Relicário | Fabrício Carpinejar

O poeta fala sobre como organiza seus livros e como eles interferem na sua vida

Ler não é só ler, um livro não é só um livro. Cada um se relaciona de forma diferente com o objeto livro, colecionando, protegendo ou rabiscando — e as histórias e as ideias que eles trazem vão ser parte de conversas, vão ser fonte de lembranças. A arte também é uma relação afetiva.

Fabrício Carpinejar nasceu em 1972, em Caxias do Sul (RS). Em 2003, recebeu o Prêmio Nacional Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras, por Biografia de uma Árvore, que foi escolhido o melhor livro de poesia daquele ano. Antes disso, havia recebido, da União Brasileira de Escritores, o Prêmio Cecília Meirelles e o Prêmio Fernando Pessoa. O livro Um Terno de Pássaros ao Sul recebeu o Prêmio Destaque Literário da 46ª Feira do Livro de Porto Alegre.

Carpinejar tem um site pessoal.

Como você guarda seus livros? Organiza segundo algum critério ou não? Encapa ou usa algum tipo de proteção?

Eu organizo meus livros por sobrenome, em estantes de Poesia Brasileira, Poesia Portuguesa, Poesia Estrangeira, Literatura Brasileira, Literatura Estrangeira, Crítica, Filosofia, Antologias, Cinema, Futebol, Pintura…Mas chegam mais livros do que posso organizar, o que transforma minha biblioteca em altamente intuitiva. Adoro não encontrar um título para achar algo que não procurava pelo caminho. Só não suporto fila dupla: uma tristeza ver um livro servindo de armário para outro. Não podemos ensinar os livros a mentir – depende de como deixamos os volumes em nossa biblioteca.

Admiro um capítulo do Senhor Juarroz, de Gonçalo Tavares: Juarroz tentava esconder dos curiosos a forma como ordenava sua biblioteca Tentou por ordem alfabética do título, a partir da primeira palavra, a partir da milésima palavra, em progressão matemática, porém sempre era descoberto. Desistiu e deixou sua esposa arrumar. Ninguém nunca mais desvendou o mistério.

Qual a sua relação física com os livros? Anota nas páginas, quando dá de presente, faz dedicatórias? Ou acha que tudo isso estraga o livro?

Anoto os livros com lápis. Uso régua e borracha. Livro que não é anotado me faz esquecer. Livro não sublinhado é domingo para dormir. É como se não tivesse comprado. Tenho o hábito de dar livros de presente, para mim e para os outros. Como sou autor, não faço dedicatória: sempre penso que é possível o presenteado buscar o autógrafo, mesmo que seja de um longínquo Garcia Márquez. Não rabisco a esperança de uma folha de rosto, mando um bilhete em anexo.

Você empresta livros? Se sim, por quê; se não, por quê.

Não empresto… Desculpa. Meus diários estão dentro de minhas leituras. É perder a continuidade dos meus segredos. Eu dou direto: não há pior tormento do que precisar de um livro e não lembrar para quem emprestou. Revirar a biblioteca e nada, revirar a caixa de endereços e nada. Mentira, há sim um pior tormento: pedir o exemplar de volta. É um constrangimento de ex-marido. Nunca a pessoa terá lido. Entendo e faço mesmo: todos os livros emprestados são os últimos a serem lidos. Não alcanço a equação: eu pego emprestado para não ler. Deve ser um modo de torturar os amigos.

Você dá livros de presente? Dá os livros que você mesmo gostou ou tenta descobrir o que a pessoa gostaria?

Não sou adivinho, senão estaria fazendo auto-ajuda para ficar rico (risos). A pobreza não é premonitória. Empobreço para enriquecer a imaginação. Ofereço os livros que gostei e que combinam com os pensamentos daquele amigo e conhecido. Minha tese é que o presente não é para ser aquilo que o outro esperava, mas aquilo que esperamos do outro.

Qual a sua relação com o conteúdo dos livros? Usa algum método para não esquecer o que leu? Costuma reler ou não? Copia citações ou conta para os outros as partes que lhe marcaram?

Meu método é o lápis, apontar quando gosto demais de uma frase. Para assinalar com o luxo de um estilete. Não copio nada, anoto as impressões num caderninho à parte, que não é um moleskine. Um moleskine não tornaria melhor o que escrevo. Narro todas as passagens que amei para meus filhos e mulher. Sou um fofoqueiro de estante. Eu reconheço as histórias como experiências reais de minha rotina. Não diferencio rua da página. Conservo de meu pai uma hierarquia de cruz: cinco quando o verso é demais, quatro quando é muito bom, três quando é memorável, dois quando valeu a passagem e um para revisitar. Somos esquisitos, né?

Você se lembra do primeiro livro que leu? Foi uma experiência marcante? Se não, qual foi a primeira experiência marcante que teve com livros?

O primeiro livro que li com toda doideira de lupa e insônia e dicionário e a sensação de enigma, de que se não entendesse eu morreria? A Divina Comédia. Decorei o inferno de Dante. E me assustei mesmo foi com o paraíso.

Os livros que lê fazem parte das suas conversas? Seu grupo de amigos costuma ter discussões em torno dos livros, mesmo em momentos de descontração?

Não reúno meus amigos para discutir livros, não tenho grupos de estudos, costumo traficar informações sempre em mesa de bar, lotações e universidade. Sou um traficante à luz do dia do verso. Muitas almas já se perderam comigo. Não emprego nenhuma solenidade para falar de literatura, as ideias correm como gritos de cozinha. Livro é para vazar na sala de estar do mundo.

Acha que o livro, como objeto, pode ser trocado por um e-book? Se acha que não, isso não seria possível mesmo com o Kindle, que imita uma página de livro, não emite luz e baixa quantos livros quisermos?

Olha, um e-book pode intensificar a leitura. Aumentar as possibilidades de proximidade e pesquisa. Mas sou um sapateiro do livro. Artesanal. Sofro uma imensa dificuldade ler um livro na tela do computador. Posso me cegar: é redundância: livro já é luz.

Qual livro que ainda não leu (ou que quer reler) gostaria que fosse seu último?

Quando começo um livro sei que não vou morrer até terminá-lo. Por isso deixei vários pela metade como uma sobrevida. É meu carnê de eternidade. Gostaria de ler um livro de meus filhos. Isso seria a glória.

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