Vendendo a arte da contemplação

O reclame principal da arte é chegar até o público, mostrar-se por inteira, desvendar-se — para que ambos participem do momento de sua recriação

Na terra do Carnaval imaterial, abençoada pelo padroeiro São Bartolomeu, pode-se observar que o ritmo de vida dos habitantes não mudou muito nas últimas décadas, se comparado às outras cidades vizinhas, no Recôncavo Baiano. Em Maragojipe cenas ímpares são comuns ao cotidiano das grandes-cidades: senhoras nas janelas sem medo da violência, crianças correndo nas ruas sem se preocupar com o trânsito e o maravilhoso mar que banha o porto do Cajá a contemplar os visitantes com sua brisa.

Adentrei becos estreitos, vielas, conversei com alguns moradores para encontrar o que havia além da calmaria daquele lugar e acabei desvendando muita inquietação dentro de um antigo casarão na rua Nova do Colégio. Um contraste total com o marasmo das ruas silenciosas, cortadas apenas pelo som longínquo das filarmônicas em seus ensaios. Ao passar por sua fachada rústica me impressionei com garrafas pet nos espaços dos vidros, como se fossem as janelas.

Olhando mais atentamente vi outros entalhes que me chamaram atenção. Era uma humilde e enorme galeria de artes e fui recebido com muito carisma e entusiasmo por Tai Guimarães, dono do espaço. O sorriso tímido deixava escapar em alguns risos quase soluçados a satisfação em saber que havia cada vez mais pessoas visitando suas obras, pois este, segundo ele, é seu maior prazer: transmitir a arte.

Segui por todos os cômodos, conhecendo as ideias e obras do artista. A Galeria Antônio Guimarães, onde ele reside, é uma homenagem ao seu falecido pai. O título não foi mero acaso, Antônio Guimarães foi um ambientalista ativista e que ensinou ao filho muito do que ele sabe hoje. Na galeria, o excêntrico artista desenvolve um curso em que leciona além da consciência ambiental a arte dos origamis, uma técnica milenar introduzida pelos monges. Ele diz que o trabalho envolve disciplina, memorização, criatividade; requisitos indispensáveis para ele.

O principal produto dessas dobras de papel são os pássaros grou. Existe uma lenda que diz que ao dobrar mil desses singelos pássaros pode-se realizar um desejo almejado, e questiono o artista sobre qual seria o seu. Tai me diz que se essa lenda fosse verdadeira ele já teria realizado vários desejos, não apenas um, e completa: “Existem lendas como essa, evidentemente, mas tem uma coisa que a gente tem que perceber: a fissura de realizar seu desejo não é bem por aí. Tem que ter a paciência, e esperar que o desejo está sendo realizado. Está sim! Mas se eu vou pegar o desejo realizado totalmente enquanto eu estiver vivo, eu não sei. Mas ele está sendo realizado porque eu já tenho o poder de sair, de andar, de circular por onde imaginar. Isso para mim já é um desejo realizado, mas por completo mesmo eu não espero”.

Tai Guimarães, considerado por muitos moradores da cidade uma figura pitoresca, é um artista voltado para o seu tempo, interessado em melhorar o meio em que vive. O planeta é uma preocupação na vida desse capricorniano que tem como ideal contribuir para que os indivíduos possam viver em uma relação mais humanística com o ambiente natural e social criando assim possibilidades para um melhor desenvolvimento de suas potencialidades. Nesta perspectiva, o lixo tornou-se o elemento primordial em sua criação artística. As sucatas que recolhe transformam-se em obras de arte que, além do objeto artístico, visam à natureza do lixo acumulado. Esta arte refletida na educação ambiental repensa o consumo e o descarte, ao mesmo tempo em que proporciona o reaproveitamento de resíduos, sugerindo-lhes novas formas.

Os objetos de Tai surgem pelo fazer do artista, que vislumbra uma viagem de rumo imprevisto através de suas experiências óticas. Suas pinturas, esculturas, objetos, desenhos e colagens são como um suporte de materiais descartados, reutilizados, com o toque de uma linguagem plástica, da escritura simbólica de um artista que não se cansa de buscar, interpretar, reinterpretar novas formas e novos conceitos artísticos.

O estilo de suas obras se baseia no dadaísmo, vanguarda surgida na Europa em 1916, sendo a negação total da cultura, defendendo o absurdo, a incoerência, a desordem e o caos. Tai diz que se baseia na desconstrução da arte seguindo um conceito de conscientização ambiental. “Minhas obras estão inacabadas, pois quando eu aplicar o material que eu tenho a mais aqui no ateliê, ela vai estar formada e vendável como uma obra de arte. Tudo isso aqui são rabiscos que eu fiz, como uma poesia rabiscada”, diz.

