A escolha de Haddad para a Fazenda rendeu vitórias ao governo. Se o arcabouço fiscal for aprovado, Lula 3 terá feito inédito

Uma vez eleito, Lula deixou claro que sua prioridade no campo econômico era revisar o teto de gastos, retomar programas sociais, reajustar o salário mínimo acima da inflação e investir em infraestrutura e habitação – isto é, expandir os gastos do governo para entregar promessas de campanha. Claro que aumento de gasto não é algo negativo, mas é compreensível que depois de oito anos consecutivos de déficits fiscais entre 2014 e 2021, diversos setores políticos e econômicos criem um pouco de resistência a esse plano, e insistam para que o Lula tenha um tanto de planejamento e austeridade. Afinal de contas, toda vez que o governo gasta mais do que arrecada em um ano (o que chamamos de déficit fiscal), o governo precisa tirar dinheiro de algum lugar se ele deseja fechar as contas. Ele pode imprimir dinheiro, o que causa inflação, ou pode pegar emprestado, o que aumenta o pagamento de juros para o mercado financeiro. E mesmo os mais entusiasmados com o liberalismo rentista vão concordar que é inviável o governo viver de empréstimos cada vez maiores até que a gente passe a viver para pagar juros.
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A solução do Lula para se desvencilhar da catatonia econômica que foi o governo de seu antecessor foi bastante elegante: em vez de concentrar toda a sua equipe econômica embaixo de um ministro (ahem) prodígio, Lula tornou a dividir a gestão econômica em diversos ministérios, colocando profissionais de diferentes vertentes no controle de cada um deles, com a intenção de estimular o debate, facilitar a articulação interna e aumentar o poder de fogo na discussão econômica com o Congresso e o povo, algo de que o ex-ministro da Economia, Paulo Guedes, era notoriamente incapaz. De modo que colocou a pró-mercado Simone Tebet no Planejamento, o social-democrata-barra-conservador-barra-industrialista Geraldo Alckmin no ministério da Indústria e Comércio, o sindicalista Luiz Marinho no ministério do Trabalho, o desenvolvimentista Aloísio Mercadante na presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e o seu menino prodígio (que não é mais menino), o ex-candidato a vice-presidente, ex-candidato a governador, ex-prefeito de São Paulo e ex-ministro da Educação Fernando Haddad para assumir a pasta de ministro da Fazenda. A indicação de Haddad para o ministério talvez seja a mais importante; Lula disse, em seguida à sua vitória em outubro, que indicaria para o cargo alguém inteligente e com trânsito político, algo visto pelo presidente como importante para angariar apoio no Congresso e conseguir aprovar as promessas de campanha. Embora sob muitas críticas, que lembraram jocosamente de Haddad como o ‘poste’ político do Lula, escolhê-lo, um fiel apoiador de Lula mesmo enquanto o político esteve preso sob circunstâncias duvidosas, para liderar o principal ministério econômico do governo faz sentido.
A gestão de Haddad na Fazenda tem sido um pouco desafiadora, todavia. Logo no começo do mandato, o governo federal manteve a isenção sobre combustíveis, apesar das críticas do Haddad ao plano, o qual argumentou que esta decisão significaria gastar dinheiro público a fim baratear o preço da gasolina. Como moeda de troca, o Planalto deu o aval para que o ministro passasse a costurar com o ministério do Planejamento, com setores do Congresso e do mercado financeiro a proposta de reforma fiscal prometida pelo Lula durante sua campanha eleitoral; que, é importante relembrar, prometia revisar o teto de gastos, retomar programas sociais e investir em infraestrutura e habitação. Como coadunar a pressão do Partido dos Trabalhadores para expandir os gastos com a demanda dos setores produtivos para aumentar a austeridade? A saída foi o arcabouço fiscal.
A proposta do arcabouço fiscal é um excelente meio de caminho político, porque irrita todos os lados, mas não o suficiente para inviabilizar a votação no Congresso Federal. De forma sucinta, a proposta permite ao governo federal aumentos reais (isto é, acima da inflação) para os gastos federais de um ano para o outro, o que é uma vantagem sobre o antigo teto de gastos, mas cria uma regra automática que impede uma expansão de gastos além do aumento da arrecadação. Isto é, se em um ano as receitas do governo aumentarem em, digamos, R$ 100 milhões, as despesas só podem aumentar R$70 milhões – o que essencialmente força o governo a economizar R$30 milhões neste cenário hipotético. O resultado permite ao governo ampliar seus gastos, o que agrada a ala mais tradicional dos partidos governistas, e também permite controlar as despesas, o que deveria agradar investidores, empresários e analistas (o “mercado”). A ideia do arcabouço fiscal, desta forma, é criar uma regra única para controle orçamentário que seja ao mesmo tempo amigável aos investimentos, gastos sociais e crescimento econômico, enquanto tenta promover um mínimo de austeridade fiscal e previsibilidade orçamentária. Naturalmente, o “mercado” reclama que o arcabouço fiscal é muito permissivo com os gastos, não resolve o problema do déficit de forma rápida o suficiente e possibilita ao governo gastar demais sem controle. A ala governista, por outro lado, critica o arcabouço porque ainda é um freio sobre os gastos, legitima o fiscalismo e a austeridade, e implementa medidas restritivas.
Mas o arcabouço fiscal está em um ponto crucial do debate econômico brasileiro: por mais que desagrade a todos os lados, a intenção do Haddad é que não desagrade a ninguém o suficiente para que a reforma naufrague. E é por isso que o Lula queria um político, e não um banqueiro ou um teórico puro, para comandar o ministério da Fazenda: nos últimos meses, Haddad (e Tebet, é preciso dizer) têm se esforçado para conseguir concessões de todos os lados, desde a presidente do PT Gleisi Hoffman até o presidente da Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP) Josué Gomes, para que a reforma seja palatável suficiente para que todo mundo aceite. É que nem quando seus amigos se juntam e saem para jantar, e no final vocês escolhem o restaurante que nem todo mundo gosta, mas ninguém odeia. Pelo menos vocês foram juntos.
No dia 25 de maio, a Câmara dos Deputados aprovou com ampla folga (372 favoráveis, e 108 contrários) o texto-base do arcabouço. Quarta-feira, 21 de junho, o Senado também aprovou a proposta com nova vantagem considerável (57 favoráveis e 17 contrários). O texto retorna ao Congresso por conta de uma alteração feita no Senado, mas pelo menos nestes 180 dias de governo, a impressão que se passa é que a escolha de Haddad pro cargo de ministro da Fazenda rendeu importantes vitórias ao governo federal. As declarações do Haddad em relação à condução econômica, às expectativas de governo e à condução da política monetária do Banco Central do Brasil, acalmaram os ânimos dos críticos mais abertos à escolha do ex-prefeito paulistano para o cargo. É também mérito do ministro da Fazenda a euforia que investidores locais e estrangeiros têm sentido em relação ao Brasil: desde a virada do ano, o real se valorizou algo como 9%, e estimativas inflacionárias têm sido cada vez menores, pelo menos enquanto escrevo este texto. Se o arcabouço fiscal passar sem muitas alterações, o governo federal pode conseguir uma façanha que não conseguiu nem mesmo em seus melhores anos de Lula I e Lula II: uma reforma fiscal ampla, que mantenha regras explícitas de controle de gastos e expectativas de superávit, ao mesmo tempo que promete aumento de gastos sociais e investimentos públicos. Nada mal para o currículo de quem, até o começo desse ano, ainda era considerado um poste.
- Lula e os desafios na política econômica - 10/06/2023