Tenho pena de nós, pobres almas sugadas e seduzidas pela Medusa Redes Sociais
“Minha terra tem palmeiras
Onde canta o Sabiá.
As aves que aqui gorjeiam.
Não gorjeiam como lá. […]”– “Canção do Exílio”, Gonçalves Dias (1846)
O jornalista e poeta Gonçalves Dias, quando escreveu o poema “Canção do Exílio”, escolheu, cirurgicamente, as melhores palavras para expressar a sensação de saudades. Eis uma palavra tão cara à literatura brasileira, um sentimento muito próprio, daqueles que nascem no Brasil. Mal sabia que seus conterrâneos, mais de um século depois, estariam exilados em seu próprio país e sentindo saudades dos gorjeios de uma Rede (anti)Social que seria banida em território nacional.
Creio que seria difícil explicar ao poeta, que boa parte da população brasileira estaria nessa situação inusitada. Principalmente, em tempos de desterritorialização, ubiquidade e instantaneidade. Talvez seja por essas e outras, que não temos mais poetas com o mesmo sentimento de Gonçalves Dias, não há saudades que resistam aos ensejos das Redes (anti)Sociais.
Ora, se não, lembremos que a principal e mais antiga Rede (anti)Social em vigor (até então), no Brasil, era a “X”. Aliás, qual seria o artigo definido mais apropriado para usar junto ao nome dessa Rede? O indefinido, talvez… Seja como for, a Rede X, que outrora era conhecida mundialmente como Twitter, trans-figurou-se sob nova identidade, após ser comprada por um bilionário menino mimado, herdeiro da fortuna de sua família, que explorou pessoas e diamantes na África do Sul durante o Aphartheid.
A palavra twitter significa “gorjeio”, aquele som característico dos pássaros que emitem sons para anunciar a alvorada a cada dia. Naquela época, nos primórdios, as pessoas só podiam acessar o Twitter através de um computador de mesa, os “celulares espertos” (tradução nossa) ainda não eram populares e sequer conseguiam acessar a internet. Desde então, o Twitter se consolidou como uma mescla de “Muro das Lamentações” e reflexos do humor do Espírito do Tempo. Fundado em março de 2006, nos EUA, o Twitter surgiu perguntando aos seus usuários: “O que você está fazendo?”, com aquele espírito inocente e algumas espinhas no rosto, de quem recém havia chegado à blogosfera, com a alcunha de “microblog” e sem muitas pretensões. Não demorou para que as pessoas-internautas entendessem a lógica comunicacional da nova Rede Social (nesta época, ainda social) e a adotaram como a preferida, principalmente, dentre aqueles(as) que almejavam espaço para lamentar cotidianamente da própria vida ou para emitir opiniões aleatórias sobre tudo e mais um pouco.
Foi apenas a partir da crise de identidade da Rede Social Orkut (sinto aquelas saudades de poeta!!!) que o Twitter passou a receber a atenção da maioria dos internautas brasileiros. Primeiro migraram os influenciadores(as) (argh!!! Sim, eles sempre existiram) e com estes(as) seus súditos seguidores(as). Nada de tão especial aconteceu, apenas um “efeito manada” típico e já conhecido como fenômeno social, semelhante a outros movimentos antropológicos e sociais já bastante estudados pelas Ciências Sociais e da Comunicação Social.
Mas, diferentemente do que se propuseram ser as demais Redes (anti)Sociais, o Twitter tinha seus limites declarados e constitutivos: textos curtos, pensamentos objetivos, teses claras, antíteses provocadoras e sínteses avassaladoras, tudo em no máximo 140 caracteres (a mesma quantidades de um SMS). Para chamar outras pessoas ao debate bastava adicionar uma “#” (rasshitégue, em bom português de Twitter), uma espécie de etiqueta que remetia a sua mensagem dentro de uma garrafa, desde a sua minúscula ilha até outras pessoas interessadas naquele mesmo assunto. Ao chegar aos destinatários as mensagens ganhavam força e impulsionavam o discurso até que todas as pessoas envolvidas tivessem a impressão de que estavam em plena Ágora Digital.
A Teoria dos Seis Graus de Separação, de Stanley Milgram, passou a ser comprovada de maneira empírica, pessoas se conectavam, umas às outras, descobrindo inter-relações jamais imaginadas e, assim, construíram suas bolhas de interesse moral e ético. Foi nesse período que o Twitter percebeu seu potencial político (dos seres atuando na pólis) e vocação natural para ser a Ágora Digital. Assim, deixou de perguntar: “O que você está fazendo?” e passou a perguntar: “O que está acontecendo?”, com direito a verbo de ligação, transitivo direto e gerúndio. Repare, a mudança sutil e retumbante, ao estimular o registro crônico dos fatos, buscou-se o domínio dos fatos, das narrativas e das “verdades”.
