Penitenciárias Brasileiras: Muito Mais do que uma Crise, um Projeto

Num momento de crise aguda, guerra entre facções e chacinas, o sistema prisional volta as manchetes dos maiores jornais do país. Mas este não é um problema novo, muito menos recente: a “crise” é crônica.

Para falar sobre o assunto convidamos o autor nigeriano Cornelius Okwudili Ezeokeke de 45 anos. Recluso por tráfico internacional de drogas pela maior parte do tempo que passou no Brasil, Cornelius se tornou bacharel em teologia pelo Instituto de Ciências Religiosas de Fortaleza (Icre) — cursado no próprio presídio, fez pós-graduação em Segurança Pública e lançou dois livros sobre a sua experiência. Em Penas mais rígidas: justiça ou vingança e Paradoxos do Cárcere, Cornelius fala sobre a crise no sistema carcerário, suas falhas e problemas sociais envolvidos, e as dificuldades para se acessar a Justiça Brasileira quando se é negro, estrangeiro e pobre. Como relata a Melquíades Júnior, teve seu direito de defesa negado diversas vezes, enquanto presos que cometeram crimes muito mais graves ganhavam liberdade.

Reflexo de uma sociedade desigual, as penitenciárias brasileiras apresentam crises e falhas consecutivas, de modo que se pode dizer — parafraseando Darcy Ribeiro quando se refere à educação no Brasil — “A crise penitenciária não é uma crise, mas sim um projeto’’, um projeto que se sustenta sobre a exclusão e o racismo. Como afirma Cornelius: “A crise penitenciária é sistêmica e a tendência é continuar do jeito que está, a não ser que alguma coisa seja feita agora. Há vários fatores que levam o sistema carcerário a ser essa escola do crime que se tornou, um deles é a criminalização da pobreza e dos negros.”

Com uma das maiores populações carcerárias do mundo, em sua maioria negros e pobres, o sistema carcerário brasileiro se revela cada vez mais ineficiente na reintegração dos presos na sociedade.

Como se sabe, o sistema prisional brasileiro é superlotado e dominado por facções que negociam a preços altos proteção a presos e organizam o tráfico de drogas dentro e fora dos presídios. Além disso, pouquíssimos presos têm acesso à educação e ao trabalho e também não há uma assistência eficiente para auxiliar o detento quando este ganha à liberdade, isso certamente contribui para um grande número de reincidências. A maior parte dos detentos está preso por tráfico de drogas — número que aumentou vertiginosamente com a nova lei antidrogas –, e não por crimes graves, como se imagina. A lentidão do sistema judiciário colabora: 41% da população carcerária nem mesmo foi julgada e condenada.

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Como você vê a crise nas penitenciárias hoje?

A crise penitenciária decorre da falta de investimento no sistema. Não há investimento onde deveria haver, como por exemplo, na educação prisional. É preciso que os encarcerados sejam responsabilizados pelos seus atos, mas quando demonstrem que realmente querem mudar de vida, deve haver resposta do sistema para eles.

Você vê alguma relação entre a situação do sistema carcerário e os problemas sociais do Brasil?

Acho que a crise é um reflexo das negligências e falhas na política penitenciária. A sociedade precisa fazer a sua parte antes de culpar quem quer que seja. Cada um deve fazer sua parte, uma vez que não há um único culpado, pois todos têm sua parcela culpa: há culpa do preso, dos governantes e da sociedade à medida que não fazem o que tem que ser feito.

Você lançou dois livros sobre esse assunto. Você poderia me falar um pouco dos seus livros?

Lancei dois livros que falam exatamente o que estou dizendo agora. Não acredito que todos os presos sejam irrecuperáveis e nem tampouco que todos sejam passíveis de recuperação. Cada caso deve ser analisado de modo individual. Os meus livros mostram que se oferecemos oportunidades, teremos muito mais presos recuperados. E que essa situação nos presídios interessa a alguns segmentos da sociedade, daí porque não se faz nada para mudar essa situação.

Se os presos fossem recuperados não haveria uma sensação se insegurança, [os políticos] não teriam bandeira para chegar ao poder.

A que setores da sociedade interessa crise crônica do sistema penitenciário e de que maneira se beneficiam dela?

Os setores que se beneficiam da situação caótica nos presídios são, paradoxalmente, da segurança privada, cujas empresas pertencem em sua maioria à políticos. Por outro lado, se os encarcerados tivessem a oportunidade de serem recuperados isso não seria interessante para eles. Veja que se elegem com discurso de segurança pública, pois a população quer uma segurança que preste. Se os presos fossem recuperados não haveria uma sensação se insegurança, não teriam bandeira para chegar ao poder.

Quais as medidas que você acha que poderiam ser tomadas para enfrentar a crise prisional brasileira?

As medidas que acho que poderiam ajudar é humanizar as relações nos presídios. Tratar essa gente como ser humano que errou sim, mas merece chance de recomeçar. Depois é preciso fazer um trabalho de conscientização dos presos e da sociedade. A constituição não aceita eternização da pena, mas a sociedade eterniza punição a medida que essas pessoas não encontram nenhuma oportunidade de ser reincluído na sociedade. A educação com certeza é a melhor maneira de aplacar a crise que se instalou no país.

