Os Modos da Fala

Lugar de fala e lugar de escuta envolvem muitas camadas, limites e nuances difíceis de discernir. Face à confusão, abundam textos sobre os conceitos, seus usos e abusos. Assim, antes de mais nada, é preciso delimitar o espaço de discussão. O lugar de fala sempre compreende relações de poder. Já dizia Foucault, discurso é poder. É a partir dele que interpretamos o mundo e os outros de uma forma ou de outra. Mas quem fala, de onde fala?

O lugar de fala pode ser entendido num primeiro sentido como o lugar de onde o sujeito fala: a condição socioeconômica, o gênero, a cor, orientação sexual etc que condicionam o ponto de vista de quem fala, a perspectiva de onde se fala. Nesse sentido, todos temos nosso lugar de fala, que pode ser valorizado ou desvalorizado, reconhecido ou silenciado. Em uma sociedade como a nossa, em que se valoriza o homem branco heterossexual e abastado, é a voz dele que é ouvida e tudo é definido segundo sua perspectiva, seus valores e costumes.

Em outro sentido, o lugar de fala ainda se refere ao local requerido/exigido pelas minorias, de onde se pode falar e ser ouvido pelos outros — espaços reconhecidos pela sociedade — mídia, instâncias políticas de representação, âmbitos acadêmicos-científicos. Assim, o lugar de fala outorga legitimidade e autoridade a quem fala.

Mais recentemente, numa tentativa de reverter a situação, movimentos sociais têm adotado uma postura que limita o discurso ao lugar de fala de cada falante. Isso significa: “heterossexuais parem de falar dos homossexuais, homens das mulheres e brancos dos negros, ricos dos pobres”. Pois, uma vez que não vivenciaram/experimentaram a opressão, suas falas só podem se converter numa distorção da realidade e/ou num roubo do protagonismo, silenciando-os mais uma vez. Apenas quem vive determinada situação tem legitimidade e autoridade para falar sobre ela segundo essa perspectiva. Alguns exemplos: carta aberta aos brancos pró-movimento negro ou vamos falar sobre o lugar de fala.

Ambos os sentidos apontados têm, sem dúvida, sua razão de ser, mas também suas armadilhas. Há muito é sabido que de fato os discursos das classes dominantes narram a história e o modo de ser dos grupos excluídos com a finalidade de legitimar e manter a subserviência destes. É assim que constroem narrativas que consideram os pobres como ignorantes, os negros inferiores, as mulheres histéricas e incapazes, os LGBT’s depravados ou doentes, os índios preguiçosos. Como diz Marilena Chauí, apropriando-se de Claude Lefort, em Ideologia e Educação: “Quem, nas sociedades ocidentais modernas, tem sido sistematicamente definido como imaturo? A criança, a mulher, as “raças inferiores” (negros, índios e amarelos) e o povo. Qual a consequência fundamental da imputação de imaturidade a essas figuras? A legitimidade de dirigi-las e governá-las, isto é, de submetê-las.”

A ideologia da imaturidade opera transformando o “discurso de” no “discurso sobre”. Na impossibilidade de que os próprios agentes possam dizer a realidade que experimentam, surge um discurso externo a essa realidade, um “discurso sobre”, substituindo o “discurso de”: “Onde não é possível o discurso das mulheres, cria-se o discurso sobre as mulheres”. A ideologia, porém, não é apenas um poder que se exerce externamente, mas um poder que internaliza a dominação nos próprios indivíduos. Daí provém a dificuldade em combatê-la. Ela se naturaliza através de uma voz universal e sob o manto da aparente racionalidade. Dessa forma, o discurso ideológico transforma o outro em objeto, tido como incapaz de se definir e entender suas demandas.

Também não é difícil encontrar discursos que têm como objetivo criticar a ideologia mas acabam por reproduzi-la ao tomarem para si, enquanto proferidos por seres “iluminados”, o dever de conduzir as massas “não-emancipadas”, criando um discurso autorizado pelo conhecimento sobre elas e para elas, sem, contudo, ouvi-las, levando a todo tipo de distorção. Isso as mantém distantes dos espaços de poder e assalta, num tom paternalista, o chamado protagonismo.

