Poeta Igual Pedreiro

“Patativa do Assaré foi o mais importante poeta popular do Brasil, devo dizer sem risco de medo de errar”

Talvez por ser jornalista há tanto tempo, tendo trabalhado nos jornais Folha de S.Paulo e Estado de S. Paulo, além de colaborar com publicações como O Pasquim, o também escritor, compositor e pesquisador da cultura popular Assis Ângelo tem um poder de síntese fluente. Define o por quê de tratarmos de certo poeta cearense cujo centenário de nascimento é comemorado em 2009 em uma só tacada: ´Patativa do Assaré, mais do que nunca ele é ponto de partida para o entendimento da vida brasileira nordestina´.

Eloquente, com voz de radialista, ele fala com o conhecimento de quem escreveu Poeta do Povo — Vida e Obra de Patativa do Assaré: ´ele foi o mais importante, o mais verdadeiro. O que fazia, das palavras, um alicerce — cada palavra dele era como se fosse um tijolo, subindo uma construção´, afirma, ´Patativa foi o mais importante poeta popular do Brasil, devo dizer sem risco de medo de errar´. De acordo com Ângelo, ´Foi o primeiro poeta, no Brasil ou na América Latina, a ter sua obra toda estudada na cadeira de cultura popular universal da Universidade de Sorbonne, no começo dos anos 70´.

Além da biografia de Patativa, Assis Ângelo escreveu Dicionário Gonzagueano, de A a Z (2006), entre outros livros. Como compositor, produziu o álbum Assis Ângelo interpreta Poetas Brasileiros, com participação de artistas como Zé Ramalho e Elba Ramalho. O Dia Nacional do Forró, segundo ele, foi iniciativa sua — conversou com a também nordestina Luiza Erundina e ela aceitou a idéia, levando-a adiante. Na extensa carreira de Ângelo está ainda a produção e apresentação do programa São Paulo Capital Nordeste, na rádio Capital, que, segundo o dicionário Cravo Albin de MPB, foi líder de audiência por seis anos.

Para definir, além do por quê, o quem — a pessoa, a vida e a poesia de Patativa, elementos que, no caso deste poeta em particular, parecem não se distinguir muito — Ângelo conversa com os repórteres de Capitu nas próximas linhas. Em uma sala abarrotada de livros, frente a seu computador de trabalho e ao lado de uma pilha de livros (visíveis: uma edição antiga de Inspiração Nordestina, primeiro livro de Patativa, e um folheto de cordel com a história da chegada do poeta de Assaré ao céu), ele trata da grandeza desse ´cearense franzino, todo torto, mas de uma personalidade fortíssima´.

Veja também:
>> Leia a resenha de Inspiração Nordestina, primeiro livro de Patativa

Se é bom, não precisa de elogio

Eu conheci o Patativa do Assaré no dia 20 de dezembro de (pára para lembrar o ano correto, por um instante) 1979, a região dos Jardins, em uma entrevista coletiva. A partir dali, passamos a nos corresponder por carta e resolvi escrever um livro sobre ele. Tive o prazer de ir à Assaré várias vezes e em uma dessas ocasiões, levei o livro pra ele ver e lerem para ele, porque ele já não lia.

(o repórter pergunta: ele gostou?) Não me disse nada, nem muito bem nem nada, era o jeito dele… o Patativa tinha uma coisa interessante: ele não era a favor de ninguém e era a favor de todos, era um cara que politicamente não comprava briga com ninguém e o que era bom, era bom e tal, e se era bom, não precisava de elogios; se era ruim, se dizia porque era ruim. E como eu não recebi nenhuma posição nesse sentido, creio eu que o livro atingiu o objetivo. Eu ouso dizer que… não tem muita coisa mais pra dizer não sobre o Patativa, eu acho que quando escrevi eu disse tudo que havia pra dizer, agora quem for escrever sobre ele vai falar sobre a obra, porque a história está contada, e muito bem contada.

O professor não sabe de nada

Era um cara pequenininho, baixinho, franzino, todo torto, mas de uma personalidade fortíssima. Era um cara bravo. Quando ele gritava, era pra estremecer o mundo. Os filhos o respeitavam da forma mais total possível, era mais do que respeito, era temor mesmo. Então, Patativa como cidadão pequeno na sua estatura era grande na personalidade. Muito honesto, que acreditava na liberdade de todos, na democracia, nos direitos individuais; se recusava a se rebaixar aos poderosos da época dele, nunca abaixou a cabeça, e dizia que o lugar onde ele nasceu era o lugar onde ele deveria morrer, e foi o que aconteceu.

Ele foi um poeta pobre, um poeta humilde, um poeta sem muitos estudos, ou melhor, sem estudo nenhum, porque ele freqüentou a escola cerca de quatro meses — para descobrir, já naquela ocasião, que não continuava a estudar formalmente porque o professor não sabia de nada. Já dá pra entender a personalidade dele e aonde ele queria chegar: ele tinha ânsia, tinha vontade de saber.

Era um cidadão semi-analfabeto, que foi privilegiado pela força divina. Ele era um católico fervoroso, apostólico romano, acreditava nas forças de Deus e, naturalmente, da natureza. Achava que tudo que há na Terra é do homem, no sentido sem divisão de classes, o que não acontece no sistema capitalista, que ele tanto criticava.

A diferença dele pros outros? A verdade

A obra do Patativa é, em termos de quantidade, razoavelmente pequena, chega a cinco, seis livros, se formos distribuir a obra dele em obras de mais ou menos duzentas páginas. Essa obra é monumental; pequena em quantidade e enorme em qualidade. Ele foi, com toda a certeza, o representante maior dos poetas brasileiros no campo da cultura popular. O que o diferenciava dos demais poetas? A verdade. O Patativa do Assaré foi um poeta de verdade, no sentido de traduzir em palavras as dores e alegrias dele, e não só dele, mas de todos os nordestinos, especialmente os do sertão, os nordestinos fora das capitais.

