionais que se espera possuir. Notadamente, uma grande parte destes indicam uma grande exposição pessoal. Até mesmo dentro de seu grupo de amigos, mesmo sendo querido é visto como extravagante, singular e até impertinente. Mesmo fazendo parte de um grupo é visto o outro, a alteridade. Arrancam-lhe assim, como Nietzsche (1979) afirma, o sentimento exclusivo à “humanidade” de que “o homem constitui o único ser livre num de não liberdade”.
Fazer parte ou existir na solidão?
Me pergunto então se alguns destes que discursam, falam e tagarelam o tempo todo não estão tentando fugir do silêncio, que pode lhes revelar o seu mais íntimo eu, que poderiam ouvir em seu interior? Sentindo-se protegidos por um grupo, ouvindo suas dores que se confundem com um aglomerado de dores que ecoa como um só som diante de um abismo ao qual todos pertencem? Será medo de olhar e escutar o seu próprio abismo da existência, da identidade, da mortalidade, do desconhecido?
Penso que em meio a uma cacofonia de pensamentos, cores, signos e significados, tamanho esforço em se destacar da massa não só torna-se inútil, como surte o efeito contrário, o de não ter sua presença notada. A lei abstrata originada pela sociedade, que reclama a equidade na atitude de destacar-se, de acordo com Nietzsche, “atenua também nossas pequenas diferenças, dando-lhes uma aparência de igualdade.” E diz ainda que “também as leis tolas dão liberdade e paz de espírito, desde que muitos se submetam a elas”. Mas o impasse readquire seu caráter opressor se pensarmos naquela minoria que ao silenciar, conseguiu olhar para o seu abismo interior, sendo assim privadas de sua “liberdade e paz de espírito”.
Este é um caminho talvez mais verdadeiro, mas com certeza sem volta. Após conhecer a verdade sobre si mesmo, sobre seus medos e angústias mais profundos, admitindo sua incapacidade e limitações na compreensão da vida, torna-se impossível esquecer a verdade e tentar representar um papel na tentativa de fazer parte. Perde-se até mesmo o sentido dequerer fazer parte. Olhar para o próprio abismo leva a uma existência na solidão. Mas mantém-se o caráter da individualidade, que carrega em si a importância da história do movimento de libertação, inicialmente em oposição aos princípios religiosos e mitológicos, e posteriormente ao racionalismo excessivo e aos discursos universalistas. E que agora luta diante da força de atração dos discursos fragmentados da massa que se esforçam em tragar cada indivíduo a seu redor.