Beneton e a prática da transgressão

Esses anônimos não são, portanto, heróis — constituem a antítese do herói: o que pretendem é apenas o próprio proveito, sobrevivência, sexo ocasional

I

A entrada triunfal do pobre na literatura deu-se, a rigor, em 1554 com o Lazarillo de Tormes, de autor anônimo, editado quase simultaneamente em três cidades à época sob o domínio da coroa espanhola: Burgos, Antuérpia e Alcalá. É de supor que tenha havido uma edição anterior, que não chegou até nós, mas, seja como for, a ausência do nome do autor em sua portada tem uma explicação bem plausível: falar de pobre àquela época não seria de bom tom e, ainda por cima, colocar em questão a autoridade da igreja católica muito menos. Talvez por isso – e, mais ainda, em razão da rápida popularidade que o livrinho alcançou –, cinco anos depois, o Lazarillo de Tormes acabou na lista dos livros proibidos.

Desde então, o pobre na literatura mundial sempre rendeu bons contos e romances, como mostra Gente Pobre, de Fiodor Dostoievski (1821-1881), publicado em 1846, ainda que os pobres de São Petersburgo não fossem tão pobres quanto os pobres da África, da Ásia e da América Latina que conhecemos hoje. No Brasil, o pobre só faz a sua entrada triunfal na literatura na década de 1930, época do romance social, de cunho neonaturalista, que boa parte da crítica uspiana costuma definir como uma vertente do Modernismo, talvez para dar à Semana da Arte Moderna de 1922 uma importância nacional que jamais teve.

É verdade que Mário de Andrade (1893-1945) com Macunaíma (1928), e Oswald de Andrade (1890-1954), com Serafim Ponte Grande (1933), deram uma contribuição significativa, mas não se pode resumir o romance modernista brasileiro a esses dois nomes. Afinal, não se pode esquecer que tanto Cacau (1933), de Jorge Amado, como Os Corumbas (1933), de Amando Fontes (1899-1967), provocariam grandes debates. De 1933 também é o romance Parque Industrial, de Patrícia Galvão, Pagu (1910-1962), que traz na capa a inscrição “romance proletário”, mas que, publicado em edição particular, teve pouca repercussão.

Portanto, pode-se dizer que o pobre entrou na literatura brasileira com todas as pompas a partir de 1933, ano que marca o auge do romance social ou proletário (e aqui o termo compreende não só o trabalhador como o lumpen, o mendigo e o marginalizado, ou seja, o deserdado em geral).

II

Que a vida dos pobres na cidade grande continua a inspirar bons livros não há duvida. Um exemplo recente é A misteriosa pureza dos tolos: histórias entre ruas e padarias (Vinhedo-SP: Editora Horizonte, 2011), do advogado Marco A. H. Beneton (1969), um livro formado por 16 contos bem-humorados que nos fazem questionar por que as pessoas agem da maneira que agem, muitas vezes de uma forma que foge à luz da razão.

Obviamente, os personagens deste livro de contos já nada têm da literatura de cunho social da década de 30 nem sonham em virar o mundo de cabeça para baixo para instalar o “paraíso” operário na Terra, ainda que seja debaixo do tacão de um partido político cujos dirigentes o primeiro que fazem quando alcançam o poder é se deliciar com os banquetes da corrupção.

Como o anarquismo dos imigrantes italianos e espanhóis da década de 1910, o comunismo das décadas de 1930 a 1950 que empolgou alguns brasileiros até a década de 1970 virou, hoje, uma vertente folclórica – pois todos já tiveram provas suficientes de que a aspiração de um mundo mais justo acaba sempre onde começa a algibeira, como já se dizia na década de 1920. E que aqueles que defendiam esses ideais, tal como na Rússia de hoje, o que mais queriam era chegar ao poder para também se locupletarem com subornos e mais subornos, gozando de todos os prazeres que só a riqueza ilícita traz. Afinal, ninguém é de ferro.

Nem por isso a literatura de hoje, como aquela que teve início com o Lazarillo de Tormes e seguiu-se com o Guzmán de Alfarache, de Mateo Alemán (1545-1615?) e El Buscón, de Francisco de Quevedo (1580-1645), formando o ciclo da literatura picaresca, deixa de privilegiar o pobre como seu personagem principal. Só que o pobre da literatura deste começo do século 21 voltou às origens: como o Lazarillo de Tormes, não se rebelam contra a ordem social, aceitam estoicamente o status quo social – em que o mais ladino é sempre aquele que se dá melhor na vida.

