Filme = Risco Duplo

Pode haver, em um filme de ação simplório, racismo ferrenho?

“A narrativa tem tensão suficiente para não se atente a alguns detalhes que, como se verá, constituem o filme”

O historiador Marc Ferro enxerga o cinema como “contra-análise da sociedade”. Ferro faz, de acordo com ele próprio, uma abordagem do filme não “como obra de arte, porém como um produto, uma imagem-objeto”, seu significado não é só cinematográfico, o filme “vale pelo que testemunha”. Daí, desenvolve um tipo de crítica que “não se limita ao filme, mas integra-o no mundo que o rodeia e com o qual se comunica”. Desse modo, compreendemos “não somente a obra como também a realidade que a representa” e a análise deixa entrever também “uma zona de realidade não-vísivel”. O que há de não-explícito nesses filmes que você anda vendo ultimamente, detalhes internos ou externos que, involuntária ou voluntariamente transmitem uma ideologia?

Recentemente reexibido pela TV, Risco Duplo (1999), de Bruce Beresford (o mesmo de Conduzindo Miss Daisy e A Última Dançarina de Mao, que ainda não foi lançado) é um filme aparentemente inócuo, thriller de ação e suspense com a seguinte premissa: para conseguir o resgate de R$2 milhões do seguro, um homem forja o próprio assassinato; sua mulher é julgada culpada do crime. Ela dá a guarda do filho pequeno a uma amiga, que também fica com acesso ao resgate, já que este pertence ao garoto, na falta de seus pais. Depois, descobre que o marido está vivo. Com outro nome, vive com o dinheiro, o filho e aquela amiga, antes sua amante, agora sua mulher. Sem meio de provar sua inocência, passa a cumprir sua pena com desejo fixo de vingança. Uma presa que tinha sido advogada lhe conta sobre um aspecto do direito americano, o “risco duplo”. De acordo com essa regra, ela não pode ser culpada pelo mesmo crime duas vezes. Assim, “pode atirar nele no meio da Times Square e ninguém pode fazer nada contra você”.

São três personagens principais: Ahsley Parsons, a mulher enganada, presa injustamente, é interpretada por Ashley Judd; seu marido, Nick Parsons, por Bruce Greenwood. Travis Lehman, o policial responsável pela condicional, é o terceiro dessa lista; sendo interpretado por Tommy Lee Jones. O filme foi um sucesso de bilheteria nos Estados Unidos, tendo arrecadado mais de 110 milhões de dólares.

A narrativa tem elementos de tensão suficientes para levar o espectador sem que este tenha chance ou vontade de atentar para ou criticar alguns detalhes que, como se verá, constituem o filme, em primeira instância, como antiautoridade (o que é significativo nos EUA) e, com mais ênfase, diretamente racista. Além do suspense sobre o desfecho, sobre como será e o que ocorrerá depois do encontro dos antagonistas, o público pode ‘gostar’ imediatamente dos dois atores principais, pois são conhecidos; pode se identificar com a protagonista tanto pela vingança (ou justiça; sobre essa dicotomia, veja este post) quanto pelo caráter maternal de sua busca: repetidamente ela fita a foto do filho, essa é sua razão e seu alento. O restante dos personagens não tem personalidade concreta, seriam ilustrativos, não fosse pelas frases que dizem em determinados momentos, dando um toque de humor e descontração ao filme.

Este complexo de entretenimento é o que podemos chamar de zona de realidade visível, se formos desenvolver a teoria de Ferro. Resta o latente, aqueles detalhes que citei. A primeira impressão subliminar que o filme cria é de que a autoridade é falha. O poder instituído — a justiça, o governo, etc — são construções que se enganam e que podem ser enganadas, com o conhecimento de suas rotinas e alguma inteligência. O marido que não morreu manipula a justiça e a seguradora; sua mulher, adiante, é instruída por uma presa sobre o que precisaria dizer aos oficiais da condicional para consegui-la: ela repete um texto exato e é liberada. As leis, esse é outro ponto, são sempre desacreditadas frente a motivos emocionais ou pessoais. Na perseguição à protagonista fugitiva, há dois exemplos: 1 – o atendente de bar que pode avisar a polícia sobre ela não o faz, já que não é oferecida recompensa; 2 – o delegado, que recebe pedido de ajuda do responsável pela condicional, só coopera quando é avisado que a presença da fugitiva pode atingi-lo de alguma forma.

