O brasileiro se interessa por filosofia?

imagem: Saulo Cruz

Recentemente, vi um debate em que se reclamava sobre o problema de que as pessoas não têm interesse na filosofia. Ao menos em nossa sociedade, no Brasil, elas não estariam fazendo bom proveito dos nossos intelectuais, da bagagem que nossos filósofos têm e do que podem contribuir. A maioria nem se interessa mesmo pelo assunto. Vendo isso, me questionei se é realmente esse o caso ou se seria apenas que o filósofo brasileiro falha em se tornar relevante.

Será que a população não tem interesse nenhum nos filósofos? Não é isso que eu vejo. Figuras populares da mídia que tentam falar de filosofia, com um perfil de divulgação, frequentemente são acolhidas, ouvidas, e mesmo tem seus livros comprados por gente comum da população que não é entusiasta do tema. Estou pensando em Mário Sergio Cortela, Leandro Karnal, Luiz Felipe Pondé etc. Não se trata aqui de julgar, de avaliar a qualidade dos conteúdos que produzem. Seria um livro de Cortela uma suma de tradição filosófica? Não sei, não li. Nos seus vídeos, ele parece passar por um ou outro tema da filosofia de um modo que pode ser sim relevante, mas também mistura isso com discursos mais superficiais e com uma atuação de palco. Isso é ruim? Certamente é um uso da filosofia bem distinto do que se faz na academia. Porém um filósofo mais próximo da academia não tem e provavelmente nunca terá o mesmo alcance ou público que um Cortela tem. Então quem está errado? O purista talvez tenha muito mais embasamento, aprofundamento, mas isso atinge a quem? Não obstante, podemos questionar se o mero alcance constitui mesmo valor. Supondo que um discurso de alto alcance do Karnal seja vazio (só falas do “Leandro Banal”, como diz o meme), teria valor o grande alcance para algo de pouco impacto? As respostas não são simples.

Ainda assim, o grande alcance desses divulgadores populares me faz pensar que o caso é mais de os filósofos acadêmicos não saberem se comunicar com a população aqui no Brasil, mais isso do que uma falta de interesse por parte dela. Aqui a academia é extremamente fechada e excludente, e isso se dá por uma situação social e uma cultura profundamente marcadas pela desigualdade. Filósofos, do alto de seus privilégios (ao menos os professores universitários, com seus salários muitas vezes maiores que o da média da população), do alto de suas torres de marfim, aparecem querendo ter opiniões sobre tudo, mas se recusando a conhecer o mínimo da realidade. Nem é só questão de não pisar na periferia, de não conhecer realidades menos privilegiadas, mas é mesmo o caso de a maioria dos intelectuais mais puros nessa seara nem mesmo terem interesse nos dados sobre as condições socioeconômicas da população, em evidências e pesquisas mais empíricas que ajudariam a montar o quebra-cabeça da nossa sociedade — elementos que deveriam ser sim importantes para as ciências humanas. Não se pode conhecer a realidade e se comunicar devidamente com ela somente com abstrações de trás de uma escrivaninha.

Mas voltando à questão da atitude, façamos a comparação com lugares onde filósofos são ouvidos. O pensador francês Michel Foucault chegou a discursar em praça pública, assim como muitos grandes filósofos mais antigos (a prática já foi mais comum). Aqui pouco vemos esse tipo de comunicação com mais alcance. Os que tentam fazer isso e traduzem seu discurso em uma linguagem mais popular (como os divulgadores citados) vão ser criticados como irrelevantes. E qual seria o meio termo? Como fugir da armadilha, não cair para o lado do purismo nem para o da banalidade?

Outra questão é que, quando vemos filósofos tentando escapar, tentando fazer discurso público, com frequência isso é só em palanque, só para fazer politicagem (emprestar a autoridade da filosofia a isso) e muitas vezes no palanque de algum partido político específico, defendendo de forma enviesada – e, francamente, pouco filosófica – as suas pautas. Não me entendam mal, a política é um tema muito importante da filosofia e deve sim ser discutido e aplicado. Mas, justamente pela sua importância, a filosofia deve ser aprofundada e séria também nesse ponto, a filosofia não pode ser apenas um instrumento útil na mão de um projeto de poder qualquer, o papel da filosofia deve ser sempre o de questionamento, e não de submissão1.

Mas o ponto não é apenas a dificuldade de comunicação. O filósofo brasileiro tem também problemas de formação e de métodos de estudo. A dificuldade principalmente é que o filósofo brasileiro na média (sim, há exceções) não se importa em tentar desenvolver ideias novas ou tentar falar sobre pautas que são do interesse da população hoje. O papel do filósofo na sociedade (e talvez isso seja esperado pela população mais ou menos leiga) é trazer novas ideias que nos ajudem a pensar o mundo. Entretanto, nos modelos de ensino mais tradicionais, quase sempre o nosso filósofo se limita a apenas ler e reproduzir clássicos, a elogiar a tradição francesa, alemã, e, num senso de humildade bizarro achar mesmo que nem tem que ter ideias próprias. Isso deve parecer um contrassenso, deve soar absurdo a um leigo, porém, como alguém que veio desse nicho, digo com tranquilidade que é frequente conversar com alunos de pós-graduação em universidades tradicionais e ouvir de suas bocas que não pretendem ter suas próprias ideias pois “não sou ninguém perto dos grandes filósofos”. A admiração exagerada pelo passado gera uma subserviência que impede de se pensar o presente2.

A filosofia deve falar com a população se quer ser ouvida. A população quer ouvir reflexões sobre seu dia a dia, sobre o que lhes afeta. Quer entender porque a democracia mesmo sendo tão importante se mostra falha, mas em vez disso ouve “você tem que entender que Marx, no seu texto em conjunto com Engels, criticou Proudhon e Adam Smith, de modo que você tem que estudar muita dialética antes de poder opinar”. Ou então a população quer buscar respostas para problemas subjetivos, entender sua situação na existência, seu mundo subjetivo, a confusão do conhecimento e da informação, mas aí ela ouve no lugar “você precisa entender que Foucault citando Heiddegger lembra do debate clássico de Leibniz de modo que sem o conceito de substância…”. Esse debates não são irrelevantes, mas eles têm o seu lugar. A leitura histórica cumpre seu papel na construção de uma base para o conhecimento filosófico (dependendo da metodologia que se use) e pode ser usada nesse sentido. O erro é confundir contextos, achar que isso é relevante para a divulgação, para falar com o público sobre problemas atuais. E o filósofo brasileiro padece muito desse mal, principalmente quando foi apenas isso que ele aprendeu em sua formação.

Para tirar disso tudo uma conclusão, eu não diria que a população tem desinteresse por filosofia. Ela não pode se desinteressar pelo que não lhe foi apropriadamente apresentado, e que acaba sendo tão importante para a construção do conhecimento e indiretamente para a sua vida. A população tem desinteresse é pela má filosofia feita de modos excessivamente tradicionais (um modelo importado historicamente da França e muito lisonjeiro com ela), e ela tem desinteresse por um assunto mal comunicado ou que nem lhe tentaram comunicar.

Autor

  • Bacharel em filosofia, largou um mestrado em filosofia da ciência. Teve formação bem tradicional, mas fugiu para a filosofia analítica. Possui interesse em diversas áreas filosóficas, questões políticas, sociais. Entusiasta da ciência no geral, da economia, e do bom diálogo aberto e democrático com o diferente. Atualmente, está mudando de área de atuação, estudando programação e tentando escrever romances no tempo livre.

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