Tai conta que também pinta pessoas, e que o critério de suas pinturas se dá do seguinte modo: Ele senta em um lugar comum e fica ali por horas, flertando as pessoas silenciosamente. A partir do que vê ele transmite para o papel com uma mescla de características. Estimular o contato com a arte faz parte do projeto deste artista, pois é indispensável na formação de uma cultura visual. “Torna-se necessário levar a arte a todos, nas galerias, nos museus, nas escolas, nas casas de cultura, nas ruas, onde o povo estiver”, diz ele.

A arte há de ser comunicada e o seu reclame principal é chegar até o público, mostrar-se por inteira, desvendar-se, para que ambos participem do momento de sua recriação, sob os olhos indagadores de quem vê. Como explica o próprio Tai, citando Thomas Paine, o revolucionário da liberdade: “A arte transforma nossa sensibilidade e nossa relação com o mundo. Ela é uma necessidade, pois nos provoca sensações e expressões mais diversas. Por isso a buscamos. Os objetos artísticos em sua complexibilidade encontram-se intimamente ligados nos contextos culturais, tornando-se necessário que se dialogue com a obra, enriquecendo dessa forma o contato com a arte e com o discurso do artista”.

A ocupação, e não preocupação, como o Tai enfatiza, com os problemas ambientais está presente em suas atividades desde a década de 1980. O artista não é contra a evolução, nem tão pouco contra as pessoas que aplicam determinados “vacilos” com a natureza: “Eu quero fazer minha parte, dizer que existe uma possibilidade de amenizar o impacto ambiental através da arte. Você não pode proibir ninguém”.

Ele conhece muito bem a região não só por uma deliberação pessoal, mas porque é guia e leva turistas por grutas, cachoeiras e trilhas da região. Com amigos feitos nessas aventuras ele viajou para outros lugares, inclusive fora do Brasil.

Desde os doze anos ele saiu pelo mundo em devaneios. Assim conheceu vários países da Europa e da América Latina. Sempre viajando de barco com pessoas na grande maioria de nacionalidades diferentes. E se o assunto é nacionalidade Tai é bem objetivo: “Eu sou turista, sou gringo, cara! Não tenho nacionalidade, no sentido de que eu chego, volto, saio…”.

Além de todos seus atributos como artista, ambientalista e velejador, Tai também se mostra como mostra um praticante do cicloturismo, remo e caminhada. Com feitos inéditos como a travessia Maragojipe-Salvador feita a caiaque e seguir de bicicleta de Salvador a Belo Horizonte. Pergunto então: Sem receio Tai, qual a sua idade? E ele me diz: “Bem, eu não vou mentir pra você, eu já estou na casa dos 40. Como dizem, eu já sou um coroa”. Mas como o próprio conota com suas palavras, ele não se considera assim. “Quem pega uma bicicleta e roda o mundo, quem rema quilômetros de caiaque e quem se aventura mundo a fora como eu faço não deve ser considerado um velho. Idade são apenas números”.

Entretido com os temas humanos, questões sociais e pessoais, pergunto ao peregrino se ele teria ídolos, e ele responde negativamente. A glorificação de Tai Guimarães segundo o próprio é apenas a arte, em pura essência, a arte. Relata também que frequenta o Pinho, uma vertente do candomblé da região que já existe há quase quatro séculos. Ele explica que é admirador, mas por ter uma grande sensibilidade e visão, os membros do grupo querem que o artista seja alguma representação deles. Mas Tai não quer se apegar a nada, muito menos a religião. Até as técnicas de permacultura ele afirma já ter tentado se adaptar, mas tinha que se tornar um escravo do seu quintal. “A única coisa que eu me apego e que não me decepciona é a arte”.

Em meio a isso pergunto a Tai sobre a relação “bem, mal e a beleza da vida”, e ele explica: “Eu acredito numa força superior, que as pessoas podem determinar como Deus ou como quer que seja. Mas existe uma força, afinal ninguém está aqui a passeio. Se alguma coisa acontece em sua vida é porque teve que acontecer. Nós não somos só matéria. Se você está distante dessa força você fica do lado escuro do mundo. Eu sou, você é, todos somos energias. Essa energia é que nos dá vida. A beleza está fora da estética do ser humano, não está no corpo da pessoa. A beleza está no comportamento dela, no falar, como é que ela age diante de uma situação. Essa que é a beleza! Porque a estética não funciona, ela nos engana. Eu nunca vejo a estética de ninguém, eu vejo o coração, o lado interior”.

Hesitei em sentar e anotar aquela tempestade de ideias que choveu sobre minha mente naquele instante, quando vi um caderno capa-dura com algumas brochuras e perguntei a Tai do que se tratava. Contou-me que eram poemas e recitou alguns deles. Maravilhosos e místicos, como quase tudo que havia ali. Indaguei porque não divulgava aqueles escritos e ele me conta sem muito pensar, nem lamentar: “Fui punk, pichava as estradas. Hoje eu picho telas, essa é minha poesia”.

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