Nosso desespero e peregrinar pela Terra parece sempre estar em busca de algo que o aniquile, um outro panorama de vida
“Deixe-me comentar aqui: Quando eu digo que as pessoas se abandonaram ao desespero, não me refiro ao desespero religioso, ou a um desespero de seu estado eterno; mas quero dizer um desespero de serem capazes de escapar da peste, ou de sobreviver à peste…” (…) “As pessoas foram levadas a uma condição de desespero de vida”.
– Daniel Defoe, Diário do Ano da Peste
Ao contrário da Londres de 1665, na qual a Peste Negra, algo tão familiar dos tempos medievais, matou milhares em pleno século XVII, as pestes modernas parecem ser algo que tem a sua cota de desespero controlada. A gripe do porco, apontada por alguns como produto de laboratórios dos EUA, já poderia (poderá?) ser debelada em seis meses, com a produção de uma nova vacina ou simplesmente com a venda do Tamiflu (droga elaborada no laboratório do ex-chefão da Defesa de Bush Filho, o Donald Rumsfeld).
É só ter paciência… e sem pânico.
Hoje em dia, parece que ficou mais complicado para sermos acometidos de um desespero daqueles, terríveis. O controle do imaginário esforça-se para dar a impressão de que está tudo tranqüilo, que as instituições funcionam, que não há nada a temer. Se na Europa do ano 1000 a Igreja fazia questão de incutir o medo para melhor controlar, hoje o medo e o desespero, por mais irracionais que sejam, parecem se acomodar à primeira sensação de proteção que surja. Os boatos, se com a mídia atual se propagam com uma velocidade tremenda, são debelados com igual rapidez. Nada comparável à versão radiofônica de Guerra dos Mundos, do Orson Welles ou até mesmo ao boato do rompimento da barragem de Tapacurá na Recife da década de 70.
O desespero de uma hecatombe nuclear provocada pela maluquice do ditador norte-coreano Kim Jong-il também parece controlado por uma certeza (in) consciente de que há uma potência maior: basta um puxão de orelhas militar e tudo se acaba. Falta talvez à nossa contemporaneidade um fim do mundo mais adequado.
Apocalipses e o Modus Operandi do Poder
A partir de uma “contaminação semântica”, o vocábulo “apocalipse”, passou impropriamente a ser tomado como o fim-do-mundo. O significado da palavra, usado na Bíblia, por exemplo, é revelação. A revelação, ou antes, A REVELAÇÃO, de origem divina traria (trará) ao Homem a compreensão de coisas secretas. O que João Evangelista relata no último dos livros bíblicos é dado por muitos entendidos como relativos ao contexto das perseguições dos cristãos do século I d.C.
As revelações são mais silenciosas do que se espera e imagino que os “fins do mundo” se repitam. Tivemos o fim do mundo de 1914-1918, a guerra que poria fim a todas as guerras, um Armageddon que se repetiria sem a mesma intensidade nos eventos de 1939-45 (e, neste ínterim, tivemos o surto da gripe espanhola…) e diríamos até que as pessoas que não presenciaram in loco o conflito permaneceram na sua apatia, vez ou outra quebrada pelo esforço de guerra; mas aí houve a experiência nuclear, as imagens do Holocausto, e o frio da guerra de medo que se seguiu durante quase cinco décadas entre EUA e URSS.
As revelações são mais silenciosas do que se espera. E transparecem na apatia da maioria e na clarividência calada dos poucos. O panoptismo intuído por Kafka e George Orwell (e, por que não? em Lost) inclui esse desespero controlado que faz com que o pânico pelo fim do mundo se desfaça ou seja reprimido. O pan-óptico é uma espécie de centro prisional ideal, criado pelo filósofo Jeremy Bentham, em 1785. Nesse sistema, um só vigia observa todos os prisioneiros, sem que possam saber se estão sendo observados ou não em dado momento. É o próprio conceito do Big Brother, no 1984 de Orwell. Para que se desesperar? Não há saídas…
A representatividade dessa sensação pode ser percebida explicitamente por meio do cinema-catástrofe e do de horror, mas na literatura se faz muitas vezes de forma menos ostensiva: a esfera do individual representada em livros de cunho distópico, ou na qual o ser humano está consciente do seu desespero individual (e daí temos desde os personagens do Kafka e do Albert Camus, do Rosário Fusco e do Murilo Rubião), encerra em si a (clari) vidência de que o mundo permanece caótico, de que o equilíbrio é uma falácia e uma ilusão. É justamente aí que percebemos que esse desespero cria alegorias e metáforas, procura os alienígenas e os zumbis (alienígena em bom latim é estrangeiro…). O exótico, o incompreensível (ou o que não se quer compreender), aqueles que julgamos “mortos” em comparação com o nosso modo de vida, próprio dos “vivos”, são rechaçados, ora com a força militar (zumbis são sumariamente fuzilados, não?), ora com a força de nossos vírus (os estrangeiros de H.G. Wells — que, se percebermos, são seres humanos deformados, uma vez que nunca vimos um ET para descrevê-los corretamente — são repelidos à força… ora, da gripe!) e o desespero é, então, controlado. Eu diria que esse é o discurso do controle, discurso de quem, na maioria das vezes, (quando não aparece como paródia ou sátira) de uma forma ou de outra ratifica o modus operandi do poder.
Em outras revelações, seja de A Peste, de Camus (ou até mesmo o seu Mersault, de O Estrangeiro — o estrangeiro seria o morto ou seria ele? — com o seu grito de ódio à beira da morte), de O Processo, de Kafka (Josef K. também grita, como Mersault, na hora da sua execução), ao gesto de agressão estúpida do David (o desesperado agredido-agressor) de O Agressor, de Rosário Fusco; o ser individual exige a explicação do seu fim. É a nossa necessidade de apocalipse, de revelação.
Desespero atrás de cada Espelho
Os sensatos e os calados, aqueles que percebem o movimento das forças do mundo com um leve farejar, com a percepção que vai além dos seus cinco sentidos, sabem que o fim sempre está próximo, também calado, mas nada sensato. O fim do mundo, antes de ser algo espetacular, retratado com monstros e fogo, com bestas e prostitutas vestidas de vermelho, é, ironicamente, ligeiro como um espirro contaminado de um vírus que traz em si aves, porcos e homens (o AH1N1, já se sabe, é uma mutação da gripe aviária, da suína e da humana), mas também é lento como um jogo de xadrez entre lunáticos que brincam com bombas atômicas, lento como um nevoeiro pós-explosão.
O nosso desespero e nosso peregrinar pela Terra parece sempre estar em busca de algo que o aniquile: à semelhança do pensamento budista da aniquilação total, mas com o pensamento ancestral do retorno à Idade do Ouro, faz com que nosso pensamento desesperado por viver num mundo maluco exija um outro panorama de vida, uma totalidade que existiu em mitos e que parece não querer se materializar em realidade. E isso faz com o que o desacerto entre a continuidade do existir e a concepção do término fatal das coisas produza mais desespero.
Enumerar os conceitos de desespero parece irrelevante. Desespero e fim de mundo andam juntos. O desespero de vida ao qual se refere Defoe é o desespero dos barrocos, que Neil Gailman representou de forma feliz na concepção de um dos Perpétuos, personagens de Sandman. A Desespero de Gaiman está sempre atrás dos espelhos, gorda de tanto roer os que lhe roem, esperando pacientemente o fim de todos.
Sem nada revelar.