imagem: Eduardo Nogueira
Um domingo desses qualquer nesse isolamento social que faz a gente perder a noção do tempo eu acordei de madrugada e perdi o sono. Sem nada pra fazer decidi ver televisão, nada em mente para assistir dei uma segunda chance à série animada Midnight Gospel — no lançamento, fins de abril, tinha tentado assistir, mas acabei descartando por achar meio pretensiosa. Desde então vi algumas críticas positivas e recebi recomendações. Naquele fatídico domingo recomecei a ver, descompromissadamente, dublado. Não sei se por não ter que ficar prestando atenção em legenda ou porque agora minha mente estava mais preparada, achei, nessa segunda tentativa, muito melhor do que inicialmente tinha julgado.
A série nos conta a história de Clancy, que não trabalha, passa os dias surfando na rede, e tem um podcast, sonhando em um dia ganhar uma grana como produtor de conteúdo, Clancy seria só mais um millenial, mas pelo contrário é algum tipo de divindade ou entidade cósmica habitando algum tipo de purgatório ou paraíso, e a rede dele é um intrincado simulador que possui uma infinidade de universos. Se isso te lembra videogame, você está correto, porque é essa a ideia, Clancy surfa a realidade por meio de avatares. Curioso que a gente esteja tão acostumado com a ideia de avatar como um personagem que incorporamos em jogos ou em chats que esquecemos o sentido religioso do termo: em hindu o avatar (de avätara, que quer dizer descida) é um recipiente de carne para receber o espírito de um deus.
Os lugares visitados por Clancy são sempre planetas, alguns parecidos com a Terra, outros totalmente diferentes, mas que se parecem no sentido de que estão sempre à beira do apocalipse. Ao descer nesses mundos Clancy sempre busca alguém para entrevistar e depois publicar a entrevista em uma próxima edição de seu podcast. Bem, como se o desenho já não fosse surreal o suficiente, é aqui que ele começa a ficar realmente muito estranho. Enquanto Clancy entrevista aquela personalidade vamos vendo de relance diversas histórias daquele pequeno mundo moribundo. Só que as entrevistas não são sobre o que está acontecendo, o que é mostrado constantemente é independente do que é visto. Para tentar explicar façamos uma breve narrativa sobre o primeiro episódio: “Malditos zumbis!”.
Clancy desce a uma versão do planeta Terra assolada por uma praga zumbi. Sendo uma crise de saúde pública sem precedentes, ele escolhe entrevistar o pequeno presidente, nunca ficamos realmente sabendo o nome do personagem, mas ele é um cara muito baixinho e que usa óculos escuros, ele é presidente dos Estados Unidos da América e um exímio matador de zumbis. Clancy pergunta se pode entrevistá-lo, ele responde que ok, Clancy comenta sobre os zumbis, mas ele diz que prefere falar de outra coisa, Clancy então pergunta quem são as pessoas se manifestando ao redor da Casa Branca, ele responde que são ativistas pela legalização das drogas, esse acaba se tornando o tema da conversa entre eles, que passa por legalização, meditação mindless, estados alterados da percepção, a forma como uma pessoa entorpecida vê o mundo, os perigos do uso de drogas. Enquanto o bate-papo se desenrola, somos levados numa pequena viagem audiovisual pelos últimos momentos daquele planeta, carregada de todo o gore clichê dos filmes de zumbi. No fim aquele mundo acaba e Clancy vai embora, de volta para sua dimensão. E é essa a tônica de todos os oito episódios da série.
Parece bizarro, fica mais! O dublador de Clancy e co-criador de Midnight Gospel, uma aventura de duas mentes, é um comediante chamado Duncan Trussell, que tem um podcast que existe na realidade, chamado The Duncan Trussel family hour (tem no Spotify se você estiver muito curioso), onde entrevista alguns famosos e outros nem tanto. O pequeno presidente do primeiro episódio é dublado por uma personalidade do rádio e da TV estadunidense, o médico especialista em saúde pública e uso de entorpecentes Drew Pinsky. A conversa deles é real e é uma reprodução do conteúdo do podcast, só que adaptada para funcionar na narrativa da animação, a qual é responsabilidade de Pendleton Ward, a segunda mente envolvida no projeto, criador e diretor da aclamada série de animação Hora de Aventura (Adventure Time no original). Então ao longo dos oito episódios acompanhamos nove entrevistados, não vou enumerar e descrever para não aborrecer vocês aqui, voluntariosamente lendo essas linhas mal escritas, mas é fácil de descobrir sobre eles na internet, vão desde psicólogos, a magos mestres da meditação, e tem até um ex-condenado ao corredor da morte. E absolutamente não falarei sobre o último episódio e o último entrevistado, se você pretende ver, evite a qualquer custo essa informação, basta dizer que aí se explicam encadeamentos que pudemos observar ao longo da série, e consegue ser tão desolador e ao mesmo tempo tão iluminado, que não tenho vergonha de dizer que me fez chorar.
