Diário do México #3 | Viajo porque preciso, volto… por que?

E justo por isso me senti bem. Que se esquivem, que se escondam e guardem sua cultura de nossos olhares blasfemadores

“Imensos murais de Diego Rivera. No mais ostentador, conta-se a história mexicana com início em cenas da guerra entre indígenas e europeus na base do mural (aqueles com expressão de coragem ou de dor, estes com expressões de ódio)” [imagem: Rocky A
Semana em que as leituras para a pós-graduação se somam. E em que os problemas burocráticos para emissão da bolsa de estudos e para a inscrição na universidade, embora já assista às aulas, começaram a ficar mais dramáticos. Problemas esses que impedem com que vá a alguns museus, que com a credencial da Unam seriam gratuitos, e que viaje para fora da cidade – o passeio que esperava, inclusive, não ocorreu, se adiou mais uma vez, aumentando ainda mais o mistério que me aguarda nas pirâmides aztecas.

Muito se esquivou nessa semana. Para o meu afã de conhecer mais, de observar milimetricamente, de dissecar tudo, o ar mexicano me soprou uma cautela quente de volta. Com o adiamento do passeio para Teotihuacan, passeei pelo centro da cidade, mais uma vez, mas agora com menos pressa, acompanhada, entendendo melhor algumas dinâmicas, que em meu primeiro passeio por ali me assustaram, e explorando melhor os edifícios que circundam a Plaza de la Constituición.

Dessa vez fui surpreendida pela multidão do domingo ensolarado. Os mexicanos realmente devoram cada centímetro desses quilômetros de espaços livres que possuem, junto com suas comidas callejeras inumeráveis. Nessa segunda caminhada pelo centro, conheci o Palacio Nacional, onde estão alguns imensos murais de Diego Rivera. No mais ostentador, conta-se a história mexicana com início em cenas da guerra entre indígenas e europeus na base do mural (aqueles com expressão de coragem ou de dor, estes com expressões de ódio), culminando, no alto da pintura, nas figuras de governantes campesinos que ostentam uma faixa com os dizeres Tierra y Libertad.

Entre os murais, uma moderna exposição sobre os mayas incrementa ainda mais esse afã de narrar sua história que se vê em todos os cantos da capital mexicana. Com algumas peças do Museo de Antropología e painéis interativos que simulam os diversos territórios maias ao longo da história, a exposição atraiu uma multidão ruidosa que observava tudo através das lentes de suas câmeras e celulares frenéticos. Eu mesma me posicionei grande parte da exposição atrás das lentes da minha pequena câmera, mas porque queria mostrar a uma grande amiga brasileira a cerâmica indígena. Mas as fotos não traduzem exatamente o fascínio que me causa a arte pré-colombiana, como já mencionei anteriormente e acho que continuarei a repetir até o fim da minha viagem.

A Plaza de la Constituición também colaborou para a narração do que é esse México que se mostra, cautelosamente, para mim. Uma majestosa exposição militar isola toda a praça, impedindo com que a conheça verdadeiramente (na primeira caminhada pelo centro, a praça já estava isolada pelos militares, mas a exposição ainda não tinha sido montada). A enorme bandeira ao centro da praça apenas deixa-se ver através do jogo de verde musgo e metal negro que a rodeia. E, mais impressionante, era a fila quilométrica de pessoas que se amontoavam para conhecer essa exposição. Eu a dispensei, sem receio.

E à frente da praça que se esquivou de mim, completamente tomada pelos militares, a Catedral me ofereceu suas entranhas. Participei de uma visita às “campanas” da igreja, que são sinos que se encontram em suas torres. Entramos passadas as seis horas, então logo as escadas de pedra tomaram o ar melancólico do início da noite. Lá em cima, ouvi a história de uma campana possuída, que matara a um dos meninos que no século XVI tinha a perigosa missão de entoá-la, movimentando o sino de toneladas com o próprio corpo. Para sinalizar sua maldição, o sino leva pintada uma cruz vermelha. O sino amaldiçoado olhava na direção da Plaza de la Constituición, lá embaixo, que bebia das luzes da noite recente, comungando com o militarismo tão exaltado em nossos países latino-americanos. O século XVI sobressaltou mais vivo do que nunca nessa noite na catedral.

Mas ao mesmo tempo que uma sensação triste me invadia, a impressão que me causaram as ruas mais vazias do centro – e mais perigosas, segundo meus amigos mexicanos – me revelava que o México, sim, tem sua cara própria, apesar da imposição tão drástica da cultura ocidental. Caminhamos pelas ruas atrás do Palacio Nacional à procura de um altar feito à Santa Muerte que, segundo esses amigos, havia por ali, na rua. Me empolguei muito para tirar fotos, já que não estarei em novembro, na Fiesta de los Muertos, e não vou viver essa grande celebração. Perguntamos a um policial onde estava o altar, pois eles não tinham certeza da localização, e ele nos apontou para a frente. Por aí seguimos. Nada. Encontramos outra igreja de portais grandiosos e uma rua tomada por crianças, perguntamos a uma delas, não sabia informar. Andamos mais umas quadras e perguntamos a um vendedor de rua, ele nos apontou para a esquerda. Seguimos. Nada. Perguntamos para um outro, nos apontou a direita. Nada. E de repente nos veio a impressão de que talvez não quisessem nos revelar onde de fato estaria o altar, pois nitidamente estávamos ali apenas para tirar algumas fotos, quem sabe postá-las no Facebook, para que fossem celebradas ali. Talvez, não quisessem que blasfemássemos seu altar feito com tanto respeito e fé. O México esquivou-se mais uma vez.

E justo por isso me senti bem. Que se esquivem, que se escondam e guardem sua cultura de nossos olhares blasfemadores. E se guardem de toda a ostentação militar-cristã do centro do Zócalo. Que se mantenham vivos, mesmo que às esquinas sombrias das ruas abandonadas do centro que ninguém visita. É um consolo, de qualquer forma, saber que em algum lugar escondido do Zócalo o México que mais me agrada está muito vivo celebrando a sua Santa Muerte.

PS: E nessa sexta-feira foi o dia de São Valentim. Exibiram, na maravilhosa Cineteca Nacional, ao ar livre e de graça, o filme brasileiro Viajo porque preciso, volto porque te amo. Sabia que não era uma história de amor, apesar do titulo. É a história do nosso Nordeste, a história da transposição de águas do São Francisco, a história da pobreza que assola grande parte do nosso país. Mas também a história de uma viagem. A história de alguém que procura motivos para ter partido e, logo em seguida, para regressar. Os meus motivos, para ambas ações, eram claros, mas agora tudo começa a se embaçar. Precisava dessa viagem? Agora, me parece mais do que nunca que sim. Volto por quê? Ainda não sei.

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