São desenganados do mundo que sequer aspiram à escala social, mas situam-se nela como seja possível, ainda que nos seus mais ínfimos degraus. Estão integrados, fazem parte da sociedade como podem. Muitas vezes, sem saída, descambam para a transgressão, constituindo a grande parte da massa carcerária do País, formada por pessoas com até 30 anos de idade, analfabetas e desqualificadas profissionalmente – na maioria, recrutadas para os exércitos do tráfico de drogas. Essa é a grande tragédia brasileira dos nossos dias.

Esses anônimos não são, portanto, heróis, mas anti-heróis, pois suas histórias não se desenvolvem no sentido do bem comum. Constituem, isso sim, a antítese do herói, pois o que pretendem é apenas o seu próprio proveito, a sobrevivência, e apenas isso, mesmo quando esse proveito se limita a fazer sexo com uma transeunte ocasional.

III

Os anti-heróis de Beneton, pícaros modernos, ou neopícaros, são assim: amorais, saem de um relacionamento para outro sem nenhum sentimento de culpa, são todos vítimas do pecado original. Como no conto “A padaria” em que o protagonista, depois de um affair com a caixa do estabelecimento comercial, acaba por abandoná-la sem nenhuma explicação, depois que o pai da garota havia sido assassinado por ladrões e a padaria da periferia teve de fechar as portas.

Em “Amores incompletos”, o cenário é o mesmo: ruas na maioria sem asfalto, de terra batida, enlameadas ou poeirentas. “Quando se vive na miséria, como periférico do sistema, as conseqüências da pobreza são irremediáveis”, reflete o protagonista do conto em que um pastor assassina uma fiel e se justifica dizendo que a moça o tentava quando estava no púlpito. Depois, o pastor é assassinado na cadeia por um pai de santo. Outra típica cena da tragédia brasileira dos nossos dias.

São histórias de brutalidade que já não causam nenhum estupor – tudo entorpecido, banal –, pois a transgressão da lei já se tornou lugar-comum. Histórias da periferia em que a vida nada vale, pois as instituições já não funcionam, a polícia é corrupta e cúmplice daqueles que deveria reprimir. Em outras palavras: estamos diante de um gênero típico de uma situação histórica de crise.

O conto que mais foge desse estereótipo – por sinal, o mais longo – é “A garota do Fantástico”, em que o narrador descreve o encontro surpreendente com uma ex-protagonista da apresentação de um conhecido programa de televisão brasileiro, o Fantástico, vinte anos depois de sua fama. Em 1987, ele, rapaz do interior, estudante de Direito em São Paulo, saíra atrás da garota pela Avenida Paulista, depois que a reconhecera como a moça do Fantástico, para, no final da perseguição, receber um humilhante e solene “fora”, que o marcaria por anos a fio.

Duas décadas mais tarde, ele, já advogado famoso e bem sucedido – típico exemplo dos escapes que a sociedade brasileira ainda oferece ao menos a quem ainda consegue ter acesso à educação formal – tem a oportunidade de conhecê-la numa festa de bacanas: agora, ela é apenas uma garota de programas para executivos que possam pagar por seus serviços. O desenlace surpreendente é como o advogado bem-sucedido faz para se vingar do “fora” de vinte anos atrás.

IV

No prefácio que escreveu para este livro, o professor de História e jornalista Heródoto Barbeiro, um dos poucos apresentadores cultos de telejornais no Brasil de hoje, diz que tem certeza de que os personagens criados por Marco Beneton são conhecidos do leitor, que, por isso mesmo, tem tudo para se apaixonar por eles. Tal qual Heródoto diz ter se apaixonado por Zé Bobina, um freqüentador assíduo do bar que seu pai tinha na Baixada do Glicério, região pobre e degradada do centro velho de São Paulo.

Desempregado, sem família, bebedor de cachaça, que falava mal de tudo e de todos e morava num dos inúmeros cortiços incrustados nos casarões do bairro, Zé Bobina era um desses tolos, pois não havia sabido ascender na escala social, tornando-se um anti-herói do cotidiano da grande cidade, bebendo até cair na rua, talvez para apressar um futuro que parecia certo – a morte como indigente. Se tivesse sorte, o seu corpo ainda poderia servir como fonte de estudos para os alunos de Medicina.

Autor

  • Doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (1999), Fernando Pessoa: a Voz de Deus (1997); Bocage – o Perfil Perdido (2003), e Tomás Antônio Gonzaga (2012), entre outros.

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