Ilustração de Midnight Gospel, por Eduardo Nogueira
Tendo tudo isso sido dito, vamos tentar fazer uma explicaçãozinha a respeito do gênero em que se insere a animação. Partindo do título já temos uma boa pista do que se trata, Midnight Gospel pode ser traduzido como “Evangelho da Meia Noite”, ou “Evangelho do Fim do Mundo” o que faz mais sentido pra gente em português. A espiritualidade é um dos temas focais da série, mas não é tratada de forma prescritiva, autoritária, é mais uma jornada pelas diversas formas de perceber a realidade espiritualmente. A estrutura de como se desenvolvem os episódios lembra muito uma parábola, um gênero de narrativa essencialmente religioso, muito usado no budismo ou no cristianismo, e também em outras religiões. A parábola é uma narrativa que possui dois elementos, um explícito, a história contada, outro implícito, que é a tradição, seja social ou religiosa das pessoas ou do lugar onde se passa essa história, mas para fazer sentido é necessário um terceiro elemento: a moral da história se desvela na mente de quem ouve quando ele junta os dois elementos e soma junto a sua interpretação subjetiva ou, como se diz em literatura, tertium comparationis, a terceira parte da comparação, aquela revelação/epifania que a gente tem quando está realmente prestando atenção na parábola. Eu ainda lembro da minha primeira, muito tempo atrás, quando ainda era cristão, e me contaram a história do Bom Samaritano no catecismo.
Antes que eu esqueça tem um detalhezinho bobo acerca dos episódios: repare no monitor de Clancy, onde ele viaja pela rede, ele tem a forma de um triângulo, quase uma representação figurativa do exercício narrativo da animação. Aliás, o monitor, que pode representar tanto o caminho do meio do budismo, quanto o topo da sephiroth, a árvore da sabedoria na cabala, formado por kether (a coroa) no topo, ladeada por binah (compreensão) e hochma (sabedoria) acaba sendo apenas mais um dos símbolos que permeiam a animação, quase como easter eggs (ovos de páscoa, pequenos agrados dispostos fora do foco narrativo para os mais atentos, a palavra anda bem famosa ultimamente por causa dos videogames e filmes Marvel). É possível perceber triângulos, sephiroths completas, ouroboros, cruzes, e por aí vai, o que mostra um pouco da disposição dos criadores em relação ao que estão fazendo, nem todos vão perceber todos os detalhes, na verdade não precisam, mas são divertidos. Eu, não sendo especialista no tema da espiritualidade, sou mais um tipo de curioso que gosta de usar esses elementos narrativamente, acredito que, como eu, os autores do desenho não queriam saturar o público com essas informações, então deixam elas fora do enfoque principal, elas acabam sendo bacanas, mas de forma alguma são essenciais, e, de repente, pode ser melhor embarcar na viagem sem precisar prestar atenção nessas coisas.
Concluindo, Midnight Gospel se propõe a levar a outro patamar, mais maduro, as animações, nem sei dizer se isso é ou era necessário, nesse sentido tivemos animações bem legais nessa última década, material produzido para crianças mas com um pé no mundo adulto, explorando as neuroses e sabores, alguns bem doces, de ser um millenial, coisa como Apenas um Show, O Estranho Mundo de Gunball, Steven Universo e o já citado Hora de Aventura, todos eles têm momentos e narrativas riquíssimas sobre esse novo século que acabou de começar, só que mesmo com toda a riqueza narrativa essas séries ainda são voltadas para crianças. Midnight Gospel é outra coisa, é adulto, é maduro à sua própria maneira. Vai evoluindo, trata diretamente assuntos que nunca poderiam ser retratados em animações infantis. E é muito interessante, nesse sentido, que ele não o faça de forma imperiosa, a exploração de Clancy é respeitosa e empática, lida com diferenças de uma forma única, à primeira vista o personagem é bem antipático, construído à imagem e semelhança de tantos youtubers e comunicadores millenials que a gente já não suporta, mas ele evolui, ele aprende, e, se ele não é um completo “babaca”, é só porque ele é alguém disposto a ouvir e aprender do jeito dele. Recentemente tivemos um famoso youtuber, o Felipe Neto, se posicionando em diversos temas sociais e políticos, e até pedindo desculpas pelas babaquices antigas, mostrando que o sucesso não tinha apagado o ser humano que ele é. Clancy enquanto personagem me lembra muito isso, um ser em um processo de aprendizado, apesar do seu status divino.
A série acaba sendo sobre como nós estamos sempre à beira do fim, e sobre como toda a filosofia, literatura e conhecimento, além de não dar conta de resolver o problema antes que tudo se acabe tragicamente, também não nos ajuda a compreender o motivo de tanta dor e sofrimento. Mas se tem uma coisa que a gente pode esperar do conhecimento adquirido neste mundo tão transitório é que ele talvez traga pra gente um pouco de paz para encarar o caminho, que muitas vezes é exatamente o que precisamos. Midnight Gospel não é para todo mundo, não foi pensada e nem realizada para ser um sucesso massivo, mas também não é para uns poucos escolhidos detentores de uma sabedoria prodigiosa (quem já conheceu um fã de Ricky e Morty sabe do que eu tou falando, galerinha chata), Midnight Gospel é para quem quer prestar atenção, viajar nas questões oferecidas por aquelas pessoas, por aqueles personagens, sabendo que as respostas não são, nem se pretendem, definitivas, e que é assim o longo caminho que a gente tem que percorrer em busca de um pouco de sanidade nesse mundo tão louco.