Assim, é possível perceber que todos podem falar, porém apenas alguns são ouvidos. Algumas vozes têm mais peso do que outras. Daí a preocupação com a questão do protagonismo. Quem é excluído muitas vezes passa um longo tempo tentando se fazer ouvir e ter seus direitos reconhecidos sem sucesso. Quando alguém com peso diz precisamente a mesma coisa é ouvido e parabenizado pela sensibilidade, enquanto na prática as minorias continuam no lugar que lhes foi designado.

É claro não é preciso ser negro para se revoltar contra o racismo uma vez que somos capazes de sentir empatia. Mas só é possível sentir empatia à medida que se escuta e se toma conhecimento da opressão sofrida por negros. Dessa forma, só porque as minorias já alcançaram, à força, algum lugar de fala, ainda que restrito, é possível conhecer sua experiência e a especificidade de cada opressão.

Por todas essas razões fica claro a necessidade da tomada dos espaços pelos grupos excluídos para que esses possam construir suas próprias narrativas, desmistificar preconceitos e organizar políticas que atendam seus anseios. Há, no entanto, divergências no interior dos próprios grupos quanto à nova postura que dá primazia epistemológica à experiência e à vivência. Com ela poderíamos cair numa armadilha. (Vejam Por um local de fluxos, post da Travesti Reflexiva ou Reflexões sobre lutas sociais e protagonismo, de Sabrina Aquino).

Primeiro no que diz respeito à própria unidade dos movimentos: uma mulher não poderia falar acerca do problema da violência doméstica, do estupro, da criminalização do aborto a menos que tenha experimentado diretamente tais situações. Esse entendimento acaba por substancializar “A Mulher”, “O Negro”, “O Gay”, ignorando a multiplicidade de experiências de cada indivíduo enquanto a quer valorizar. Seguindo essa lógica, nem mesmo alguém negro poderia falar pelo movimento negro, já que este não vivenciou todas as experiências de racismo: ele poderia falar exclusivamente sobre sua vivência. Em todo caso, cada um poderia se revoltar apenas contra as injustiças que lhe são pertinentes.

Ignora-se ainda que toda experiência, todo fato, necessita de uma interpretação para que ganhe sentido. No interior dos próprios movimentos sociais encontramos divergências entre as interpretações e as estratégias de ação. Pela própria natureza da ideologia, frequentemente acontece de não haver consciência clara da condição de oprimido (e também de privilegiado) — não é raro encontrar falas de mulheres que reproduzam o discurso machista, por exemplo. Em suma, experiência e interpretação se complementam e se esclarecem ao invés de se excluírem.

Além disso, se o outro for considerado de todo inacessível também já não faria sentido ainda dizer, porque se falo, quero mostrar algo ao outro, fazê-lo entender, mas se ele de qualquer maneira não pode entender porque “nunca sentiu na pele”, o diálogo estaria condenado à impossibilidade. Seria algo como considerar que não vivemos num mesmo mundo, e olhos e ouvidos não servissem para nada. Ninguém mais poderia falar nada sobre nada, a não ser sobre si mesmo.

A experiência não pode ser de forma alguma desprezada, mas não dá autoridade absoluta a ninguém — como provam as divergências — e também não pode servir como argumento irrefutável para rebater críticas, como tem ocorrido frequentemente (ver o post de Helena Viera). Obviamente que isso não autoriza tomada ou protagonismo ou da liderança dos movimentos, deixando mais uma vez o debate a cargo de seus personagens tradicionais. O que não pode acontecer é tornar as vozes que experimentam a opressão impassíveis, sem possibilidade de discordância, nem deslegitimar a priorioutras vozes — a crítica só pode ser feita a posteriori — sob a pena de inviabilizar qualquer debate, inclusive correções benéficas para os movimentos.

