Além de comentar Ucrânia, Brics e Trump, o ex-embaixador fala da sua recente autobiografia e dá conselhos aos jovens diplomatas

Ex-embaixador do Brasil nos Estados Unidos (1991-1993), na Itália (1995) e nas Nações Unidas, em Genebra (1987-1991), Rubens Ricupero foi formado por uma vida de turbulência histórica. Nasceu nove meses antes do Estado Novo e dois anos e meio antes da Segunda Guerra; viveu sob duas ditaduras, a do Estado Novo e a de 1964; acompanhou desde o princípio a Nova República, “com todas as suas vicissitudes”. Em 2024, Ricupero levou à palavra impressa essa biografia, registrando suas Memórias, livro sobre o qual ele discorre na entrevista abaixo à Úrsula. Assim como fala da obra, trata de como “viveu no país” de alguns escritores – isto é, dedicou-se a suas obras de forma exaustiva –, comenta a formação de jovens no campo das relações internacionais e aborda temas da ordem do dia, como a guerra na Ucrânia, o futuro dos Brics e os efeitos possíveis do novo presidente americano para o Brasil: “Trump pode causar danos restritos, mas não além da conta”.
Além de embaixador, Ricupero foi secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) entre 1995 e 2004, ministro do Meio Ambiente e da Amazônia Legal (1993-1994), ministro da Fazenda (1994) e assessor especial do presidente (1985-1987). Também atuou como professor de Teoria das Relações Internacionais na Universidade de Brasília e como professor de História de Relações Diplomáticas Brasileiras no Instituto Rio Branco.
A influência avassaladora do tempo
Daniel Placido – Em suas Memórias, as referências literárias, nacionais ou estrangeiras, são abundantes. Além de Honoré de Balzac, quais são os “países literários” pelos quais o embaixador ainda tem deleite em se aventurar?
Rubens Ricupero – “Morar no país de Balzac”, como escrevi, é ler todas ou quase todas suas obras. Desse ponto de vista, não são muitos os que permitem essa longa habitação ou frequentação. Só aqueles cuja obra é vasta e de qualidade homogênea. De alguns, como o nosso Manuel Antonio de Almeida, ficou só na prática um livro, o Memórias de um Sargento de Milícias. Em minha vida, o primeiro escritor no qual “morei” muito tempo, a ponto de ter lido quase tudo o que escreveu, até a correspondência, foi Monteiro Lobato, na infância e adolescência. Seguiram-se Eça de Queiroz, Machado de Assis, Balzac, Marcel Proust, Thomas Mann, Guimarães Rosa, um ou outro mais que estou esquecendo. Minha última descoberta de ficção nesse sentido de querer explorar a obra completa, não apenas um livro ou outro, foi o alemão W. G. Sebald. Desde então, tenho estado sempre à procura de algum país literário novo que valha a pena explorar por muito tempo, mas até agora não tive sorte.
Daniel Placido – Goethe, na introdução de Memórias: poesia e verdade, disse que “a tarefa principal da biografia é […] descrever e mostrar o homem em suas relações com a época, até que ponto o conjunto o contraria ou favorece, que ideias ele forma em resultado disso a respeito do mundo e da humanidade, e – se é artista, poeta, escritor – de que modo as reflete”. Tomando como mote essa afirmação goetheana, como o embaixador percebe sua relação enquanto sujeito com o contexto histórico e social em que se desenvolveu e como isso se reflete na elaboração literária de suas Memórias?
Rubens Ricupero – A descrição é perfeita. Ajusta-se por completo ao meu livro. Deixei claro, desde o início, a influência avassaladora do tempo em me fazer o que sou, ao escrever nas memórias que nasci (março de 1937) nove meses antes do Estado Novo no Brasil (novembro de 1937) e dois anos e meio antes do começo da Segunda Guerra Mundial (setembro de 1939). Dos meus primeiros dez anos de vida, 1937 a 1947, quase sete se passaram durante a guerra. Minhas primeiras lembranças são do fim do conflito: a libertação de Paris (agosto de 1945), o julgamento de Nuremberg (1946). A isso atribuo me haver interessado pela política mundial desde criança e a vocação para as relações internacionais. Por outro lado, no Brasil, vivi durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945), o breve regime da Constituição de 1946, interrompido pelo golpe militar de 1964, o regime militar de 1964 a março de 1985, a atual Nova República, com todas suas vicissitudes, em outras palavras, num país em que a instabilidade é a regra, não a exceção. Esses dois processos, o mundial e o brasileiro, foram responsáveis pelo que sou psicologicamente de maneira talvez que eu próprio não sou capaz de perceber em todas suas implicações.
Não há segredo: trabalho duro, constante; persistência
Thais Zwicker – Como o embaixador avalia a contribuição dos modelos de simulação das assembleias da ONU, como o Modelo de Simulação das Nações Unidas (MUN), para promover o entendimento da relevância das Nações Unidas entre os jovens e seu reconhecimento pela sociedade como um todo?
Rubens Ricupero – Sempre gostei muito dos modelos de simulação, tanto como ferramentas de aprendizagem prática quanto como formadores do caráter. O MUN é importante, como diz a pergunta, para fazer os jovens e a sociedade aprenderem o que significa a convivência de quase 200 nações diferentes num foro como o das Nações Unidas. Ao fazer com que as moças e rapazes encarnem outros povos, até se trajando como eles, tentando pensar como eles, contribui para que compreendam como os outros pensam e reagem, colocando-se na posição dos outros. Outra vantagem que vejo é que o exercício constitui um meio poderoso para ensinar como dialogar, como participar de um debate obedecendo as regras, aprendendo a ouvir os demais com respeito e a responder de modo moderado e igualmente respeitoso. É algo que faz falta imensa no Brasil, até no Congresso Nacional.
