O professor também analisa o legado de Joe Biden e comenta a queda de braço entre China e Estados Unidos pela hegemonia
Conforme esta entrevista com o pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) Roberto Goulart Menezes é publicada, peças importantes estão prestes a se mover. Também professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), Roberto comenta o momento de expectativa pelo resultado das eleições americanas – que ocorrem em 5 de novembro – e quais podem ser as consequências, seja da vitória de Kamala Harris, seja de Donald Trump, para questões de nível global, como o clima (“Biden avançou na agenda ambiental. Kamala manterá esta agenda. O mesmo não pode ser dito de Trump”) e as guerras em Gaza e Ucrânia (“Trump e Kamala seguirão com o apoio incondicional a Israel. Já em relação à Ucrânia, Trump afirma que vai parar de financiá-la”).
Abordando nesse contexto o legado do governo Biden e o estágio atual da disputa entre China e EUA pela hegemonia, o entrevistado trata também do futuro dos Brics (grupo econômico que, a princípio, reunia Brasil, Rússia, Índia, China – donde o nome Bric, tornado Brics com a adesão da África do Sul; hoje inclui também Egito, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Etiópia e Irã), movimentação que, aponta ele, terá um novo capítulo em 18 e 19 de novembro, na Cúpula do G20, que será sediada no Rio de Janeiro. Roberto é doutor em Ciência Política com ênfase em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (USP) e também professor visitante na Universidade Nacional Autonóma do México (Unam).
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Rafael Bensi – Olá, professor Roberto, para iniciar esta conversa, poderia nos falar um pouco a respeito de suas impressões do governo Joe Biden? Existe um legado que pode ajudar ou prejudicar Kamala Harris na disputa presidencial?
Roberto Menezes – O governo Biden conseguiu aprovar o projeto de infraestrutura no congresso em 2021 no valor de US$ 1,2 trilhão de dólares. O objetivo é modernizar pontes, rodovias, portos e também ampliar o acesso às redes de internet de alta velocidade. Neste pacote também está incluído o programa de transição energética dos EUA. Assim, o governo Biden tenta reposicionar os EUA na disputa tecnológica e econômica com a China. No geral, os indicadores econômicos da gestão Biden são bons, apesar de não conseguir transformá-los em aprovação ao seu governo. Um dado que chama a atenção é que Kamala aparece à frente de Trump em várias pesquisas. Isso em parte se deve à aprovação de muitas políticas de Biden.
Rafael Bensi – Temos uma disputa acirrada em andamento, com Trump e Kamala Harris, mas o que de fato diferencia os candidatos no que tange à política externa? A guerra na Ucrânia é um tema sensível, bem como o genocídio promovido em Gaza por Israel. Como o professor enxerga essas questões? Como cada candidato pode influenciar essas duas frentes em que os EUA estão envolvidos?
Roberto Menezes – Em relação a Israel, tanto Trump como Kamala seguirão com o apoio incondicional dos EUA a Israel. E isso significa apoio diplomático, inclusive vetando resoluções no Conselho de Segurança que sejam desfavoráveis a Israel, apoio econômico e financiamento para que Israel compre mais armas. O governo Biden não está nem um pouco preocupado com o sofrimento do povo palestino. E quase nada fez para parar o genocídio e as políticas de colonização do governo de Israel. Os acordos de Oslo de 1993 simplesmente não foram cumpridos e pioraram a vida dos palestinos. Some-se a isso que Israel tem conseguido aumentar a sua autonomia em relação aos EUA e com isso implementa políticas na área de defesa à revelia do seu principal apoiador, que são os EUA. Já em relação à Ucrânia, Trump afirma que vai simplesmente parar de financiá-la e que esta guerra é dispendiosa. Os EUA já gastaram cerca de US$ 180 bilhões desde o início da guerra em fevereiro de 2022. Então Trump tende a aplicar a política de interesse seletivo dos EUA, ou seja, nem todo conflito interessa à grande estratégia dos EUA. No entanto, a Europa pode pressionar para que os EUA não saiam de uma hora para a outra. E o que parece mais provável, caso Trump seja o presidente dos EUA a partir de 2025, é que a retirada do apoio seria gradual. Ou então ele abrirá uma frente de tensão nas relações EUA-Europa.
Daniel Plácido – O Partido Republicano tinha como bandeiras claras a posição contra o aborto e a definição do casamento como união entre homem e mulher, mas Trump tem revisado esses pontos. Qual seria o impacto eleitoral disso? Ele poderia perder apoio entre os eleitores conservadores buscando um voto mais progressista?
Roberto Menezes – Trump hoje domina o Partido Republicano e a agenda do partido agora é a da direita radical e da extrema direita. Veja que há republicanos como o ex-vice-presidente Dick Cheney, que votará em Kamala. Embora a família Bush não tenha feito o mesmo que ele, tampouco apoia Trump. Então hoje o Partido Republicano não está dividido e sim tomado por Trump e seus partidários da direita radical. E a Suprema Corte derrubou a decisão que assegurava o direito ao aborto e, para isso, foram decisivos os votos dos indicados por Trump, que são de extrema direita. Hoje são seis conservadores e três liberais na Suprema Corte. Isso já está decidido, por enquanto. E o outro ponto é o casamento de pessoas do mesmo sexo. A Suprema Corte não revisou esta decisão. E nos EUA os direitos LGBTQIA+ seguem avançando. Então essas duas pautas são mais para o eleitorado do meio-oeste e de cidades mais conservadoras. Na costa Leste e na Califórnia isso já está dado.
