Zé Trovão preferiria não acordar

De como um bolsonarista descobriu que sua trilha é “Maior Abandonado” e agora só quer algumas mentiras sinceras…

Imagem da página Dicas Políticas Agressivas

Marco Antônio Pereira Gomes, o caminhoneiro Zé Trovão, é uma metonímia do bolsonarismo e um sintoma de quem é Bolsonaro. Acompanhando suas falas nos últimos dias, senti até um pouco de pena: é um homem que quer seguir sonhando, mas já está acordado. Fecha os olhos insistente, não adianta.

Não tinha ouvido falar dele até a terça 7 de setembro, em que vi o seu nome em faixas erguidas pela massa que Bolsonaro manobrou, manobrou, aí “mudou de ideia” e não fez a baliza. “Somos todos Zé Trovão”, ou algo assim, anunciavam. De acordo com uma reportagem da BBC, ele não era um desconhecido só para mim, mas também para organizações de caminhoneiros; sua ascensão como voz bolsonarista é recente, no embalo do voto impresso e do cantor Sérgio Reis. Teve a prisão decretada por incitação a violência e a atos antidemocráticos e está foragido, no México. De quarta a quinta, enquanto caminhoneiros que talvez até o conheçam trancavam vias, Zé fez pelo menos três vídeos. São uma aula.

No mais antigo (publicado, assim como o segundo, pela Folha), se dirige diretamente a Bolsonaro: “Presidente, o povo precisa do senhor, presidente. Presidente, o senhor está nos convocando, presidente, desde do começo do ano”. Passa a citar então diversas manifestações que fizeram. Depois, implora: “Presidente, pelo amor de Deus, estão atacando nosso povo aí em Brasília, presidente. A polícia está usando da força! O senhor é nossa última salvação, presidente. Nós vamos trancar todo o Brasil porque nós estamos do lado do senhor, presidente”.

A repetição do cargo, o uso do pronome de tratamento “senhor”, o apelo a que Bolsonaro se lembre de tudo o que fizeram — tudo indica respeito e fé, e ambas aparecem muito frágeis (também é engraçado que um bolsonarista reclame que a polícia está sendo a polícia que defendem). No segundo vídeo, Zé está abatido. Ele comenta um áudio em que Bolsonaro pediu para que os bloqueios fossem desfeitos e faz outro desabafo, mais agudo.

“A minha vida está destruída”, diz, “porque eu estou hoje sendo perseguido politicamente, com mandado de prisão e passando por tudo, com risco de nunca mais ver minha família, porque eu não vou pra uma cadeia, porque eu não sou bandido”. É mais um pedido de reconhecimento, agora pessoal. Ele passou do “nós fizemos tudo isso, sei que você não vai nos deixar na mão” para o “eu fiz tudo isso, você não vai me deixar na mão, não é?”. De um para outro, o crescimento de insegurança é palpável.

Zé não quer crer no áudio “vazado” (você veja, os bolsonaristas são muito críticos com suas fontes de informação) e pede que o presidente grave um vídeo dizendo data e falando que é pra abrir mesmo. “Nós estamos aqui, sempre apoiamos o senhor”, diz ele, “eu estou na rua, estou lutando junto com o povo brasileiro pelo teu governo, pelo senhor, pelo nosso país e” — aqui a fanfic vai a outro nível — “pela nossa democracia”. Pede outra vez um olhar aos bolsonaristas com problemas (tipo: “Somos sua vanguarda, vai nos deixar na mão?”) e encerra: “Boa noite, presidente”.

