Eugenio Lima: Possibilidade da Polifonia

imagem: Cena de A Missão em Fragmentos — 12 Cenas de Descolonização em Legítima Defesa, dirigida por Eugênio Lima

1.

Os primeiros passos em qualquer área são você ter um desejo, alguma coisa que te mobilize, que te faça prestar atenção nas coisas simbólicas. Acho que um arte pode abrir portas para outras formas artísticas. Não é que quem se interessa por teatro vai dar os primeiros passos no teatro. Eu mesmo: a minha história vem da dança, vem da música, e depois foi cair no teatro. Durante muito tempo, quando eu era adolescente, eu falava que nem gostava de teatro — e hoje eu não me vejo sem fazer teatro, porque acho que é uma das artes mais importantes para fazer a crônica do seu próprio tempo, e que pode integrar as outras áreas. Mas cada teatro é um teatro: então, o que eu diria, quais são os primeiros passos? Acho que os primeiros passos são você levar as pessoas para verem coisas, sejam obras de artes plásticas, sejam de música, sejam de dança; a pluralidade é o primeiro ponto para entrar em um processo artístico e aí sim se desdobrar nas artes, por exemplo, no teatro.

2.

Quais conselhos que eu daria para quem quer ser ator ou diretor? Eu não sei se eu tenho muitos conselhos para dar a respeito disso. O que digo é que você tem de investigar os seus desejos — como é que você, como artista, olha pro mundo? Ser ator é um dos caminhos para isso, e aí tem vários modos de seguir: você pode ir por uma via formal, das escolas de teatro, das escolas de artes cênicas; você pode descobrir que isso de de ser ator ou atriz é uma necessidade da conjuntura, você precisa daquilo porque você precisa da forma, uma coisa que é muito urgente pra você.

Já a direção, eu acho que é uma coisa que tem que vir como consequência de uma série de processos. Eu não entendo você se ver como diretor a princípio. Eu acho que você vai construindo essa narrativa para si mesmo. Aí, em um determinado momento, você percebe que está organizando aquela cena, aquele fazer artístico. É um procedimento muito processual e particular. Eu, especificamente, como eu não venho das faculdades de artes cênicas, a minha escola foi auto-didata, eu fui me descobrindo a partir da necessidade de construir isso dentro de um grupo, o grupo Bartolomeu de Depoimentos e fazendo isso com base em outros trabalhos, na medida em que eu era coreógrafo na Unidade Móvel. Essas experiências, além da que eu tive com a Frente 3 de Fevereiro — um coletivo de discussão sobre a questão racial — me levaram à ideia de que era possível eu ter uma raciocínio que organizasse a cena e, portanto, assumir a ideia de direção.

Sobre erros que possam ser evitados — acho que não existe muito isso. Porque, na verdade, os erros fazem parte de um processo. Aquilo que você talvez chame de erro pode ser o ponto de inflexão pra você poder construir o seu discurso

3.

Sobre referências — o cabedal é muito mais amplo do que qualquer síntese que eu possa fazer. Mas eu concordo que as referências são extremamente necessárias, mesmo que seja para você desconstruir o seu discurso. Eu acho que as respostas nunca estão intra a própria área: não acho que que as respostas para as artes cênicas, como para qualquer outra área do fazer artístico, esteja única e exclusivamente nessa relação interna, ou seja, “pra fazer teatro eu preciso ver muito teatro” — é um caminho, mas não é o meu caminho. Você tem que caminhar com referências de outras áreas artísticas, que te alimentam, como o cinema, como a música, como a literatura.

A relação literatura/teatro, obviamente, é muito próxima. Nesse sentido, são fantásticas as poesias de Aimé Cesaire, de Cruz de Souza. Também é muito importante o cinema. Pra mim foi fundamental assistir aos Faça a Coisa Certa Malcom X, do Spike Lee, o cinema do Sergei Eisenstein, o cinema clássico italiano, o neorrealismo italiano, as experimentações da década de 1960 e principalmente o cinema de diretores negros e diretoras negras ao redor do mundo.

Sobre a relação música/teatro, como eu sou DJ, essa influência é a mais macro que eu tive. São inúmeras: evidentemente os sons da diáspora negra, por exemplo o hip hop, uma estrutura fundamental para entender a história recente do mundo e do Brasil — Racionais MCs, Thaíde & DJ Hum, RZO, Public Enemy, N.W.A., KRS-One, A Tribe Called Quest, De La Soul, Queen Latifah. O jazz é importante — Aretha Franklin, Nina Simone, Billie Holiday, John Coltrane, Dizzy Gillespie — além de James Brown, Pixinguinha, Jorge Ben — todos essenciais na formação para o teatro que eu faço.

Eu gosto muito de como se propõe a interação de música e cena no Bertold Brecht — a parceria dele com o Kurt Weill é uma coisa fantástica, além do jeito como ele entendia a música como uma camada narrativa. Outro exemplo: o Miles Davis, quando fez a trilha de O Ascensor para o Cadafalso, primeiro filme do Louis Malle, exigiu estar presente todos os dias de filmagem e ter um piano no seu quarto. Ele via a cena, tocava durante e compunha o resto à noite.