Daniel Plácido – O sociólogo Giovanni Arrighi disse em uma entrevista de 2007: “Os Estados Unidos ainda são dominantes, econômica, militar e politicamente. Mas é uma dominação sem hegemonia, no sentido de que hegemonia não é apenas dominação pura, mas também a capacidade de fazer os outros acreditarem que você age no interesse geral”. Mais recentemente, seria possível interpretar o papel de figuras como Trump, com sua retórica belicosa, nacionalista e com ataque às instituições da democracia liberal, como um franco abandono de qualquer forma de hegemonia para uma tentativa (viável ou não) de dominação declarada? O que o senhor pensa disto, de qualquer modo: existe um declínio do poder mundial dos EUA e o trumpismo seria seu canto de cisne? E haveria, em contrapartida, uma possível ascensão da China?
Roberto Menezes – Arrighi analisa em sua obra o que ele denomina caos sistêmico, ou seja, a crise de hegemonia pode se apresentar de duas formas: uma crise em que a potência dominante tenta refazer os laços e elos que sustentam a sua capacidade de continuar a ditar as regras do jogo juntamente com os seus sócios mais próximos (Europa, Japão, Austrália, Canadá) e o segundo é quando a crise da hegemonia seria irreversível, aí teríamos a crise terminal. Ao precisar a diferença entre hegemonia e dominação, Arrighi está dando ênfase à necessidade que tem uma potência hegemônica de convencer, negociar e tentar levar adiante as suas iniciativas, e que a sua liderança seja percebida como benéfica para os seus aliados, ainda que haja contratempos. Quando a potência hegemônica perde esta capacidade, então cada vez mais recorre ao uso da força, ou seja, à dominação. Arrighi chamava a atenção para o fato de que cada vez mais os EUA têm a sua capacidade hegemônica erodida e, em seu último livro, ele analisou a ascensão pacífica da China. Ele faleceu em 2009 e, portanto, não vivenciou o rápido crescimento chinês desde então. Em 2022, a China foi denominada pelo governo Biden como inimiga dos EUA. Isso dá um pouco da medida de como a China vem subvertendo o poderio até então inconteste dos EUA em várias áreas.
Thais Zwicker – Ampliando o contexto, o que o professor pensa sobre o futuro do Brics? O professor acredita que o bloco ganhará mais força nos próximos anos e poderá se tornar comparável em força à União Europeia, ou considera que ele permanecerá estático, sem grande influência no cenário global?
Roberto Menezes – Os Brics cada vez mais se firmam como uma coalizão de caráter geopolítico. Na cúpula de Kazan que vai ocorrer agora na Rússia pode ser que novos países sejam anunciados como membros. Isso incomoda e muito o Brasil, pois quanto mais países entrarem, mais o poder do Brasil e dos outros membros vai se diluindo na coalizão. E é claro que essa política fortalece a posição chinesa. Então não diria que os Brics sejam uma coalizão que está no mesmo patamar do projeto de integração europeu. Eles têm natureza e objetivos distintos. O banco dos Brics tem ganhado mais importância e isso atrai a atenção de muitos países por conta da sua capacidade de financiamento e em condições melhores. Mas o Novo Banco de Desenvolvimento não trabalha de costas para o FMI [Fundo Monetário Internacional] e o Banco Mundial. Banco é banco. E o dos Brics não é diferente. São 15 anos dos Brics e desde o começo já conseguiram avançar em algumas frentes. O objetivo principal dos Brics é a reforma da instituições financeiras. Começou com o FMI e tem se estendido para outras como o Banco Mundial. Aliás, esse é um ponto importante: a atuação conjunta dos Brics no FMI e no G20 financeiro. Nos dias 18 e 19 de novembro veremos como os Brics atuarão na Cúpula que será realizada no Rio de Janeiro.
Thais Zwicker – Os EUA abandonaram o Acordo de Paris oficialmente em 2020, durante o governo Trump, mas retornaram em 2021 sob o governo Biden. Como o professor considera o posicionamento dos EUA neste acordo atualmente? E o que mudaria na agenda ambiental estadunidense com uma eventual vitória da candidata Kamala Harris ou do candidato Donald Trump?
Roberto Menezes – O governo Biden avançou na agenda ambiental. E caso Kamala seja a presidenta ela manterá esta agenda. O mesmo não pode ser dito de Trump. Ele tem uma posição de que o meio ambiente atrapalha a economia e a competitividade dos EUA e que os outros países não cumprem os acordos ambientais e isso deixa os EUA, segundo ele, com cara de bobo. Sabemos que não é bem assim. O fato é que os EUA têm perdido competitvidade em algumas áreas na disputa principalmente com a China e isso é instrumentalizado por Trump como forma de atacar as questões ambientais. Recentemente, outro furação devastou parte dos EUA. E os incêndios na costa Oeste estão cada vem mais intensos. Então a emergência climática não é algo que virá. Já é uma realidade. Embora Trump seja negacionista climático e científico o fato é que parte dos governadores e prefeitos não seguem ele nesta cruzada contra o ambiente. E a depender da composição do congresso também. Um gesto simbólico do governo Biden foi fazer uma doação ao Fundo Amazônia. Já Trump e Bolsonaro simplesmente queriam pôr abaixo a floresta.