Morreu no supermercado sem atrapalhar as vendas

Na sexta 14 de agosto, o representante de vendas Moisés Santos, de 53 anos, morreu, vitimado por um enfarto, enquanto trabalhava em um Carrefour em Recife, Pernambuco. O que se seguiu foi a seguinte cena: morto, descreve o G1, Moisés “teve o corpo coberto com guarda-sóis e cercado por caixas de papelão, engradados de cerveja e tapumes improvisados entre as gôndolas (…) A área onde ficou o corpo também foi isolada por uma fita amarela e preta e engradados de cerveja”. O estabelecimento, afirma a reportagem, estava cheio quando o caso aconteceu e seguiu funcionando. Um entrevistado relatou: “Dava para ver o corpo e as pessoas comentaram”. Após críticas, o Carrefour decidiu alterar seus protocolos, “implementando a obrigatoriedade de fechamento das lojas para fatalidades como essa”.

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Esse acontecimento ecoa tristemente um texto publicado na Úrsula no último junho. Em “A atualidade de Construção, de Chico Buarque“, por Primo Deusdeti, somos lembrados de um Brasil “que via peões despencando dos andaimes e atrapalhando o sábado”. O autor escreve:

Quando Chico Buarque compôs Construção, o Brasil era campeão mundial em acidentes de trabalho. Tal como o personagem da música, muitos outros peões de obra e outros trabalhadores saíam pra trabalhar e não voltavam pras suas famílias. Nas grandes obras tocadas durante a ditadura as mortes eram mais frequentes. Na Rio-Niterói eram tantos acidentes que surgiu uma lenda urbana dizendo que suas pilastras eram feitas “de concreto e paraíba” (muitos dos peões eram migrantes nordestinos).

O artigo pergunta: “Como um operário conseguia testemunhar um acidente de trabalho num dia, vendo um ou mais colegas morrerem, e voltar a trabalhar no dia seguinte como se nada tivesse acontecido?”. Quanto ao caso de Moisés, poderíamos questionar como, no momento mesmo da morte, o protocolo não foi desfeito, ou por que o normal, antes da crítica, seria seguir trabalhando em torno de um cadáver.

Uma resposta para isso estaria em “um discurso de valorizar o trabalho acima de tudo”, de que “trabalhador mesmo não pode ter medo, não pode questionar, não deve fazer muitas perguntas”?

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Para além de fazer rir, o humor pode captar tendências sociais, realizar com hipérbole ou outros recursos uma crítica dos comportamentos. Assumindo essa possibilidade, o vídeo Quinta Maluca, do Porta dos Fundos, pode ser lembrado quanto ao caso em pauta também:

A brincadeira é principalmente com a expressão “o patrão ficou maluco”, que encabeça promoções em várias lojas — essa frase é levada ao absurdo, o gerente realmente enlouqueceu, torna-se violento, assassino. Por outro lado, podemos observar que o elemento que sobressai é a indiferença ou a insistência (talvez mais insana que o surto) em não abandonar ou retomar a rotina. Isso tanto na fala do locutor, que, mesmo com o desespero crescente nas notícias que dá, retorna ao anúncio dos preços, quanto na compradora, tão concentrada em pensar no que pode economizar que faz perguntas a uma funcionária assassinada, caída no chão. O quanto isso existe no nosso cotidiano?

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