Uma Nota Sobre a Transgressão

imagem: Rebecca Boyd

Transgressão, a palavra que começa essa pequena nota introdutória, é, em si, um pouco complicada, mas me parece adequada para lançar umas hipóteses sobre a obsessão de certos vieses da sociedade sobre algumas coisas. Falo que é complicada, porque ela pressupõe que exista um espaço de ação demarcado e condicionado por algum corpo de formação moral. De forma mais simples, é complicada porque entendo que essa palavra é ambígua e pode ser lida tanto de forma negativa quanto positiva. A pergunta que surge quando chamamos algo de transgressor é: transgressor em relação a qual moral?

Por um lado, existe a transgressão negativa, que é absoluta. Digamos, um homicídio: é uma transgressão de um código de conduta perfeitamente necessário e aceitável (não matar alguém). Não cumprir isso é transgredir esse código. É fazer uma violação. Um crime. Passar no farol vermelho: transgressão às leis de trânsito, porque o farol existe para regular a convivência entre todos — você transgride um código (parar para permitir que outrem passe).

Por outro lado, existe o sentido de “transgressão” relacionado a um código moral discutível, e aí começa um ponto que eu quero levantar. Vamos tomar como exemplo aquilo que sempre causa problemas, quando o assunto é transgressão: a sexualidade. Por que, por exemplo, a imagem de uma mulher com o busto desnudo em um espaço é considerada uma transgressão, enquanto a de um homem não? Por que um casal homoafetivo (dois homens, duas mulheres, um homem e uma mulher transgênero) andar de mãos dadas é transgressor e um casal heterossexual (indivíduos de gêneros opostos) não?

Além disso, continuo com outras perguntas: qual o caráter dessa transgressão? Expressar certos padrões de afetividade e sexualidade é um ato transgressor em relação a quê?

Ressalto que essa nota que eu estou fazendo é só uma introdução pra um problema bem maior que eu nem sequer tentarei abordar, que é o da nossa formação moral-social. Mas para fins de continuidade, vou dizer, provisoriamente, que algo é moralmente transgressor quando ultrapassa padrões mais ou menos estritos de comportamento. Posto isso, vou pra segunda parte.

A Transgressão como Fetiche

“Transgressão como fetiche” é um termo que eu pensei (mas, com certeza, não fui eu que criei) quando, vendo aleatoriedades pela internet, notei algumas palavras surgindo em contextos bem diferentes, mas com uma carga moral semelhante. Em notícias e textos envolvendo moralistas de plantão (sacerdotes de certos cultos neopentecostais, juristas e afins de opinião reacionária etc.) algumas palavras surgem para acusar pessoas por seus atos e outras para caracterizá-los. Exemplifico em instantes.

Primeiro, relembremos nosso amigo Roland Barthes quando diz do duplo valor de uma palavra. Como assim? Ora, uma palavra carrega em si tanto o significado dela em relação ao que ela designa de forma mais objetiva quanto um valor implícito na hora em que ela é usada. Confuso? Vamos aos exemplos.

Um caso claro: alguns dos já citados moralistas falam em certos comportamentos morais como “devassos”; falam em certo apelo excessivo à sexualidade como “devassidão” ou ainda “lascívia”. São termos complicados, moralmente agressivos e acusatórios; palavras extremistas para atos simples, como um beijo entre pessoas do mesmo gênero, um casal não-heterossexual andando de mãos dadas ou se abraçando…

Vejam: o termo vem, principalmente, de alguns livros bíblicos e designam comportamentos sexuais diferentes daqueles praticados pelos hebreus (pensando, aqui, na Jerusalém sob jugo romano) e também coisas imorais, como corrupção, autoritarismo, violência arbitrária… Chamar um casal homoafetivo de “devasso” ou “lascivo” justamente por ser um casal homoafetivo é uma forma agressiva e preconceituosa de lidar com o outro; mas, vejam, ela se explica pelo código moral daqueles que usam o termo, são pessoas de formação pautada no preconceito e na agressividade contra aquilo que sai de sua norma.

Temos aqui um significado da palavra “devasso”: alguém que age de forma contrária a certas práticas morais impostas. Uma palavra de teor negativo, ofensivo.

