Literatura Caleidoscópio

A mensagem — se há mensagem — parece ser a de que a realidade é muito delicada

Não há o que se entende por certeza no livro Furor na Íris, escrito pelo mineiro Marcus Nascimento e ilustrado por Marcelo Kraiser. A obra trata da incerteza, mas tampouco posso estar certo disso. Em todos os sentidos, se mantém entre a compreensão e a incompreensão, entre o sucesso e a falha, entre o real e o irreal — nas palavras do autor, é como olhar por uma janela embaçada, e esses efeitos persistem por muito mais tempo. Indefinindo a gente.

Considere: é um livro formado por contos curtos que, por sua vez, são escritos com frase curta após frase curta, em descrições fotográficas, declarações densas de poesia ou diálogos entre vários personagens, sem pontuação, apenas destacado do texto comum pelo itálico. Ao lado disso, ilustrações cuja ligação com o tema do conto quase nunca é imediatamente compreensível; são imagens de cor e nitidez alteradas, cenas prosaicas repetidas, elementos díspares unidos na mesma fotografia como se complementares. Além disso, os contos não são lineares: a história passa, sem aviso, a ser contada em outra língua e pode incluir receitas, cartas de tarô, artigos jornalísticos etc.

A coerência quem constrói é o leitor, a partir dos cacos. Mesmo no modo de tratar o tema da vez, Nascimento é incerto: passa do dramático ao cômico, ou ao nonsense, sem que isso destoe do tom geral. Até mesmo as palavras: seu sentido num dado momento é considerado e então, com a mudança de uma letra, aquela palavra passa a ser outra, e as cenas prosseguem por um quase nada. A mensagem — se há mensagem — parece ser a de que a realidade, na verdade, é muito delicada.

É natural, portanto, que os personagens sejam geralmente pessoas no limite. No fio da navalha. Em um texto que atravessa metade do livro em oito partes — “O Doador de Órgãos” — um homem em busca de dinheiro vende seu corpo parte a parte, terminando totalmente decomposto, literalmente — você verá — símbolo de uma fé vã. Outro, preso demais ao cotidiano, à repetição e à angústia, aqui descrita como uma senhora vestida de verde-petróleo. Uma mulher que interrompe bruscamente todas as suas atividades, num choque, um lapso que parece eterno, mas que não é. E tantos outros.

Há um tom obscuro, dalton trevisiniano, em todos os contos. Com exceção de um. Só nele houve descanso — uma espécie de alegria. Contava a história de uma senhora que enfim vai ao céu. O céu é um lugar onde encontra São Pedro e ele sorri, e todas as línguas são compreendidas como se fossem uma. Só haverá descanso se todas as línguas forem compreendidas como se fossem uma. É essa a mensagem do livro?

Quem sabe. Se houver mensagem.

Solo de Melancolia

I –

Vai ser muito difícil fazer essa senhora sair daqui. Ignorá-la? Tarefa hercúlea! Mira e verga a intenção. Impulso. A tensão. A ponta. Da flecha embebida no phármakon. A distensão. Movimento-intento eliminar distância no percurso. Per-furo. E pronto. Falar é míssil. Fácil, não?

Vai ser muito difícil fazer essa senhora sair daqui. Aterrá-la? De repente, na base do susto? Não. Que ela é o próprio susto e a base é sólida.

Ela está dentro de mim quando estou fora e está fora quando estou por perto. Volteia dentro do seu vestido preto [do grego melan] com franjas verde-bílis [kholè]. Melankholé. A melancolia é verde petróleo.

Ela pede clinicamente que eu a perdoe. Não se lembra de mim; sequer sabe quem sou. Não recorda meu semblante. Não sabe meu nome, mas me tem por muito jovem. Toma a minha mão. Insinua uma aventura necessária sem recompensa no final. E o diabo é que vou assim mesmo.

Dói nos nervos. Melhor esquecer as conseqüências da vida. O que já passou por mim… A vida vai ficando cada vez maior. Rugas? Ah, minha cara, estou cheia delas! A aranha de Ariadne perde, às vezes, a consciência da teia que trama. E treme.