Thais Zwicker – Na sua visão, qual é a magnitude do papel de um diplomata no cenário internacional, e como essa posição contribui para a promoção da paz, do diálogo e da cooperação entre os países?
Rubens Ricupero – Promover a paz e a segurança, trabalhar para o entendimento dos povos, para o diálogo, a compreensão, a colaboração, é um dos papeis mais nobres a que alguém pode aspirar na vida. Jesus mesmo diz no Evangelho: “Bem-aventurados os que promovem a paz pois serão chamados filhos de Deus!” Hoje em dia, com a exacerbação de conflitos como o da Ucrânia e o da faixa de Gaza, percebe-se como a diplomacia se confunde com a própria sobrevivência da humanidade.
Thais Zwicker – Que conselho o embaixador daria aos jovens que sonham em seguir a carreira de Relações Internacionais, especialmente àqueles que se sentem intimidados pelos desafios ou pela competitividade dessa área?
Rubens Ricupero – É preciso ter motivação forte e perseverança pois o caminho é difícil. Meu exame de ingresso no Instituto Rio Branco foi em 1958, 66 anos atrás, e meu examinador em Cultura Geral foi João Guimarães Rosa. Não posso falar sobre o exame de hoje, mas não creio que seja muito mais árduo do que naquele tempo. O importante é se preparar bem, principiando por algo que é essencial em qualquer carreira: aprender a se expressar por escrito ou oralmente com clareza, objetividade e correção. Só isso já é 50 por cento do caminho. Durante minha preparação, segui uma regra: todo dia escrever algumas linhas, mesmo quando estivesse cansado. Adquirir a prática da escrita, em português e depois nas línguas requeridas no exame. Ler muito para adquirir vocabulário, tentar imitar bons modelos (Machado de Assis, Joaquim Nabuco, as crônicas de Drummond, Manuel Bandeira, Rubem Braga). Nos meses que precederam meu exame, eu passava todas as tardes e parte da noite na Biblioteca Municipal até o fechamento. Não há segredo: trabalho duro, constante; persistência.
Mundo multipolar, Trump e Ucrânia, Trump e Brasil
Rafael Bensi – Em seu livro mais recente, o historiador americano Peter Heather e o economista John Rapley argumentam que o bloco imperialista ocidental, comandado pelos EUA, está em declínio. Eles argumentam, entre variadas questões, que os padrões de produtividade e a geração de riqueza econômica estão em passos largos migrando para a Ásia, logo, a China seria o maior obstáculo para o Ocidente. Como o embaixador enxerga a China neste momento e o que projeta para o futuro dos Brics?
Rubens Ricupero – É preciso não perder o senso das proporções e da realidade. A China, a Índia, o resto da Asia, estão de fato crescendo muito. Isso não é necessariamente um problema ou ameaça. Para o Brasil, por exemplo, tem sido uma bênção: nossos maiores mercados estão na Ásia, cerca de 50% do destino das exportações. Os EUA também têm tido grandes vantagens com o comércio e os investimentos na China. Caso se aceite que o sistema internacional do futuro não terá uma potência dominadora hegemônica, que haverá vários países de tamanhos diferentes com orientações próprias mas dirigidas ao intercâmbio, ao diálogo, à cooperação, não vejo nisso nada de preocupante. Nesse contexto, a crescente importância dos Brics é justamente um símbolo de um sistema cada vez mais pluralista e autônomo.
Rafael Bensi – Após a vitória de Donald Trump, a administração Joe Biden realizou um movimento muito perigoso em relação ao conflito na Ucrânia. Vimos que os ataques autorizados com mísseis de longo alcance fornecidos pelos americanos na região fronteiriça com a Rússia obtiveram uma retaliação pesada por parte do Kremlin, que utilizou um míssil intercontinental em instalações de infraestrutura ucranianas. Como o embaixador analisa este momento e o que esperar da administração Trump em relação ao conflito?
Rubens Ricupero – Não se deve esquecer que a Rússia iniciou não só a invasão, mas tem tido a iniciativa de cada etapa na escalada, como se viu com a utilização de soldados da Coreia do Norte e do Yemen, de armas do Irã, etc. Nesse tipo de conflito, a cada grau de escalada, o lado oposto reage. Como a Ucrânia é a parte mais fraca, é natural que receba armas e apoio de seus aliados, EUA e Europa. Essa lógica levará ao agravamento constante do conflito e ao risco da perda de controle. A esperança é que o novo fator representado pela chegada de Trump ao poder crie condições para negociações que conduzam a uma paz justa e equilibrada para ambos os lados. Mas, para isso, é necessário que Putin, o agressor, também demonstre estar pronto a compromissos.
Rafael Bensi – Em relação ao Brasil e a notória aproximação com a China, podemos imaginar que o governo Trump tentará criar empecilhos para o crescimento brasileiro. Com sua vasta experiência, como o embaixador projeta as ações do governo estadunidense e como o Brasil pode minimizar essas tensões, sem prejudicar suas relações com a China?
Rubens Ricupero – Trump certamente não possui afinidades ideológicas com o governo Lula nem terá simpatia por ele. Sua capacidade de nos criar problemas é, no entanto, limitada. Ao contrário dos europeus, o Brasil e a América do Sul não dependem da proteção norte-americana para defesa e segurança pois estamos afastados das zonas de conflito. Nossos principais mercados estão na China e na Ásia; além disso, nosso comércio exterior é equilibrado, pois não dependemos de um só parceiro. O que Trump pode fazer é impor tarifas ao Brasil, como já fez no passado contra o aço e o alumínio. Pode causar danos restritos, mas não além da conta. O Brasil continuará a dispor de condições para seguir uma política externa autônoma e de acordo com nossos interesses.