É mesmo esperado dos personagens que desconsiderem o que se convencionou com certo, a lei, e que façam seu próprio julgamento pessoal. Travis Lehman caça a condicional de uma das detentas por ter se envolvido com prostituição. Os personagens insistem numa ‘segunda chance’ que devia ter sido dada e aludem ao passado não-perfeito do policial para desprezar sua postura: “ele não é tão bom assim”, poderiam ter dito. Nós mesmos estamos propícios a entender a atitude dele como ‘insensível’, ‘autoritária’, ‘imoral’, quando o que ele fez foi só cumprir a sua função e o que, aliás, estava previsto por acordo entre as partes. Mas esse de forma alguma é um filme revolucionário, que proponha algum tipo de anarquia; afirma, por outro lado, que a ordem estabelecida está corrompida e que cabe ao indivíduo corrigi-la. O par de palavras em itálico nesse parágrafo indica dois dos valores que sustentam a tese: as leis como só uma convenção e a ideia de um passado incólume.

As leis ou a importância das leis são a decisão de uma maioria que, como foi demonstrado, é menos inteligente do que alguns indivíduos com a astúcia para manipular sua criação, e, é razoável supor, desenvolver melhores; uma maioria que erra nas suas conclusões, porém nunca repensa seus atos; uma maioria que pode ser considerada menos humana, fria quando cumpre suas regras, sem compaixão; e uma maioria que, além de tudo isso, não tem mesmo o direito de ditar quaisquer leis, já que podemos encontrar manchas em seu passado. Quem é o agente que, então, determinou como seria essa sociedade? Um usurpador frio e burro. E mesmo sem glamour. Uma frase aparentemente humorística pode é sintomática: na entrada de uma festa, Ashley, sem nenhum motivo aparente, pergunta a uma mulher sobre o vestido que está usando (quem fez, o preço), e ela responde algo como: “A própria primeira-dama me perguntou isso na Casa Branca e — quer saber? — eu não disse”. Este diálogo não tem outra função senão reforçar a ideia de que a autoridade atual não é tão importante.

Conservadorismo

Agora: nesse contexto, quais são os valores que o filme elege como benignos? Basta prestar atenção às características de Ashley para perceber que são princípios-base do que aqui vou chamar de conservadorismo. Ela é definida como mãe, esposa e vítima. O primeiro item é o mais evidente. Descobrimos que o objetivo nunca foi propriamente se vingar, por exemplo, com um assassinato, mas apenas ter seu filho de volta. É para proteger sua família que faz o que for preciso. Em segundo lugar, de forma menos clara, ela é uma esposa. Antes da trama da morte ser feita, ela dá sinais de amor tanto afetivo (é uma mulher feliz, compreensiva em relação à personalidade ácida do marido e que não lhe cobra nada, demonstrando gratidão e um pouco de culpa quando ele compra um barco por conta dela) quanto físico (ela gosta do sexo com o marido, afirma isso, pede por mais). E, principalmente, esse amor é apenas para o marido. Ela não terá qualquer aproximação com Travis e não aceitará envolvimento com outros homens (sendo o rapaz que a ajuda na biblioteca o exemplo do filme para isso). Por fim, quando ela reencontrar Nick, dirá: “sou a esposa dele”.