II –

Todo dia é um descer as escadas. Encontrar depois da porta a rua e do outro lado da rua a mesma criatura indigente. Meu anjo e meu cão de guarda. Aquela dor se contorcendo no rés-do-chão. Ouço o dia de ontem e o de amanhã. Eu remexendo as minhas coisas. Uma gaveta cheia de guardados e a vista cansada. Não costuro mais. Sexo, já parei com isso. Um beijo no rosto. Todo dia. Um antes de sair e outro ao chegar. 34 anos. Mais ou menos 60 beijos por mês. 720 por ano. 24.480 beijos nesses 34 anos. Meu filho na borda da esfera do pensamento. Não existe solidão que se compare à solidão de uma criança. Primeiro dia de aula. Um portão azul enorme. Uma saia também azul plissada e blusa branca. Ás vezes tudo tão perto. Apertado na cabeça. Não dá nem pra me mexer. A casa é pequena. Quando se tem o que fazer o tempo passa mais… Jogar conversa fora sem ter que guardar. Sentir a propriedade da palavra. Quase igual a coisa pertencente ao dono. Deixaram o portão destrancado e o cachorro fugiu, coitado. Às vezes vem visita de parente. Fica até tarde. Um abraço. A única coisa verdadeiramente falsa é o abraço. Minha mãe (a hospedeira) deu um grito e esse grito era eu. Coisas do absurdo… Os olhos fechados. Que dizer do mundo? É muito luminoso, às vezes. Não guardo nada do que eu olho. Essas ilusões de ótica eu abandonei há muito tempo. Estrangeiros não falam a nossa língua. Daí a angústia. Uma mulher vive num aquário com água e açúcar no fundo e às vezes nada, nada até a superfície. Tem de respirar. A outra mulher que vive no mesmo aquário não deixa a água subir além do pescoço, não. Uma das duas tem que estar já na cozinha. Às 6h da manhã. O café pronto.

Dona de Casa não vai às Compras

A dona de casa Amélia Rodrigues, apreciadora do fado, idade não revelada, acordou hoje, excepcionalmente, às 10h da manhã sem a menor disposição para ir à padaria comprar leite e pão. Foi encontrada nesse estado mórbido pelo marido, que a velava desde às 6h.

Ela prostrada na cama, de costas, olhando para o teto, do qual pendia um candelabro italiano. No alto das paredes, um barrado de gesso com figuras santas em alto relevo. Não disse palavra.

11h30. Marido e filhos em jejum, e já a certeza de que o almoço não seria servido, o medido foi chamado. Uma multidão se abalou para a frente da casa da Sra. Rodrigues. Segundo vizinhos entrevistados pela reportagem, Amélia Rodrigues sempre fora uma pessoa despachada e solícita. O médico diagnosticou depressão. Prescreveu comprimidos para os nervos e marcou uma nova consulta.

15h15 e todos varados de fome. Nada na geladeira. Nada na despensa. Nada de Amélia Rodrigues se levantar da cama. Alguém achou um pote com biscoitos Maria. A aflição devorava a tarde da família. E babava. Bambeava exangue. Anemia. A companhia uns dos outros intoxicava. Os apelos aberrantes do filho menor começavam a espalhar a sujeira acumulada nos cantos.

17h55. A hora do jantar se aproximava. O marido, ao telefone, acionava serviço de delivery quando Amélia Rodrigues, fã do fado, se levantou, causando comoção na família e curiosos. Alegou uma tonteira sem importância, talvez resultado de uma baixa na pressão, seguida de vertigem. Voltou ao batente, da porta dispensou a multidão com um sorriso em forma de paisagem. Gozou por instantes a perturbação de certa miragem em meio ao deserto, embora não habitasse o deserto. Cancelou a consulta médica. Talvez uma tempestade de areia tenha anuviado a sua mente naquele dia.

6h30. A mesa do café estava pronta. Amélia Rodrigues tem sempre alguma coisa para fazer. E faz.

Conto Cego

Como se estivesse olhando por uma janela embaçada. A catarata correndo lá fora. Alice figura em meus olhos fazendo zoom, zoom. Ora longe. Ora perto. Lágrimas artificiais. Olhos vermelhos. Lacrimejamento. Inchaço nas pálpebras. Secreção nos olhos. Visão borrada. E que dor ao movimentar os olhos! Como se um cabo elétrico cheio de fios. Choque. Um mal humor aquoso. Pontos cegos. Um furor na íris. Auréolas de arco-íris ao redor de luzes. Um pássaro preto bicando a menina dos olhos. Buracos negros. Sensação de ardência. Olhos vermelhos. Visão nublada. Dor de cabeça. Não podem ser revertidas. Que o fluido aquoso saia do olho. Completamente obstruído. Olho de vidro.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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