Existem outras palavras de carga moral. Se pensarmos em “vadio” como aquele cuja ocupação diária esteja “vaga”, temos aí uma palavra e seu significado. “Vadio” é aquele que tem um cotidiano vago, por não trabalhar — e não se esforçar em procurar trabalho (uma carga moral). Se pensarmos em alguém que sofre uma traição, essa será “enganado”, “lubridiado”, “traído” — termos que colocam a pessoa que sofre o ato como vítima de um descaso de seu cônjuge por sua pessoa, outra carga moral.

O fetiche de um número gigantesco e incomensurável de pessoas. O erro as excita: A vergonha moral lhes causa impulsos sexuais. Mas causa por qual razão?

Outro exemplo que parece interessante é o da referência a alguém por suas características físicas. Um discurso visando polidez e respeito chama indivíduos afrodescendentes de “negro”. Uma mulher de rosto atendendo a certo padrão de beleza será “bela”. Uma pessoa de ascendência oriental será “oriental”, “nipônica”, “sino-brasileira”.

São termos que têm um significado e objetivo claros. Querem designar alguém, e de forma respeitosa, ou pelo menos, de forma polida e sem julgamentos negativos.

Agora, vamos pensar em um site de entretenimento adulto. Quais as palavras que surgem nas descrições de vídeos, galerias de imagens, anúncios? Palavras que caracterizam o indivíduo como alguém de comportamento inadequado; palavras que indiciam a corrupção de costumes; palavras para o que transgride regras de convívio social prezando tolerância e respeito mútuo.

É “devassa”, “corno”, “vadia”, “japa”, “negão”, “mulata”, “preta”, “cachorra”, “gostosa”, “delícia”, “puta”. Palavras que carregam forte carga negativa e/ou depreciativa, que efetivamente objetificam as pessoas a elas relacionadas, que as acusam de agirem sob erro; que procuram indiciar certa baixeza moral.

Ora, mas essas palavras designam esses valores (isso não significa que seu uso é adequado), não é mesmo? Sim, elas designam valores morais, designam uma opinião de alguém sobre algo. A questão aqui é: sendo de cunho acusatório, por que elas estão em um site de entretenimento? Por que o site voltado a proporcionar certa satisfação e prazer usa palavras vexatórias tão fortes?

Essa é a pergunta que alguém poderia usar como pesquisa de doutorado em filosofia. De minha parte, vou colocar esse “elefante” dentro da sala e me mandar. Tenho algumas hipóteses. Lembra que eu falei lá pra cima da transgressão como contravenção a certo código moral? Pois bem, suponho que grande parte da humanidade tem fetiche (isso é, tem uma pulsão, um estímulo de natureza sexual) pela transgressão a um código moral tão estrito e agressivo; o sujeito sente desejo sexual quando vê cenas que o remetem a esse desvio, um desejo ainda maior quando tais cenas são mediadas por classificações morais.

Vamos tentar decifrar essas palavras. Vou pensar como um homem extremamente moralista que vê um filme adulto (entre parênteses, minha tentativa de tradução do que possam significar esses termos, segundo seu código moral subconsciente). Ele vê um casal que copula: a mulher é uma “devassa” (subentende-se: ela tem um comportamento inadequado à sociedade); ela é uma “cachorra” (subentende-se: ela atende aos desejos de seu subconsciente de forma tão intensa que perde sua característica humana, torna-se um animal); ela é uma “mulata” (subentende-se: ela é uma mulher negra de libido excessiva e desejos sexuais incontroláveis).

Como podemos ver, os termos são extremamente agressivos e vexatórios. E são usados, justamente, por conta disso, por apontarem para um ato como transgressão de certo código. Lembram do Barthes? As palavras dizem mais do que elas querem dizer, e isso é algo inevitável. O caso aqui é esse: as palavras são usadas para descrever a cena e seus atores, mas o fazem com certa carga moral; não se trata apenas de descrever, mas descrever julgando, mostrando um erro, criticando, atacando.

E isso é o fetiche de um número gigantesco e incomensurável de pessoas. O erro as excita. A vergonha moral lhes causa impulsos sexuais.

Mas causa por qual razão? Eu posso arriscar que é porque a verdade é que esses indivíduos têm enorme desejo em tomar parte daquilo; talvez seja uma resposta de suas cabecinhas tortas àquela moral que lhes foi ensinada, mas que eles, em contato com diversas perspectivas do assunto, percebem como erro; porém, tem vergonha de admitir.