Especificamente sobre teatro, uma peça que o Spike dirigiu, A História de Huey P. Newton, foi fundamental na minha formação, também foram fantásticos o Hamlet, do Peter Brook, o Ham-Let, do Zé Celso, assim como a historiografia do Teatro Experimental do Negro, os estudos sobre ele, em que o Abdias Nascimento era uma figura central — eu me inspiro muito no Abdias, como alguém que transitou entre a política, a poesia, as artes gráficas, o teatro. Alguns atores negros e atrizes negras também foram fundamentais, a Zezé Motta, o Zózimo Bulbul, a Ruth de Souza — referências importantes para desconstruir um lugar que está eivado da presença majoritariamente branca.

4.

Sobre erros que possam ser evitados — acho que não existe muito isso. Porque, na verdade, os erros fazem parte de um processo. A ideia de não errar é que eu acho complexa, como se você já tivesse tudo pronto. Nas artes, de uma maneira geral, que estão imersas em um processo histórico, você só vai construir o seu discurso histórico a partir da sua experiência histórica e da relação que você tem com ela e com a arte que você exerce. Então, aquilo que você talvez chame de erro pode ser justamente o ponto de inflexão necessário pra você poder construir o seu discurso. Eu acho que o artista tem que estar sempre buscando construir o seu discurso histórico, tentar dar forma a essa matéria histórica na arte que ele faz.

Um grupo argentino, a Internacional Errorista, coloca o erro como ponto central da narrativa. Se não existir o erro, é tudo colonização, é tudo fascismo. Porque é o erro que possibilita a mudança.

Às vezes você estreia uma peça, e ela não está exatamente pronta. Eu achava isso um absurdo — “como é que a gente vai estrear uma coisa que não está pronta, vamos ensaiar mais, então” — mas existe algo que a peça só pode adquirir na medida em que ela tem uma relação com o seu público

5.

As descobertas mais marcantes da prática são:

Um — teatro é uma arte coletiva, precisa de uma construção coletiva para existir — o teatro em que eu acredito, um teatro de grupo, um teatro de pesquisa, um teatro fundamentado em um verdadeiro desejo de fazer a crônica do seu tempo e de tentar dar forma à matéria histórica e de poder vislumbrar também o tempo futuro. O teatro é uma das linguagens mais capazes de fazer uma crônica da sua nação, a crônica de um tempo, de coisas muito grandes, de temas muito amplos. Eu acho que isso é uma coisa importante, talvez a mais marcante de todas as que eu descobri.

Dois — são várias camadas que se constroem no discurso teatral e não dá para haver subserviência entre as linguagens — a música servir ao texto, o texto servir ao ator, o ator servir à direção. Essas linguagens, essas vocações da cena devem ser construídas por camadas e colocadas sem hierarquia;

Três — a construção narrativa: o narrador organiza a cena, e é essa cena organizada que pode dialogar com o tempo presente;

Quatro — existe um processo. Às vezes você estreia uma peça, e ela não está exatamente pronta. Eu no começo achava isso um absurdo — “como é que a gente vai estrear uma coisa que não está pronta, vamos ensaiar mais, então” — mas existe algo que a peça só pode adquirir na medida em que ela tem uma relação direta com o seu público, com os públicos divergentes, em que ela possibilita o seu campo de debate, o seu campo de existência. Ela é autônoma, mas ela é também tem uma interdependência com o seu tempo;

6.

O que significa o teatro pra mim? Acho que essa resposta vai mudando com o tempo, mas, hoje, nesse momento histórico, ele é o lugar onde eu consigo colocar a estrutura das diversas vozes que podem desconstruir a história oficial e oficiosa do Brasil. O teatro, como linguagem, ele pode servir tanto para reforçar o discurso colonial — o que fez José de Anchieta, que usava o teatro para catequizar os indíos — como ele pode ser uma fenda, uma rachadura, um ponto de inflexão que possa dar forma, na matéria do tempo, àquilo que está a olhos vistos, mas que não consegue ter forma. Ampliar esse leque e trazer uma relação com o público, o espectador, o ser social da pólis em uma grande entrega. É por isso que eu acredito em fazer teatro no Brasil hoje: a possibilidade de construir a polifonia.

E, claro, essa polifonia, essa construção, ela está diante da negritude, está diante dos corpos negros em cena, da presença de múltiplas vozes negras em cena. É isso o que perpassou a minha história do teatro e fora dele, é assim que eu consigo colocar essa utopia minha em cena.

Colocar as utopias em cena, com os corpos em cena, esses corpos negros, essas vozes negras, de múltiplas formas, mulheres, homens, mais velhos, mais jovens, de origens diferentes, de lugares diferentes do Brasil — como a gente está conseguindo construir em A Missão em Fragmentos — 12 Cenas de Descolonização em Legítima Defesa.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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