Por fim, é importante não esquecer que entre o lugar de fala e o lugar de escuta há os modos de fala e os modos de escuta, e neles muita coisa se encontra em jogo. Ao mesmo tempo em que algumas militâncias não querem que os “privilegiados” falem sobre suas pautas, querem “apoio” e que se portem como coadjuvantes. No entanto fica muito difícil apoiar sem falar, apoiar sem lutar. Não há sentido falar em protagonismo sem que haja coadjuvantes. E à diferença dos figurantes, os coadjuvantes costumam ter fala.

Entendo que existem outros modos de apoiar a luta alheia que não impliquem o apoio bovino e silencioso restrito a um “like”, nem o roubo do protagonismo e a transformação do outro num objeto inerte.

Um modo de apoiar a causa alheia, além de não reproduzir os preconceitos (claro), é dar a voz a quem não tem. Diferente do “falar sobre”, o “falar com” exige um exercício de escuta cuidadoso que busca engrossar o coro contra a opressão a partir da fala dos próprios envolvidos, e não silenciar vozes, substituindo-a através de uma observação distante e externa que por vezes leva a erros grotescos. O fato de, por simples menção de apoio, por embrenhar-se em um debate em defesa, ou por pôr um ponto em dúvida de alguma pauta, resultar, de saída, numa a acusação de roubo de protagonismo é um exagero perigoso.

Nem toda fala é opressora e transforma o sujeito num objeto. Pelo contrário, pode ser um meio de valorizar e ampliar a voz de quem está apartado, articulando a escuta e o conhecimento. Declarar apoio, relatar algum fato, não significa necessariamente apropriar-se de pautas que não lhe dizem respeito, mas um posicionamento ético e político que pode influenciar outros. Mais promissor do dizer previamente “sai daqui, que esse não é seu lugar de fala”, seja tentar estabelecer um diálogo capaz de transformar, pois essa parece ser a única maneira de se fazer perceber a estratificação social em que vivemos.

A luta não deveria ser contra o “privilegiado” em si, contra indivíduos, mas contra o discurso ideológico e a estrutura que sustenta o privilégio e se infiltra nos mais profundos meandros sociais. Ao privilegiado importa desconstruí-lo, afinal se se quer uma sociedade mais justa, e supondo que ele não vá desaparecer e deverá fazer parte dela no futuro, não há outra saída. O lugar de fala não é um ponto fixo que cada um encontra-se condenado para todo sempre. É possível, a partir da escuta, nos deslocarmos de nosso ponto de vista.

É claro que nem todos estarão abertos ao diálogo e dispostos a reconhecer e abrir mão de seu privilégio e não adianta insistir. Mas onde for possível o diálogo, ele não deve ser de antemão bloqueado sob o risco de ser um tiro no pé, gerando afastamento e restringindo ainda mais o alcance de falas, relegando-as aos espaços em que já encontra ressonância, o que certamente dificulta a desconstrução almejada.

Não há dúvidas quanto à necessidade de tornar plural o espaço da fala. Porém, o fato de se buscar espaços de fala não implica o silêncio do outro, nem pode se tornar argumento para interdição do espaço de diálogo, tornando-o um monólogo impotente, que no fundo acaba por afirmar “que cada um cuide de sua própria opressão”. Isso acaba levando a uma desresponsabilização do privilegiado, como aponta Renan Quinalha. A pluralização dos espaços de fala visa justamente enriquecer o espaço de diálogo trazendo divergências e confusões à tona, tornando possíveis a compreensão e a construção de novas narrativas. É preciso inserir-se no mesmo espaço, pois o discurso é um espaço de disputa. Bloquear indiscriminadamente a participação de outros no debate contra a opressão parece favorecer a própria opressão. Uma crítica sistemática parece mais útil que a interdição prévia. E a pergunta que fica é: estaremos construindo pontes ou abismos? Ampliando ou diminuindo vozes?

Autor

  • Poeta e formada em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Estuda filosofia contemporânea. Tem poemas publicados em revistas literárias. Escreve em instanteinacabado.wordpress.com e facebook.com/instanteinacabado.

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