Da potência da palavra

Lá na Úrsula, pergunta-se a músicos: o que pode um instrumento musical? Aqui no Criadouro, dedicado a literatura, teríamos outra questão: o que pode a escrita? Uma resposta a isso está na obra do filósofo Ludwig Feuerbach.

Feuerbach: “A palavra é o pensamento revelado, refulgente, iluminante” | imagem: Sarah

Em A Essência do Cristianismo (p. 124 e 125 na edição da Vozes), Feuerbach faz um elogio da palavra. Ele dá ênfase à fala, mas tudo indica que as suas considerações podem se aplicar à escritura. Vejamos:

A palavra é uma coisa da imaginação; adormecidos que sonham vivamente e doentes que deliram falam. Tudo o que excita a fantasia faz falar e tudo o que entusiasma faz a retórica. Retórica é um talento poético; os animais não falam porque falta a eles a poesia. O pensamento só se exterioriza por imagens: a força da expressão do pensamento é a imaginação; mas a imaginação que se manifesta é a fala. Quem fala encanta, seduz aquele a quem fala; mas o poder da palavra é o poder da imaginação. Por isso um ser misterioso, de atuação mágica, era para os povos antigos, enquanto crianças da imaginação, a palavra. […] Palavras possuem poderes revolucionários, palavras dominam a humanidade. […]

Muitas definições se acumulam nesse trecho. Primeiro, a determinação de que a palavra está para além da consciência: mesmo sob o sono ou no atordoamento do delírio, há fala. Segundo, é a palavra o que nos define como humanos: a retórica e a poesia (a referência a duas práticas que se elaboram também no campo da escrita sugere não se restringir ao falado a tese do filósofo) nos separam dos animais. Terceiro, tem a palavra poder, mágico e político, de disrupção e de controle. Esses aspectos são reelaborados e ampliados logo depois:

[…] O homem não tem só um instinto, uma necessidade de pensar, meditar e fantasiar; ele tem também o instinto de falar, de expressar seus pensamentos, comunicar. Divino é este instinto, divino é o poder da palavra. A palavra é o pensamento plástico, revelado, refulgente, brilhante, iluminante. A palavra é a luz do mundo. A palavra leva toda a verdade, soluciona todos os mistérios, mostra o invisível, torna presente o passado e o distante, termina o infinito, eterniza o temporal. Os homens passam, a palavra permanece; a palavra é vida e verdade.

Novamente somos levados a pensar na escrita, pois a palavra que permanece após o fim dos homens é aquela conservada pela oralidade ou aquela transmitida pela escrita. É assim, feita oralitura ou literatura, que a palavra “torna presente o passado e o distante” e “eterniza o temporal”. Essa afirmação de perenidade e ubiquidade se soma a um entendimento do que é a natureza humana – entre nossos instintos básicos estariam a expressão e a comunicação. Falar e escrever nos faz o que somos e nos faz mais do que somos.

Perseguindo nosso viés, poderíamos reescrever parte dessa passagem de Feuerbach? “A literatura é a luz do mundo. A literatura leva toda a verdade, soluciona todos os mistérios, mostra o invisível, termina o infinito.”

Talvez não seja distorcer demais. E a distorção também é um dos poderes da palavra.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *