Putin x Zelensky: A Guerra das Narrativas e a Busca pela Verdade

O fio de navalha entre afirmar a condenação moral da guerra e compreender os vários elementos políticos em jogo

O “burocrata” russo e o “líder” ucraniano – aspas propositais, pois a função é a mesma | imagens: montagem a partir de retratos oficiais

Nas fotos da primeira reunião entre representantes da Rússia e Ucrânia com o objetivo (frustrado) de colocar fim na guerra, um detalhe chama a atenção: os representantes russos estão vestidos formalmente, de terno e gravata ou pelo menos trajes sociais, enquanto do lado da Ucrânia estão todos de camisetas esportivas e um deles usa um boné.

Registro da primeira reunião entre Rússia e Ucrânia após o início da guerra | imagem: divulgação

Da mesma maneira, Vladimir Putin, que governa a Rússia há 22 anos, tendo passado por toda uma carreira como funcionário do Estado, se dirige ao mundo em trajes formais, por trás de uma sisuda escrivaninha de madeira com um computador e vários aparelhos telefônicos – nos memes brasileiros, foi dito que parecia um porteiro de um edifício comercial na Avenida São João, em São Paulo. Seu tom de voz é monocórdio, seus discursos (como o de 24 de fevereiro, no despontar da guerra) são longos, maçantes e evocam a história e intricadas razões geopolíticas como justificativas para a guerra – ou “operação militar”, no jargão oficial do Kremlin. Já sua contraparte em Kiev, o ex-comediante Volodimir Zelensky, aparece em vídeo usando trajes esportivos, tem um ar jovial e um discurso inflamado, criando frases feitas que viram manchetes instantâneas do tipo “não preciso de carona (para fugir), preciso de munição” ou “não queremos soldados russos mortos no nosso solo”.

A grande imprensa ocidental (não nos enganemos: aqui agindo despudoradamente como um braço da política externa de seus respectivos países) caiu de paixões pelo ucraniano Zelenksy, e parece disposta a perdoar qualquer “deslize” (leia-se: violações de direitos humanos) cometidos pelo seu governo, antes, durante e após a guerra. Na guerra do velho contra o novo (ou: da aristocracia russa contra a modernidade europeia/ocidental), o “líder” ucraniano tem larga vantagem sobre o “burocrata” russo (aspas propositais, pois a função é a mesma). Ter a óbvia vantagem moral de estar do lado invadido e mais fraco é importante, mas não decisivo para se ganhar o apoio da opinião pública do Ocidente – que o digam os palestinos, por exemplo. Imagem é fundamental.

E Zelensky é exatamente um profissional da imagem. Nascido em 1978 (quando Putin já era um oficial da KGB soviética), o ucraniano foi produtor de TV, ator e comediante. Ganhou popularidade nacional a partir de 2015 com a série satírica de TV Sluha Narodu (Servo do Povo, em ucraniano), produzida por ele mesmo e transmitida pelo canal de propriedade do bilionário (ou “oligarca”? depende do alinhamento) Ihor Kolomoisky, um dos homens mais ricos da Ucrânia. Na série que, após o início da guerra, despertou interesse de operadoras de streaming mundo afora, incluindo a Netflix – Zelenksy interpreta um professor colegial que é filmado pelos alunos enquanto critica a corrupção dos políticos e, com isso, viraliza e ganha notoriedade até chegar à – veja só! – presidência da República. É o clichê do “homem comum” que chega ao poder, tão explorado em peças de Hollywood ou no nosso cinema nacional. Numa das cenas mais famosas, seu personagem aparece metralhando os membros do parlamento – a vingança do cidadão honesto contra os “políticos corruptos”:

Da ficção à realidade – o triunfo do “servo do povo”

No final de 2018, o Zelensky da vida real saiu candidato à presidência pelo recém-fundado partido chamado (adivinhem?) Servo do Povo. Com uma campanha concentrada nas mídias sociais e apoio do bilionário Kolomoisky, em abril de 2019 derrotou no segundo turno o então presidente Petro Poroshenko com 73% dos votos válidos.

Em certa medida, a chegada de Zelensky ao poder foi uma consequência do movimento da Praça Maidan, chamado de “Revolução de Euromaidan” ou “Primavera Ucraniana”, a depender das inclinações de quem o batiza. Na virada de 2013 para 2014, milhares de manifestantes acamparam nesta praça em Kiev, enfrentaram o congelante inverno ucraniano (com temperaturas chegando aos 20 graus negativos) e a violência das forças de segurança, para exigir a deposição do presidente Viktor Yanukovych, que havia se recusado no último momento a assinar um acordo de cooperação com a União Europeia, atendendo aos apelos do russo Putin. Centenas de manifestantes morreram e o presidente acabou derrubado por um impeachment. Diversas forças políticas (e grupos armados) surgiram deste movimento, algumas de extrema-direita ou flertando com a simbologia nazista, mas quase sempre com o discurso de “varrer a corrupção”, renovação política, criminalização do comunismo (a simbologia comunista, onipresente até o fim da URSS, foi proibida) e a busca de proximidade com o Ocidente. Este caldo de cultura deu origem ao triunfo do “servo do povo” Zelensky, um “outsider” da política, mais ou menos como os protestos de 2013 no Brasil desembocaram no impeachment de Dilma (2016) e na eleição do “outsider” Bolsonaro (2018).

Não é coincidência, portanto, que alguns movimentos bolsonaristas tinham a “Revolução de Euromaidan” como exemplo de insurreição conservadora, e apelem abertamente à necessidade de “ucranizar” o Brasil – ou seja, uma radicalização armada com silenciamento das instituições “corruptas” (congresso e judiciário), sob a liderança do “homem forte” Bolsonaro e “seu” exército. Essa mesma turma deve ter tido um curto-circuito no cérebro (ou no que resta dele) quando o líder infalível deles foi a Moscou dizer a Putin “somos solidários à Rússia”, quando a invasão à Ucrânia era mais que iminente…

De volta à Ucrânia, não demorou muito para a população ucraniana perceber que a realidade nem sempre imita a ficção, e que os “mitos” da TV  tendem a se tornar mais do mesmo quando chegam ao poder. A principal promessa eleitoral de Zelensky – pacificar os conflitos na região do Donbas, na fronteira com a Rússia, ao leste, onde separatistas pró-Rússia lutam desde 2014 contra as forças armadas oficiais – jamais se concretizou. Sua popularidade estava em queda no final de 2021. A guerra lhe ofereceu enorme repercussão internacional e um palanque eleitoral imbatível. Como já aconteceu em situações paralelas, o discurso do líder da nação agredida conclamando “união nacional” e “defesa da pátria” elevou sua popularidade para a casa dos 90%, ou quase unanimidade. Num país em escombros e sob bombardeio, fica ainda mais fácil silenciar qualquer oposição como “inimiga da nação” – em 20 de Março, o governo Zelensky anunciou o banimento de 11 partidos políticos do país, acusados de ligações com a Rússia. Se o objetivo de Putin era a troca do regime em Kiev, o resultado da invasão foi facilitar a reeleição do rival.

Veja também:
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A reação internacional: a vala comum das hipocrisias e verdades inconvenientes

Na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), diplomatas do mundo inteiro dão as costas e abandonam o recinto durante o discurso do chanceler russo Sergey Labrov. Na votação, 141 países condenam a invasão e apenas quatro votam com os russos – Coreia do Norte, Síria, Eritreia e Belarus. Há um contingente significativo de abstenções, porém, incluindo China, Índia, Cuba e boa parte dos países africanos. Naturalmente, a imprensa ocidental dá grande repercussão à condenação internacional da guerra, inversamente proporcional ao silêncio dedicado às condenações de Israel (pelas seguidas agressões aos palestinos) e dos EUA (pelo bloqueio comercial a Cuba) pela mesma Assembleia Geral em ocasiões similares.

Enquanto a guerra na Ucrânia completa um mês, em meio às cenas de morte, tragédia humanitária e destruição, acumulam-se verdades inconvenientes. Por exemplo, não convém dizer que imigrantes negros ou de origem árabe estão sendo impedidos de fugir da Ucrânia ou estão sendo perseguidos na vizinha Polônia, destino preferencial da onda migratória. Também não convém apontar as mais do que evidentes ligações do governo ucraniano com milícias neonazistas – incluindo o Batalhão Azov, incorporado às Forças Armadas ucranianas apesar da extensa capivara de atrocidades cometidas. “Zelenksy é judeu, como seu governo pode ser nazista?” virou a nova versão de “como posso ser racista, se tenho até um amigo preto?”. A contínua expansão da Organização do Atlântico Norte (Otan) rumo ao Leste, o Massacre de Odessa, a perseguição às populações russas (ou aos falantes do idioma russo) na Ucrânia e outros países da ex-URSS (liberada inclusive nas redes sociais, que abriram uma exceção quando o alvo do discurso de ódio são soldados russos), tocar em qualquer um destes temas espinhosos podem ser suficientes para garantir um rótulo de “agente de Moscou” ou “putinha do Kremlin”.

Na Globonews, Guga Chacra foi enquadrado por Sardenberg por desviar demais da trajetória

O discurso contra-hegemônico – que já encontra espaço restrito em tempos de (relativa) paz – passou a ser  imediatamente classificado como “pró-Rússia” ou “pró-Putin” desde o início da guerra. Órgãos de imprensa russos, ou simplesmente classificados como “alinhados à Rússia”, como o Red Fish Stream, estão sendo silenciados em países europeus. Zelensky é um “presidente eleito democraticamente”, com apoio da sua população, portanto parece imune a críticas. Está “do lado certo da História”, seja lá o que isso quer dizer. Putin também foi eleito (mais de uma vez, inclusive) e também parece ter o apoio da população – verdades que devem ser ponderadas à luz das muitas ressalvas que pesam sobre as instituições de ambos os países (e não apenas as destes). Todavia, de repente o presidente russo passou a ser rotulado como “ditador”, nessa classificação binária que propositadamente ignora todas as deficiências dos sistemas representativos para separar o mundo entre “povos democráticos” e “tiranias”. Uma classificação tão arbitrária quanto se falar em “lado certo” e “lado errado” da história.

Por sinal, quanto à demonização de Putin e seu regime na Rússia, cabe uma provocação: se a queda da União Soviética representou a “libertação” dos russos (e ucranianos, e outras dezenas de etnias e nacionalidades) da tirania comunista, com o novo presidente Boris Yeltsin saudado pela imprensa ocidental como um democrata (mesmo mandando bombardear o prédio do parlamento) e recebido por Bill Clinton nos EUA às gargalhadas (diziam que o russo estava sempre de pileque), e se Putin nada mais é do que o sucessor de Yeltsin (de quem foi vice)… o que deu errado? Em que momento a Rússia passou do lado “certo” para o “errado” da história, se ela não deixou de ser um país capitalista e, em tese, democrático, com eleições periódicas, McDonald’s, shopping centers, bilionários e tudo o que manda o figurino?

Yeltsin e Clinton às gargalhadas, nos anos 1990. O que deu errado?

Que fique claro: não há justificativas para a guerra, do ponto de vista moral. Se reconhecemos o direito dos povos à autodeterminação, não podemos aceitar que um país seja invadido e bombardeado por outro por uma divergência quanto a alianças militares. Aceitar que o Kremlin possa dirigir a política de países vizinhos é tão absurdo quanto aceitar que Washington possa nomear governos para Cuba ou Venezuela, em nome de um “destino manifesto“. A desculpa de “desnazificar” a Ucrânia é tão falsa quanto as utilizadas pela propaganda soviética para justificar a invasão da Tchecoslováquia em 1968, ou a construção do Muro de Berlim, na década de 1950. É possível ser contrário ao imperialismo americano e ao russo (e ao chinês) ao mesmo tempo. Eis uma autêntica casca de banana em que setores da esquerda brasileira tendem a escorregar – mesmo cientes de que o regime de Putin nada tem de comunista ou mesmo de socialista. Buscar a informação em fontes alternativas, fugindo do discurso hegemônico e binário, não implica em cair na teia da contra-informação do governo russo.

E mesmo num mundo inundado por informação e com acesso às várias visões da realidade, temos que dar razão à máxima: “Na guerra, a primeira vítima é a verdade”.

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