Você acha que ela é sistêmica, fruto de um sistema desigual e racista tão marcante na história do país ou ocasional?

A crise penitenciária é sistêmica e a tendência é continuar do jeito que está, a não ser que alguma coisa seja feita agora. Há vários fatores que levam o sistema carcerário a ser essa escola do crime que se tornou, um deles é a criminalização da pobreza e dos negros. Como estrangeiro que passou por uma situação de privação de liberdade, percebi essa questão nitidamente. Vi também que a maioria dos encarcerados é negra e isso é estranho. Me lembro das minhas primeiras perguntas: Por que que os presídios estão cheios de negros? Será que só eles que cometem crimes no Brasil?

Qual tem sido o papel dos direitos humanos na questão do sistema prisional brasileiro?

Bom, em relação aos direitos humanos, acho que fazem sua parte, porém é preciso entender o que quer dizer direitos humanos, pois há um conceito errado sobre isso e isso não ajuda na solução dos problemas carcerários. Todos têm direito de serem reconhecidos em sua humanidade, tanto o preso como os policiais. Os direitos humanos não são só para bandidos e muito menos só para a sociedade, são para todos. Portanto, o seu papel é de suma importância para a resolução dos conflitos.

E o posicionamento da sociedade?

A sociedade representada pela imprensa às vezes extrapola na sua crítica em relação ao trabalho do pessoal de direitos humanos. Não está se fazendo competição para saber quem tem mais direito ou não. A legislação brasileira reconhece que todos têm direito a defesa e criticar os direitos humanos nos conduzirá, fatalmente, a defesa de ações extremadas, que não ajudarão a construir uma sociedade melhor.

E o que você acha da privatização dos presídios brasileiros?

Bom, cumpri pena durante o tempo em que o presídio era privatizado. Pelo visto, prefiro um presídio que seja administrado pela iniciativa privada do que um presídio sucateado do Estado. Passei nas duas situações, pois o Estado retomou o controle e a situação que já estava ruim ficou pior ainda. Até entendo as razões pelas quais se quer os presídios nas mãos do Estado, mas pessoalmente, no atual momento, é preferível a iniciativa privada.

Gostaria que você comentasse qual a diferença de tratamento dispensado nos presídios privatizados e nos presídios estatais? O que faz um ser melhor que o outro?

Primeiro, não havia agentes penitenciários suficientes na administração estatal. E depois por serem concursados achavam que não precisavam tratar os presos como gente. É muito mais burocratizado do que quando era iniciativa privada. Senti-me mais acolhido no privado do que no estatal. Justamente essa diferença que me fez achar melhor. Não tem ameaças de greves, aliás, durante o tempo em que vigorou a iniciativa privada, não me lembro de ter havido greve dos agentes privados.

… a vida dentro da prisão não é essa maravilha que se pinta por aí, pelo menos não onde cumpri a minha.

E você acha que os presídios brasileiros foram realmente projetados para reabilitação dos presos? Eles agem com eficiência na recuperação dos detentos?

Realmente não acho que os presídios cumprem o seu propósito de reabilitar e reintroduzir os presos na sociedade. Até pela sua arquitetura, não foi feito para atingir esse objetivo. Você é tratado desumanamente e depois a sociedade não dá oportunidade. Os casos excepcionais de recuperação são raros e muitas vezes não foram por obras do Estado. Por exemplo: no meu caso, só consegui mudar de vida devido ao trabalho da igreja, através da pastoral carcerária. A educação foi a minha remissão com a vida. Estudei a teologia dentro da própria prisão. Se não fosse essa ajuda da pastoral, talvez estivesse ainda no mundo da criminalidade. Inclusive houve até tentativa de inviabilizar o projeto que me transformou devido a falta de interesse na recuperação dos encarcerados. Graças a Deus fui um dos raros casos excepcionais.

De que modo tentaram inviabilizar o trabalho realizado pela igreja?

Tentaram inviabilizar o projeto com discurso de que presos não devem estudar, pois deveriam estar sofrendo na cadeia pelos seus atos. Precisávamos dos agentes para nos levar até sala de aula e às vezes inventam motivos para que isso não ocorresse. Qualquer coisa era razão de suspender as aulas, supostamente por “motivo de segurança”. Mas com a graça de Deus, conseguirmos vencer essas barreiras.

É importante lembrar que originalmente tínhamos autorização para cursar a faculdade fora dos muros, mas com o argumento de que não haviam viaturas para nos conduzir para aula, a faculdade teve que convidar os professores a ministrarem as aulas dentro da própria prisão.

Por fim, a vida dentro da prisão não é essa maravilha que se pinta por aí, pelo menos não onde cumpri a minha. Não é bom estar numa situação dessas, especialmente para quem não é do crime. Se já é difícil para brasileiros, é muito mais em relação ao estrangeiro. Sem visitas, sem familiares e também sem recursos para constituir um bom advogado. Porém venci e hoje não devo mais nada para a justiça. Tenho uma linda filha brasileira. Próximo mês receberei o título de cidadão brasileiro.

Autor

  • É estudante de Jornalismo na Universidade Anhembi Morumbi. Estagiária na Prefeitura de São Paulo, colaboradora na revista Fórum e edita o blog Parafraseando. Escritora na Editora Kazuá e assessora literária.

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