A Poesia é uma Antiforça

A verdade subliminar em traficantes, catástrofes e filósofos


Marcelo Ariel | imagem: Duanne Ribeiro

 

Marcelo Ariel é como um fenômeno que ocorre a nossa frente. Sentado a uma mesa de livraria, às vezes se mostra inquieto, olhando a rua através das vidraças, os livros nas fileiras; lê um título, outro, esquece-os. Noutras vezes, é definitivo em cada opinião — mas guardando-se o direito de mudar quaisquer dessas opiniões, como a pele de cobra que se troca de tempos em tempos — para se tornar maior (?).

Veja também:
>> Marcelo Ariel comenta Sobrevivendo no Inferno

Cubatense, autodidata, segundo Ferreira Gullar um dos melhores poetas contemporâneos, em sua poesia Marcelo Ariel põe no mesmo palco traficantes e filósofos; fala de catástrofes e coisas prosaicas; cria imagens deslumbrantes ou dolorosas ou difíceis de traduzir — seus versos às vezes perguntam, como Drummond: trouxeste a chave? Esses elementos se unem porque cada um traz uma verdade que não é a verdade maior e que se esvai como todo o resto. “Jamais saberemos o que é Real, o Irreal nos cerca, diria até, que o Irreal nos governa”, diz.

Ariel entende do modus operandi do jornalismo — e o despreza. A primeira frase que diz, no momento em que chega para a entrevista marcada, é: não sei se você sabe, mas não dou entrevistas. O motivo para isso teria sido o despreparo de um jornalista do jornal O Estado de S.Paulo: “Ele parecia um débil mental”. O jornalista não tinha lido Tratado dos Anjos Afogados (Letra Selvagem, 2008), segundo livro de Ariel. Não fez fotos.

Para Ariel, o jornalismo cultural seria isso: superficial, despreparado, morto. Assim sendo, a entrevista caminhou sempre por um terreno perigoso. As perguntas tiveram de ser entregues escritas previamente. Aceitas, Ariel as responderia por escrito. O texto final das respostas, que segue abaixo, se mostra revelador do que o poeta pensa sobre si, sobre a poesia e sobre suas influências.

Um amigo do poeta, Alessandro Atanes, disse que Ariel cria poesia enquanto conversa, sem momento previsível. A última pergunta que fiz, portanto, foi: esta entrevista poderia virar poesia? Ao que Ariel respondeu: “Se for publicada na íntegra, talvez…Talvez ela possa se tornar inútil como um poema, com a vantagem de ser esquecida mais rápido…”.

Marcelo Ariel, em Santos | imagem: Duanne Ribeiro

Sou um ex-poeta, todos são poetas, menos eu

Devo absolutamente tudo o que sei ao meu bairro, à minha rua, à minha família e a meus amigos. Fora deste círculo que encerra em si inúmeros mistérios, para mim nada mais existe, além do abismo do tempo e da parede absoluta da morte. Escrevo por causa da insônia parcial, ou seja, por causa de uma parte de mim que jamais dorme e certamente não morrerá. A escrita é apenas a forma precária que essa parte encontrou para se comunicar com um falso exterior.

Como diria Borges: somos um pensamento do mundo e não o oposto, mas podemos ainda assim intervir e melhorar ou piorar as coisas.

Shakespeare, Homero, Cervantes, Camões e Dante são nossos contemporâneos — porque a humanidade não mudou, apesar dos ‘avanços da ciência’, não passamos de Quixotes e Hamlets, seres em busca de Ítacas, perdidos em Infernos, Purgatórios e Paraísos criados por nossas mentes.

Tais referências estão nos meus textos. Fora deles, gosto de ouvir o som das vozes das pessoas que amo e Bach dentro da minha cabeça. Também gosto de ler quadros e esculturas. A experiência da leitura silenciosa dos quadros e esculturas de Farnese de Andrade para mim foi uma iluminação.

Não escrevo pensando no número de leitores possíveis (talvez pense uma vez ou outra nos leitores impossíveis). Tampouco me interessa a busca da compreensibilidade imediata dos fatos mentais que derivem do meu trabalho. Duvido que os meus textos sejam herméticos, como os de James Joyce: as referências utilizadas estabelecem conexões com outros textos — e o que isto significa? PEDAGOGIA, e não HERMETISMO.