É neste ponto que o Twitter se tornou a mais perversa e cruel Rede (anti)Social existente. A disputa pelas narrativas e pelos fatos gerou uma horda de perfis antissociais, anticivilizatórios, anticiência, anti qualquer coisa que desorganizasse a moral e a ética do seu próprio microscópio universo. Quão mais sujo, imundo e fétido o Twitter fosse, mais chamava a atenção e despertava os desejos porno-sócio-econômico-políticos do pequeno menino mimado Elon Musk. Este ególatra multibilionário e, também, megalomaníaco, comprou o Twitter em 2022, por um valor surreal (US$44 bi) e o transformou no maior esgoto digital aberto de todos os tempos. A vida inteligível que resistia por ali foi se esvaindo com o tempo, estava cada vez mais difícil sobreviver à toxicidade que emanava dos poros da já rebatizada Rede “X”.
Eu sou um desses que se nega a chamar o Twitter de “X”, por questões morais mesmo! Mas o fato é que o “X” passou a ser o repositório das expressões oficiais de importantes figuras públicas. A imprensa internacional usava “prints” de publicações no “X” para dar voz às personalidades envolvidas em notícias do dia a dia. Cada qual, qualquer um(a) mesmo, passou a usar o “X” como espaço de defesa da sua própria honra, caráter, moral e ética. Isso não tinha como dar certo! Fico imaginando como vão nos classificar no futuro (se é que ele vai existir), a partir dos registros icônicos que deixamos como rastros nas Redes (anti)Sociais. Já sinto uma vergonha antecipada por fazer parte desse período em que éramos tão estúpidos e com tanto acesso às informações. Vergonha é pouco para o que sinto, em verdade! Tenho pena de nós, pobres almas sugadas e seduzidas pela Medusa Redes Sociais.
Ao autorizar o “X” a se tornar a Ágora Digital oficial da Esbórnia, Elon Musk abriu a Caixa de Pandora Digital e concedeu habeas corpus aos piores demônios que estavam adormecidos. O “X” se tornou um antro propício para o cultivo e disseminação do ódio e da desinformação. A farra hedônica maldita foi tanta que o proprietário da Rede “X” passou a delirar e a se autoconsiderar a pessoa mais poderosa do mundo, acima de quaisquer leis, de quaisquer constituições, de quaisquer tratados. Ele quis o “X” soberano e sob a égide de suas próprias regras. Até o dia em que este suposto Titã encontrou pela frente o astuto Alexandre de Moraes, o grande Ministro do STF.
O tal Ministro Alexandre, que não era aquele “o grande”, mas possuía estatura moral, formou-se um destemido defensor da ética constitucional brasileira, justamente, ante às investidas imorais dessa horda de odiosos que profanam, insistentemente, o projeto de civilidade e de futuro. O embate entre as forças judiciárias e midiáticas sociais rendeu vários rounds, até que, por nocaute, o Ministro Supremo exilou o “X” do território brasileiro.
O menino mimado passou a atacar o Poder Judiciário brasileiro, com especial foco e mira no Ministro Alexandre de Moares. De nada adiantaria todo o choro, enquanto todas as volumosas multas, decorrentes de ações ilegais, não fossem pagas e todos os perfis que ameaçassem a estrutura da democracia brasileira não fossem banidos. Deste modo, a Rede “X” esteve bloqueada até o fim do 1º turno das eleições municipais brasileiras. Coincidência ou não, isto tirou força dos movimentos extremistas que se nutrem de desinformações e caos.
Depois de muita birra infantil, em sua própria rede, o menino malvado entendeu que estava de castigo e precisou pedir desculpas pela malcriação aos adultos. Além disso, esse pobre menino rico foi impelido, pelos demais sócios da Rede X, a dar passos para trás e ver que o Brasil não é o quintal da casa dele. Que não adianta ser o “dono da bola” e ditar as regras do jogo, já que aqui, neste imenso condomínio continental existem leis e uma sociedade que, em sua maioria, resiste e preza pela democracia.
Eu, que estou por aqui, na webosfera, desde que tudo isso aqui era mato digital e cheio de zeros e uns para todos os lados, tinha a sensação de que quando o “X” estivesse disponível, os(as) usuários(as) iriam voltar correndo, como quem volta, sem pudor, para um relacionamento tóxico, acreditando piamente que é possível mudar o outro(a). Eu fui um desses, voltei sem a menor vergonha à pior-melhor Rede (anti)Social que existe, para demarcar meus passos digitais, em prol das bandeiras que eu defendo, sob as lógicas da minha moral e da minha ética. Afinal, acredito que só é possível sabotar o sistema estando dentro da máquina, conhecendo suas engrenagens e retirando os parafusos certos, nos momentos adequados.
Enquanto esse momento não chega, com certas saudades, rememoro a última estrofe da “Canção do exílio”, que me faz muito sentido, pois o Twitter ainda gorjeia, mesmo que agora esteja forma de “X”:
“Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.”