Nos games, a interação permite a ilusão de que construímos a narrativa. É como se nossa cabeça estivesse a prêmio, desviando de machados e foices
O que um jogo de vídeo game pode ter a ver com uma obra literária? No caso de Alan Wake, tudo, ou quase tudo. Inspirado em diversas obras de suspense, como as de Stephen King, e com influência de séries como Lost e Twin Peaks, o game traz uma narrativa complexa em que não se pode confiar no que se vê e que chega mesmo a imagens poéticas que indicam o valor próprio da literatura.
O enredo é semelhante ao de Janela Secreta, Secreto Jardim, de Stephen King. Nele, um escritor de best sellers passa por uma crise criativa e resolve se isolar numa cabana à beira de um lago. Ele pretende encontrar um pouco de paz para voltar a escrever, mas o lugar nada tem de tranquilo e logo fatos estranhos começam a acontecer, fazendo com que ele questione a própria sanidade. Já no jogo, Alan precisa encontrar não só a sua criatividade, como também a sua esposa, que desapareceu assim que eles chegaram à estranha cidade de Bright Falls. Montanhoso e sombrio, o lugar é uma referência a Twin Peaks, série criada por David Lynch no início dos anos 1990.
Por um lado, o jogo peca por uma mecânica fraca. Os inimigos, espíritos de lenhadores e pássaros assassinos (Hitchcock ficaria orgulhoso), são sempre os mesmos, o que torna a experiência um pouco cansativa. Outro aspecto negativo são as “missões”, que são tarefas muito simples (pegar uma chave na casa ao lado para abrir uma porta qualquer). Mas o que é mais interessante em Alan Wake é esta aproximação entre game e narrativa literária.
Quem já leu uma boa história de terror, sabe o que é levar um susto após alguma frase de grande impacto. Assustar alguém tendo como recurso apenas a organização da palavra escrita não deve ser das tarefas mais fáceis, mas isso ocorre devido a imersão na leitura, do pacto que o leitor faz com o escritor: ok, durante algumas horas vou acreditar que isso aí que você está dizendo é verdade. A partir daí os dois passam a elaborar as imagens e as ações em conjunto, através da imaginação.
No caso do game, podemos dizer que há certa vantagem (ou seria desvantagem?), afinal já temos a imagem pronta, não precisamos imaginá-la. Mas se na literatura o leitor deve agir, criando imagens e completando as lacunas estimuladas pelo escritor, nos games podemos controlar as ações do personagem, como se escrevêssemos a história também, e esta interação motora permite a ilusão de que também fazemos parte da construção da narrativa. Neste caso a imersão ocorre, pois a partir do momento em que somos responsáveis não só pelos movimentos, mas também pelas decisões de Alan (matar os inimigos ou simplesmente correr feito um desesperado, por exemplo) é como se nossa cabeça, e não a do personagem, estivesse a prêmio desviando de machados e foices. Embora esse controle seja uma ilusão — há um arco narrativo a ser cumprido no jogo — é natural que ocorra uma catarse por conta de tantos sustos “reais”.
Ninguém é confiável
É interessante perceber que a complexidade da narrativa de Alan Wake, que nos confunde o tempo todo, não é gratuita, pois serve para dar a dimensão da instabilidade mental do sujeito, que não só perdeu a criatividade como também a sanidade, chegando a ser internado numa clínica para doentes mentais. Como temos apenas o ponto de vista do personagem, ficamos tão desorientados quanto ele. A história não é contada de forma linear, só vamos descobrindo aos poucos os detalhes sobre os personagens — muito bem desenvolvidos, aliás, pois possuem certas ambiguidades que estamos mais acostumados a encontrar em obras literárias e cinematográficas. O médico da clínica tenta diagnosticar o problema e explicar a situação, mas seu comportamento é tão suspeito que torna praticamente impossível acreditar em suas palavras. Entretanto, é possível também que o problema esteja realmente em Alan e não no médico ou nas pessoas ao redor.
Desta forma, percebemos rapidamente que ninguém é confiável, nem mesmo o próprio personagem principal. A relação dele com a palavra escrita é fundamental para estabelecer esta desconfiança e isso fica claro quanto, ao longo de todo o jogo, encontramos jogadas pelo cenário páginas e mais páginas do livro que ele está escrevendo. Este livro antecipa fatos que estão para acontecer e nos fazem crer que, na verdade, estamos presos em sua imaginação.
Esta metanarrativa cria contornos ainda mais interessantes quando somos levados a alguns flashbacks, tal como em Lost, mas que não são cut-scenes (aqueles filminhos que ajudam a contar a história): neles, podemos controlar o personagem, o que cria a ilusão de que poderíamos mudar ou distorcer o passado por meio da memória, o que só faz aumentar a curiosidade e a vontade de chegar logo ao fim.
Beleza sem tamanho
Uma grande sacada da narrativa é que Alan utiliza diversas armas ao longo do jogo, mas a principal delas é a lanterna, que imobiliza os monstros das sombras. Num determinado momento da história, o escritor (e nós), bastante confuso, pois já não sabe o que é ficção e o que é realidade, se depara com um cenário composto apenas por escuridão e palavras, como “telefone”, “árvore”, “escrever”, etc. Quando direcionamos a lanterna para essas letras, elas se tornam aquilo que nomeiam, ou seja, a palavra “bird”, por exemplo, quando iluminada, se transforma num pássaro negro que sai voando. O efeito é de uma beleza e de um profundidade sem tamanho, nem parece que estamos diante de “apenas” um game de terror, pois afinal, o que o jogador faz é iluminar a palavra escrita para que ela se torne viva.
Não seria exatamente esse o papel de um escritor ou de um leitor diante da literatura?