Quanto à compreensibilidade, bem, no fundo ela não é um valor para a escrita, pense no Finnegans Wake e no Apocalipse de São João…

Não escrevo textos burocráticos. No Tratado dos Anjos Afogados não existem fatos objetivos; o que quero dizer é que procurei embaralhar as coisas para extrair delas um fato puramente mental e não-objetivo; não creio na ilusão da permanência, nem no limite interpretativo ou reinterpretativo das mensagens, tudo isso é apenas mistificação. O ideal seria que cada poema do livro fosse lido como a legenda de um filme iraniano.

A poesia do modo que a concebo nada tem a ver com força nenhuma, ela é uma antiforça. Mas não sou mais um poeta, sou um ex-poeta, todos são poetas menos eu.

***

Leia abaixo alguns poemas de Tratado dos Anjos Afogados

Alice no País das Maravilhas – Versão do Diretor

Estou
no Inferno?
Não,
é o Carandiru
e faltam
5 segundos para o
massacre dos 111.

Titanic World

Quando tudo for transformado num shopping center
e o próprio ar for etiquetado
quando a água substituir o ouro
e o ouro por sua vez for reduzido a mero asfalto
nessa hora a humanidade quase extinta
sonhará com escombros
e dos bueiros irá se erguer um Sócrates-Cristo
armado até os limites do insano.

Tolstoi no Motel

Comparo inutilmente
o suor do amor com o orvalho
ou com a chuva passageira,
e o silêncio que fica com
um poema sem palavras
ou com um espelho no escuro

e sonhar com ele
com andar na água
ou tentar lembrar como.

Caranguejos aplaudem Nagasaki

(Vila Socó)
Corpos em chamas se atiram na lama
mulheres e crianças primeiro
caranguejos aplaudem Nagasaki
bebê de oito meses é defumado
enquanto Beatriz
agora entende o poema derradeiro
Beatriz mãe solteira antes de morrer
deu um inútil pontapé na porta

No ar
gritos mudos
a noite branca da fumaça envolve tudo
alguém no bar da esquina
pensa em Hiroxima
nas vozes
horror e curiosidade acordaram a cidade
se misturando
dentro do inferno olhos clamam
por telefone
o ministro é informado
— O fogo os consome…
A sirene das fábricas não
silencia
Dois serafins passando pelo local
sussurram no ouvido
do Criador
‘Vila Socó: meu amor’
Uma velha permaneceu deitada
em volta da cabeça na auréola
o último pensamento passa
o coro das sirenes
no meio do breu iluminado
uma garça voa assustada
com os humanos e seu inferno criado
no mangue o vento move as folhas

Um bombeiro grita:
— KSL! O fogo está contra o vento! Câmbio…

Foi Deus quem quis
diz o mendigo
que sobreviveu porque estava dormindo no bueiro da avenida
Um orgasmo é cortado ao meio
quando o casal percebe o fogo
queimando o espelho.
Voltando no tempo
lamentamos
o movimento do gás
levíssimo iceberg
que converteu fogo em fogo, horror em horror

Vila Socó estacionou na História
ao lado de Pompéia, Joelma e Andrea Doria
Pensando nisso
ergo neste poema um memorial
para nós mesmos
vítimas vivas do tempo
onde se movimenta a morta se espalhando na paisagem
como o gás
que também incendeia o sol
(bomba de extensão infinita)

Beatriz sentou perto da porta e ficou olhando o fogo.
Até que invade a cena a luz suave de um outro sol frio
Fim de jogo.

(O que não queima)

Beatriz agora é outra coisa e contempla:
raios negros num céu negro
depois brancos num céu branco
suavemente penetrei num jardim
onde uma única árvore existe.

(O incêndio acaba e a garça pousa no mangue, onde os anjos sonham)

Naquela noite um acordou
andou no meio das chamas
e as chamas
o queimaram.

[poema dedicado aos sobreviventes da tragédia da Vila Socó, em 24/02/1994]

O Abismo

é um céu invertido
onde um sol enterrado
espera teu consentimento
para brilhar

Nomenclatura

Um hospital chamado morte
Um cinema chamado sonho
Um encontro chamado partida
Um cemitério vazio
Num lugar chamado vida.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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