Sem paralelo na poesia brasileira, e aí não me refiro só à poesia popular, me refiro à poesia de uma forma geral. Embora ele mesmo fizesse separação entre a poesia popular e a poesia erudita. Ele se dizia um poeta popular, mas sabia perfeitamente distinguir a poesia popular da poesia erudita. O popular porque ele falava a língua do povo dele. A língua do pobre, a língua do sertão, a língua do deserdado da vida. Ele era e foi e é, embora tenha partido, o mais fiel representante do povo nordestino. Ele era o Nordeste popular, na expressão de um estudioso, e milenarmente ele é esquecido pelos poderosos.

Hino Nordestino

É importante situar o lugar de origem do Patativa, o Cariri. Existem dois Cariris no Nordeste, na Paraíba e no Ceará, nesses dois estados há o Cariri. Com relação ao sertão, o Cariri é um oásis; o sertão é o sertão: é duro, é terrível, é seco, é árido, é tudo desafiante. No Cariri, também, mas o sofrimento, pelo menos aparentemente, é menor, pra que tem coragem e pra quem não tem também. Quem não tem coragem não vive no sertão e nem no Cariri, e nem vive no Nordeste, a não ser à beira-mar, nas capitais, principalmente.

O poeta tem alguns poemas muito expressivos e que já estão no imaginário popular, entre eles, naturalmente há de se destacar “Triste Partida”, um poema de 114 versos distribuídos em 19 estrofes, publicado pela primeira vez em folheto de cordel no começo dos anos 50 e depois inserido no primeiro livro dele, Inspiração Nordestina, que é de 1956. Em 1964, Luiz Gonzaga, o rei do Baião, gravou esse poema em ritmo de toada. É a música que se transformou numa espécie de hino do Nordeste; é muito comum que se guarde com muita boa memória esse poema. O Patativa do Assaré, em algumas regiões do Nordeste, ele é declamado em todo canto: em bar, nas praças…

No Brasil, ele recebeu título honoris causa de pelo menos três universidades; e é razão de muitos estudos acadêmicos.

O Poeta está Vivo

A poesia de Patativa é muito musical. Ele desenvolve em sextilhas, septilhas, as causas, as histórias dele, de uma forma muito bonita, ritmada, que são fáceis de musicar. Depois de Luiz Gonzaga, outro artista a musicá-lo foi Fagner, que produziu dois discos deles, um em 79 e outro em 81. Antes disso, no seu disco de estreia (Manera Frufru), cantou “Sina”, que é parte de um poema de Patativa, cujo nome verdadeiro é “Vaqueiros”. Então houve a troca do título, boa parte do poema foi musicado e não foi dado crédito [Fagner depois teria afirmado não saber que o texto era de autoria de Patativa], o que só aconteceu um tempo depois. Além dele, o Rolando Boldrin, o Sérgio Reis, muita gente, do Ceará, de São Paulo, do Rio de Janeiro. Patativa está vivo. Tanto na letra impressa quanto no texto cantado.

Patativa igual a Camões

Ele, como tal, não influenciou artista nenhum, muito pelo contrário: ele está fazendo as coisas dele e alguém vai buscar e grava. Por outro lado, a influência de outros na obra de Patativa é difícil de você achar isso. A gente pode lembrar do seguinte: o Patativa era uma pessoa muito preocupada com tudo a sua volta, inclusive com o saber, que ele dizia ser o tesouro maior do cidadão. Então, ele lia desde Camões à Castro Alves; ele lia desde Jorge Amado ao José Louzeiro — ele lia tudo que lhe caía às mãos, no tempo em que podia ler, porque ele ficou cego de um olho aos cinco anos de idade e com o correr do tempo ficou cego do outro olho também, perdeu a audição e ficou aleijado — que é pra andar certo na vida. Patativa admirava Olavo Bilac e dizia que era igual à Camões, pelo menos num ponto: o poeta português perdeu um olho ao ser flechado em uma batalha, enquanto Patativa perdeu o seu por conta da conjuntivite, que no Nordeste era chamada dor d’olhos.

Mas Drummond não é poeta não…

Para Patativa, o Carlos Drummond de Andrade não tinha sido poeta. Ele dizia que poesia deveria ser escrita com rima, e a obra de Drummond não tem rima, pelo menos não é uma rima formal, é uma rima espontânea, quando não de versos brancos. Patativa gostava da poesia no sentido tradicional. Ele detestava o concretismo, embora soubesse o que era e o que significava poeticamente o movimento.

Distrito Federal do Nordeste

(o repórter pergunta: e a cultura nordestina hoje?)

A cultura popular nordestina? Olha, nunca esteve tão boa. Mas há dificuldade em encontrar onde estão essas coisas tão boas. Por quê? Porque o rádio não toca, a televisão não mostra, a livraria também não. A riqueza cultural do nordeste continua fantástica. Está na hora de a gente descobrir o Brasil, para nós mesmos, nós brasileiros. É o pedaço de uma história que o Patativa começou a fazer: mostrar o Nordeste para o Brasil, assim como o Luiz Gonzaga fez, quando ele bota o couro, ele se veste, quando ele se encoura — ele está mostrando o vaqueiro, o sertanejo, o nordestino tangendo boiada, correndo nas intempéries, nas veredas do sertão, que o João Guimarães Rosa foi buscar também. E o nordeste não são só os nove estados, tem outros em derredor; tem vinte e seis estados nordestinos e o Distrito Federal do Nordeste, que fica lá em Brasília, lá no cerrado. Eu repito: está na hora do Brasil ser descoberto por brasileiros.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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