O último item termina de filiar o filme à imagem clássica que o cinema faz da mulher. Pode parecer que Ashley é heroína da própria história; mas, primeiro, ela é facilmente derrotada por Nick em sua primeira tentativa. É razoável crer que o filme diz: ela pode ser inteligente e hábil, mas não mais do que um homem. A protagonista é então desenhada como vítima, e precisa da tutela de um herói, que será Travis Lehman. Só com ajuda dele a sua vitória vem finalmente, e é nos braços dele que ela chora, como que extenuada por um esforço além das suas capacidades. Mãe, esposa, vítima, defensora da família; e há ainda mais um detalhe em prol do conservadorismo. Por três vezes, no filme, se faz alusão a quadros modernistas. Em todas elas, há uma depreciação deste tipo de arte. Antes de citá-las, é preciso ter em mente que a única personagem que compreende esse movimento artístico, que vende e explica as suas características, é o mais detestável entre todos: o marido, pai que não cuida do próprio filho, criminoso, destruidor da família.

Vincular aquele conhecimento, aquele gosto, a este personagem está de acordo com o que a crítica conservadora afirmava no século passado sobre as novidades artísticas de então. Um dos exemplos clássicos é o texto “Paranóia ou Mistificação?“, que Monteiro Lobato escreveu sobre as pinturas de Anita Malfatti. Segundo Lobato, esse tipo de artista vê “anormalmente a natureza a interpreta à luz de teorias efêmeras. [Essas obras] são produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos da decadência. Nos manicômios, esta arte é sincera, produto lógico dos cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses. Para que sintamos de maneira cúbica ou futurista, é forçoso que o universo sofra completa alteração”. A guinada é então em direção ao classicismo, a um tipo de arte mais pura, “não-degenerada”, e todos esses elementos reforçam ainda mais a ideia de que a sociedade atual se perdeu.

As três cenas tratam de algo que a crítica de Lobato também toca, que é a suposição de um público ludibriado por uma arte falsa. Na primeira, um personagem confunde um quadro de Kandisnky com qualquer outro de Picasso; há uma ideia subliminar aqui: esses pintores são todos iguais. Na segunda, Ashley finge que quer comprar um quadro de Kandisnky, para saber a localização de seu vendedor, seu marido. O dono da galeria, no entanto, não parece ver distinção entre os pintores e nem entre os períodos da obra de cada um deles, afirmando apenas que são todos ‘adoráveis’ — novamente o filme diz: é tudo semelhante. Na última, Travis pergunta a Nick: “Bonitos quadros. É seu filho que os pinta?”. Desnecessário dizer o preconceito que essa frase legitima. Além da política, a cultura dessa sociedade também foi convencionada como valiosa por aquele mesmo usurpador não-humano e tolo, ou, segundo Lobato, pelo “público idiota, dos críticos cretinos, dos amadores anormais”.

Racismo

O termo “arte degenerada” foi usado pelo nazismo para qualificar movimentos modernistas — havia predileção entre os nazistas pela arte neoclassicista. Monteiro Lobato, por sua vez, escreveu O Presidente Negro, uma distopia racista em que todos os negros do EUA sofrem uma espécie de castração, o que garante a sua futura extinção e a ‘supremacia branca’. Não afirmo de forma alguma que toda crítica conservadora carrega esse preconceito, mas, nesse caso, o de Risco Duplo, a aproximação é possível. Os negros são caracterizados sutilmente como um problema ao longo do filme.

Há um momento em que isso se esclarece. No início da cena em que enfim os antagonistas devem se encontrar, há um leilão simbólico de o próprio Nick Parsons. O apresentador diz: “Esse era um costume comum antes da agressão nortista”. Agressão nortista faz referência à Guerra da Secessão, conflito civil do século 19 nos EUA que costuma ser descrito como a luta entre o ‘norte abolicionista’ e o ‘sul escravocrata’. Alguns estados não queriam libertar os escravos e tentaram se separar da federação; por força militar, o movimento foi contido e a escravidão abolida em todo o território americano. É importante notar que o apresentador não diz ‘guerra da secessão’, o que seria uma alusão só histórica; nem diz “guerra civil”, o que indicaria a crença de que eram no fim das contas o mesmo povo. Ele diz que o Sul foi agredido pelo Norte e apresenta com festividade um (bom) costume que se perdeu. Todo o Estado americano daquela época é, portanto, assemelhado a essa justiça fria e não-humana, que é falha e para a qual há um modelo melhor, conservador.