Exemplifico: o sujeito cresce ouvindo dos pais que a mulher que usa certa roupa é uma pessoa “devassa”; ele, um dia conhece uma mulher com “certa roupa” e percebe que ela tem valores em comum com ele; mais, percebe que ela não está presa às questões morais da devassidão ao usar “certa roupa”. É um verdadeiro choque para alguém que não foi educado em aprender coisas novas; é excitante porque é uma nova perspectiva sobre algo de sua existência; é excitante, ainda, porque é uma libertação de um código moral que o oprime e que não deixa esse homem fazer as coisas que lhe causam prazer. Por isso, ele, tão veementemente, ataca a mulher que usa “certa roupa” ao mesmo tempo em que sente um enorme desejo sexual por ela.

Isso, talvez, explique porque poucas pessoas tenham fantasias sexuais com carros atravessando o sinal vermelho. Essa não é, simplesmente, uma transgressão moral, mas é um crime que tem uma explicação bem lógica: você pode matar alguém ou ser atingido por um carro vindo na transversal.

Inclusive, penso que esse pode ser um dos motivos pelos quais esses termos se mantêm. São mantidos os termos para que eles perpetuem a ideia de erro e culpa; para que eles sustentem os pilares de certa moral retrógrada; palavras ensinadas e usadas para que as novas gerações sempre saibam como julgar certos comportamentos. E sintam, por esses comportamentos, culpa e vergonha.

Posto isso, caminho para o exórdio dessa notinha sobre transgressão. Notem que eu não falei aqui, como falso moralista: “Vamos prender a Sylvia Saint, mandar a Sasha Grey pra Gulag e decapitar o Ron Jeremy na Praça da Sé!” Por que é que eu não ataquei o entretenimento adulto? Simples, quero, nesses momentos finais colocar que minha percepção sobre o assunto é que o problema maior não é a indústria do sexo (ela é um problema, também). O problema maior é que ela, como indústria, está atendendo a um público consumidor com desejos bem específicos (por exemplo, não há nenhum vídeo de carros cruzando faróis vermelhos no Pornhub); ela é moldada de acordo com quem vai consumi-la. As pulsões sexuais de seus consumidores são um problema.

Elas envolvem uma enorme carga de moralismo, culpa e acusação, e também intolerância e obediência inquestionável. O código moral de quem consome esse tipo de produto é marcado por muitas neuroses e traumas reprimidos, e a incompreensão sobre eles é o que os leva a esse fetiche pela transgressão; a incompreensão sobre esse senso moral extremista ser um problema contribui para o fortalecimento e estabelecimento desse padrão moral no subconsciente do sujeito. Daí, esse sujeito não percebe que está agindo como canalha, ele não aceita que digam que ele precisa repensar seus atos, ele não aceita pessoas que transgridam seu senso moral.

Então, como numa grande cadeia, torna-se um efusivo pregador da moral e dos bons costumes, um defensor de medidas autoritárias contra seus transgressores e por fim, alguém que, no seu desejo reprimido e insaciado, contribui para a sustentação desse mercado do sexo da transgressão.

Mas, Lucas, dirão vocês, o que podemos fazer para reverter isso? Responder a essa pergunta talvez exigisse pelo menos mais umas dez páginas. Minha intenção, entretanto, não é limitar tudo o que apresentei com uma conclusão. É incomodar vocês com algumas hipóteses e apontamentos iniciais de um texto que se pretendeu curto, introdutório e aberto ao debate desses tempos em que, cada vez mais, parece haver uma necessidade: a transgressão.

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Li para escrever:

Aula, Roland Barthes

Como lidar com a pornografia“, vídeo de Mario Persona

termo “Devassidão” na Bíblia

O que significa lascívia na Bíblia“, de Odalberto Domingos Casonatto

Para um direito democrático da sexualidade“, de Roger Raupp Rios

Desejos marginais e a superação do moralismo“, Marília Moschkovich

Autor

  • Autor dos livros de poesia Nada (Patuá, 2019) e Hinário Ateu (Urutau, 2020). Já publicou em revistas como Mallarmargens, 7Faces, Zunái e publica com regularidade nas revistas Úrsula e Subversa.

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