“Inspiração Nordestina”, de Patativa do Assaré

“Todos os causos e personagens estão ligados pelo mesmo signo, o de ser inegavelmente nordestino, conseguindo também a universalidade”

É simpre, bem simpre, modesto e grossêro
Não leva o tempero das arte e da escola
É rude poeta, não sabe o que é lira
Saluça e suspira no som da viola.
Tu nele não acha tarvez, com agrado
Um trecho engraçado que faça uma escôia
Mas ele te mostra com gosto e vontade
A luz da verdade gravada nas fôia

(´Ao leitô´, primeiro poema de Inspiração Nordestina)

Aedo, aquele que, na antiga Grécia, narrava os feitos de seu povo e prestava culto à deusa Mnemosyne (Memória, mãe das musas). Herdeiros de Homero, tantos foram os que se dedicaram à sua terra, às narrações épicas, ao resgate de sua história e à sua valorização. Como aves, passavam, de canto em canto, deixando sementes, plantando histórias, tocando vidas. Nos campos do Brasil, ouvimos a ave patativa, que demarca seu território pelo canto, melodioso e triste. Unindo essas duas personagens, ave e Aedo, componho a minha primeira impressão do poeta cearense Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré, antes de abrir o livro Inspiração Nordestina (Hedra, 2003, primeira edição publicada pela extinta editora Borsói, 1956), o primeiro registro escrito de sua poesia, que é oral, e já marca a idade de 54 anos desde a primeira publicação.

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A fala do poeta é tangível, real, em narrativas desprendidamente profundas, que atingem em cheio do leitor leigo ao culto, do agricultor ao acadêmico, não só pelos temas em que toca, universais ao homem, mas também pela harmonia compositiva dos versos, a sonoridade presente em cada história, como se pudéssemos recompor a cadência do ditado: cada verso, uma nota, cada poema, uma música. Música essa, por excelência próxima de qualquer ser que saiba escutar os sons mundo, é traduzida pela engenhosa produção de Patativa, que sempre esteve perto da terra e do povo sertanejo.

Engenho. O trabalho do poeta, que compõe, narra, canta e encanta. Produzido por um homem sem estudo formal, o primeiro poema, ´Ao Leitô´, soa como uma explicação desnecessária: não devemos esperar um livro simples ou grosseiro, mas a expressão viva da fala e da vida no sertão, aquela que não tem respaldo na escola, mas no dia-a-dia, na lida da roça, nos amores, no contato com a paisagem, na religiosidade, nos acenos de adeus.

[…] Apela pra maço, que é mês preferido
Do Santo querido,
Senhô São José.
Mas nada de Chuva! Tá tudo sem jeito,
Lhe foge do peito
O resto da fé

Agora pensando seguí otra tria,
Chamando a famía
Começa a dizê:
Eu vendo meu burro, meu jegue e cavalo,
Nóis vamo a Sã Palo
Vivê ou morrê.

(A Triste Partida)

Como uma narrativa propositalmente entrelaçada, Inspiração Nordestina desenrola-se como um roteiro planejado: o doutor, o peixe, a fogueira de São João, a conversa do Matuto: todos os causos e personagens estão ligados pelo mesmo signo, o de ser inegavelmente nordestino, conseguindo também a universalidade. Ao mesmo tempo em que lemos, ´migramos´ as histórias para a realidade de cada um: o paulistano, o mineiro, o gaúcho, tal qual os migrantes do nordeste se espalharam pelo País.

[…] Viajei de passo lento,
Pisando rosas e relvas,
Ouvindo a cada momento
Gemer o vento nas selvas;
Colibris e borboletas
Dos ramos das violetas
Vinham render-me homenagem,
E do cajuzeiro frondoso,
O sabiá sonoroso
Saudava a minha paisagem

O sol quando despontava,
Convertendo a terra em ouro,
Em seus raios eu notava
O mais sublime tesouro;
E de noite a lua bela
Era qual linda donzela,
De uma beleza sem fim;
A sua luz prateada
Tinha a cor imaculada
Das vestes de um querubim

(“A estrada da minha vida”)

Sem escrever, a marca do canto foi deixada, a tradição do Aedo é perpetuada na voz daqueles que estão perto, no corpo, mente e coração de sua terra. A escrita fez a Ave Patativa voar a outros cantos, talvez intransponíveis apenas pela fala. Inspiração Nordestina é estar junto, ser cúmplice de uma história, do mais íntimo, bonito e dolorido dela. É a certeza de que não se trata de um poeta popular, mas de, sem dúvida, de um dos maiores poetas brasileiros.

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