Meu Avô foi um Herói de Guerra

Há quem diga que há um abismo entre Hitler e Bolsonaro. Mas esse abismo só existe se olharmos para 1945. Em 1933, enxergo uma história que se repete

Memorial em Auschwitz, na Polônia | imagem: Juan Salmoral

Meu avô foi um herói de guerra.

Esta expressão traz consigo uma série de imagens, talvez relacionadas a insignias, combates heróicos e uma porção de corpos mortos. Corpos inimigos mortos. Sinto não preencher a sede de sangue que parece tão bem votada no Brasil hoje em dia, mas não foi assim que fui ensinado a reconhecer um herói.

Suas histórias, minhas histórias, as histórias que me criaram, envolviam libertar cozinheiros alemães antes da chegada dos russos e soldados Italianos que se recusaram a atirar enquanto ele fugia. Enquanto um tiro teria sido a decisão mais fácil. Humanidades que se encontram em meio ao horror.

Meu avô não apenas sobreviveu a guerra, também viveu depois. Viveu com generosidade, com afeto, com coletes, boinas e sapatos impecáveis. Viveu como quem sabia da raridade da vida, e se vestia de acordo.

Não tenho respostas, apenas pistas para tentar entender como se reconciliar com a vida depois de olhar tão de perto a morte. A primeira delas é também a única vez que o vi chorar, quando me contou que o maior orgulho dele era ter passado por uma guerra sem matar ninguém. A segunda é uma cena constante da minha infância: um senhor, companheiro de guerra de meu avô, me encontrava na Hebraica, e me dava um longo abraço, um beijo, e chorava. Todas as vezes. Demorei a entender o milagre que a minha existência deveria representar para ele.

Da minha infância, acelero essa história para alguma quinta-feira por volta de 2003. Eu saia da Hebraica, e uma senhora me pediu carona. Abri a porta do carro. Começamos a conversar. Ela rapidamente me perguntou o que eu pensava da guerra no Iraque. Com alguma hesitação, respondi ser contrário. A guerra nunca é boa, foi sua réplica. Eu já estive em uma guerra, ela continuou, arregaçando as mangas de sua malha cinza para que eu pudesse ver a inscrição tatuada em sua pele, seu número de prisioneira de Auschwitz, símbolo maior de um processo de desumanização iniciado dez anos antes dela se tornar prisioneira, marca de uma minoria obrigada a se curvar a uma maioria. ou desaparecer.

Foi a primeira e única vez que uma sobrevivente de campo de concentração me contou com tanta riqueza de detalhes sua experiência. Não fiz pergunta alguma. Já havia aprendido, ali, que ouvir uma anciã exige o nosso mais profundo silêncio. Tenho até hoje cada palavra dela encrustada em minha pele, parte inegável de mim. Sabia lá, como sigo sabendo aqui, que essa era minha única forma de retribuir seu gesto.

Há muitas formas de se exercer o judaísmo. O meu eu exerço por meu avô, e por essa senhora de quem nunca soube o nome. Eles são a minha ancestralidade e o meu dever. Eu me torno judeu quando me encontro com a opressão. E por isso, por vezes, me sinto mais próximo do judaísmo na Palestina do que em Israel. Me sinto judeu quando indígena, quilombola, negro e LGBTQI. Me sinto judeu quando minhas veias pulsam em solidariedade e reverência a diversidade das formas de se ser humano.

O Holocausto só será superado de fato no momento em que entendermos que toda opressão no mundo é esse mesmo Holocausto reencenado. E por isso, agora meu dever se encontra de novo comigo no mesmo país que foi refúgio, e se transformou em identidade permanente. Em outro tempo, mas sem nenhum disfarce. Há quem diga haver um abismo entre Hitler e Bolsonaro, e eu concordo que de fato tem um abismo de 20 milhões de corpos. Mas este abismo só existe se olharmos para 1945. Ao olhar para o ano de 1933, enxergo apenas uma história que teima em se repetir, apesar de todos os alertas e da ilusão de que aprendemos algo com a história.

Ao pensar no nazismo, ou até mesmo na ditadura no Brasil, sempre fiquei intrigado em entender os motivos, mas principalmente imaginar a face dos apoiadores destes regimes. Quem afinal poderia ser esses outros cúmplice destas monstruosidades?

Com consternação, vejo hoje estes rostos tomarem forma, e como é doloroso ver o quanto eu gosto de alguns destes rostos. Rostos e bocas dispostos a arriscar, a pagar pra ver, a ainda acreditar que as coisas não podem ser piores. A vocês, com todo o amor que nossas memórias juntos despertam em mim, eu digo: não com o meu sangue, não com o nosso sangue. 

Ainda há tempo de curar nossas feridas, mas o tempo urge. Nesta próximas semanas, desejo que todos possam achar o silêncio em si para escutar seus anciões, e decidir com consciência com quais fios da história querem se emaranhar.

Autor

  • Antropólogo, educador e pesquisador atuando na interface entre emergência climática e violências históricas e sistêmicas. Como cofundador do projeto Terra Adentro e membro do coletivo Gestos Rumo a Futuros Decoloniais, trabalha com práticas pedagógicas que visam estimular formas de viver capazes de nos engajar, ao invés de negar, com nossos entrelaçamentos e cumplicidade em danos a humanos e não-humanos, e com os limites do planeta.

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