Em outra cena, Ashley impõe a Nick que devolva seu filho. O lugar que escolhe para esse encontro é o cemitério, que tem “muita gente” e é “um lugar turístico”. Isso também parece ter ressonâncias daquele mesmo significado conservador: o que é belo, diverte, o que tem valor histórico — definições possíveis para turístico — tudo isso está morto. Quando chega no cemitério, está acontecendo um cortejo. Veem-se negros andando em casais e um deles dirige uma carruagem, presumivelmente com o caixão. Na carruagem, há os dizeres, que na dublagem são lidos em voz alta: “o espírito de New Orleans”. New Orleans, um estado do sul dos Estados Unidos, não tem mais alma, é carregado para o túmulo por um negro. Nem mesmo a Igreja deste estado perdido é respeitável: para fugir de um jazigo, Ashley quebra justamente um vitral em que a cruz é representada. E não será exagero atentar para o fato de que o policial, o braço do Estado que finalmente a vê pela primeira vez em sua fuga, sendo possível culpado do não-restabelecimento da família e da justiça, esse policial é negro.

Toda essa ideologia levantada por Risco Duplo tem um comparativo. O Nascimento de uma Nação, filme de D.W. Griffith que estabeleceu as regras do cinema hollywoodiano clássico, defende, de certo modo, a mesma concepção. Nele é contada a história da guerra civil entre Norte e Sul e o período imediatamente posterior, chamado Reconstrução. Os negros, após serem libertados, são mostrados como pouco civilizados e imorais. Oprimem os brancos e formam um exército para instituir um ‘império negro’. Há duas mulheres brancas, vítimas, que negam matrimônio a negros, ou a alguém que não seja digno. Enfim, os indivíduos do Sul, sem ajuda do Estado e para corrigi-lo, formam um grupo terrorista que é o herói desse filme, punindo os excessos e restabelecendo a justiça. O nome do grupo: Ku Klux Klan. Em paralelo com Risco Duplo, são claras as semelhanças. E se torna, assim, atemorizante a frase de uma das presidiárias, quando Ashley treina mesmo na chuva: “Garota, tenho de admitir: o ódio te dá força!”.

O que se diz e como se diz

Esta, portanto, é a zona de realidade não-vísivel latente em Risco Duplo. A análise se mostra importante porque demonstra como filmes que aparentemente são só entretenimento, com o objetivo de transmitir emoção e mais nada, podem ter, nas pequenas escolhas, argumentos em prol de uma ideologia. Resta entender como essa ideologia subliminar age em cada um dos receptores, tanto consciente quanto inconscientemente — o que não está ao alcance deste trabalho. No texto que deu ensejo a esse estudo, “O Filme — Uma Contra-Análise da Sociedade”, Marc Ferro analisa outros dois exemplos dessa possibilidade de visão.

O primeiro é um filme russo que se define “sem objetivos ideológicos”: Segundo a Lei, de 1925, adaptação de uma narrativa de Jack London chamada O Imprevisto. Segundo Ferro, o filme declaradamente não “se preocupava com revelar a realidade de uma maneira verídica e não se propunha a fazer a educação ideológica dos espectadores”. Entretanto, as pequenas diferenças entre o original e a adaptação, entre outros detalhes, demonstram a ideologia por detrás da produção. O segundo exemplo abrange dois filmes russos, um soviético e outro anti-soviético, que, no entanto, acabam tendo a mesma temática e revelando aspectos que são complementares da mesma sociedade. Ferro diz: “Esses exemplos mostram que o filme, qualquer que seja, sempre excede seu conteúdo. Permitiram atingir cada vez uma zona da história que permanecia oculta, inapreensível, não-vísivel”.

Enfim, o pesquisador Marcos Napolitano (além de problematizá-la e expandi-la no seu texto “A História Depois do Papel – Fontes Audiovisuais”) fornece a síntese para este tipo de análise: “Trata-se de buscar os elementos narrativos que poderiam ser resumidos na dupla pergunta: “O que um filme diz e como o diz?”.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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