Em um terceiro vídeo, Zé dá um cavalo de pau. Não fala mais a Bolsonaro, fala a seus companheiros, caminheiros paralisados. Trata-se de uma peça de ideologia tão perfeita que vou até deixar um parágrafo só pra ela:

“Pessoal, nossa luta, eu vou repetir mais uma vez, é contra os desmantelos do STF, é contra o Alexandre de Moraes, a nossa luta é contra a corrupção, contra a bandidagem. Nós não estamos de maneira nenhuma defendendo o presidente Bolsonaro, nem contra, nem a favor. Nós estamos lutando pelo Brasil. Brasil. Brasil. Tá? Brasil! Essa luta é brasileira. Pelo amor de Deus, as paralisações aí precisam ter faixas com a cara do Alexandre de Moraes, pedindo o impeachment dele. Tirem as faixas que tá escrito Bolsonaro, apoio a Bolsonaro, tirem essas faixas, pelo amor de Deus. Vamos lutar, vamos lutar pelo certo, nós não estamos lutando a favor do Bolsonaro, nós estamos lutando a favor da família brasileira, dos bons costumes.”

É de deixar sem palavras. Zé Trovão claramente passou a seguir uma cartilha de para onde é preciso incitar os protestos1. Pediu ajuda — argumentou lembrando sua lealdade e seu sofrimento, pediu em nome de deus, que, anuncia o slogan, está acima de tudo — e recebeu um cala-boca. Um comporte-se. Aqui como em poucos lugares se demonstra como o discurso nacionalista recobre partidarismo e personalismo. Sua força está em que atrai um apoio acrítico e automático. Quem seria “contra o Brasil”?

Bolsonaro já rifou Zé Trovão: essa é a tragicomédia em que está o caminhoneiro e que ele, apertando os olhos bem forte, não quer ver. Seu presidente entregou os anéis (a Arthur Lira et caterva) para não perder os dedos e entregará os dedos (dos outros, de cada um dos bolsonaristas se for preciso) para não perder os próprios e os dos filhos. Este é o presidente da República. Talvez nos enganemos sobre ele: não há ódio, não há desprezo pela vida. Esses sentimentos seriam positivos, em sentido técnico: representariam afirmações de algo. No caso do aspirante a ditador do planalto, só há negatividade: não chega a considerar pessoas como pessoas2.

O bolsonarismo, como seu irmão siamês o olavismo, entende que diante da autoridade cabe a idolatria. O amor ao líder ou ao sábio é a forma de contato com ele, é o caminho para merecer a sua atenção e é o procedimento para talvez se tornar como ele. Os erros que o chefe ou o guru cometam não são nada: os discípulos, os soldados sabem se manter fiéis à doutrina e à hierarquia. O descaso que recebam não os abala: é apenas um teste do seu amor. O bolsonarismo se quer como um movimento revolucionário e produz subjetividades, formas de valorar, de se compreender e de enunciar e cumprir práticas éticas. A saída para desfazê-lo passa por compreender esse processo.

Eu disse esses dias a um conhecido bolsonarista: quando vocês acordarem, vai ser engraçado. Zé Trovão está ali na beirinha de acordar — e é engraçado. Mas também é triste. Pensou que sua trilha era “Brasil“, mas no fundo tocava outra canção na voz de Cazuza, “Maior Abandonado3: “Presidente, eu tô perdido, sem pai nem mãe, bem na porta da tua casa, presidente. Migalhas dormidas do teu pão, presidente, raspas e restos me interessam, presidente”. Zé criou toda uma persona, onde é que vai achar outra agora?

Agora ao menos sabe que música a banda toca e tenta acertar o tom: “Zé Trovão por cá. Vou repetir: pequenas porções de ilusão, fake news sinceras me interessam. Me interessam!”.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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Um comentário sobre “Zé Trovão preferiria não acordar

  1. Excelente reflexão! Como os super-vilões dos desenhos animados e histórias em quadrinhos, Bolsonaro não tem apego aos subordinados, são todos soldados rasos (bucha de canhão) que devem lutar por ele – sem que, naturalmente, Bolsonaro tenha que defendê-los. Trata-se de uma via de mão única. Como no vídeo mais recente, em que um apoiador de Bolsonaro, lá no cercadinho, relata ao seu Mestre que foi agredido pela PM, que levou spray de pimenta na cara, enquanto o presidente não esboça qualquer reação, olha pro lado, abre um sorriso, e prefere fazer piada com o brinco na orelha de outro apoiador…

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