Louise Michel por Samantha Lodi: Anarquismo, Literatura e Educação

A autora de Louise Michel: Pertenço à Revolução Social fala sobre as ideias e a militância da sua biografada – e sobre o seu apagamento

Capa do livro

Professora, escritora, poeta e revolucionária, Louise Michel (1830-1905) dedicou sua vida à luta pela educação popular e à superação das desigualdades sociais. Sua experiência na Comuna de Paris e seu exílio na Nova Caledônia moldaram sua visão de mundo e a tornaram uma das figuras mais importantes do anarquismo. A biografia Louise Michel: Pertenço à Revolução Social, da professora Samantha Lodi, resgata essa trajetória inspiradora e nos convida a refletir sobre o papel da educação na transformação social e a importância de continuar a luta por um mundo mais justo e igualitário.

Confira nas linhas abaixo a entrevista que realizamos com a professora Samantha.

Louise Michel é uma anarquista importante, muito embora sua contribuição tenha sofrido uma espécie de apagamento histórico dentro do próprio movimento anarquista. Foi dessa constatação que surgiu seu interesse por estudar Michel e escrever sobre ela? Fale um pouco desse processo de pesquisa e escrita do livro.

Primeiro eu quero agradecer pela oportunidade de escrever sobre a pesquisa que realizo a propósito da vida e da obra de Louise Michel. Acho que o primeiro ponto que devemos ressaltar é que basicamente todas as mulheres passaram por processos de apagamento histórico. A história da humanidade, por séculos, foi contada por homens brancos, “vencedores” que buscaram construir uma narrativa que enaltecesse o “herói”, os feitos dos “grandes” governantes. Quando falamos de uma mulher, e ainda anarquista, que se posicionou contra o Estado, organizou greves, propagou a necessidade de direitos iguais entre mulheres e homens, atuou fortemente na educação dos mais pobres, visando quebrar as desigualdades impostas pela sociedade capitalista, temos dois tópicos assinalados na tentativa de um esquecimento proposital. Quando uma pessoa tem sua memória mais forte que todo o movimento que se fez para encobrir ou desacreditar sobre sua importância, então, sua memória é cooptada por uma certa oficialidade. E eu apresento como exemplo a abertura dos Jogos Olímpicos em Paris recentemente. Sua estátua dourada que emergiu no rio Sena dividiu o movimento anarquista entre os que acharam importante e comemoram essa aparição e outros que consideraram uma afronta à sua memória, uma vez que seu posicionamento contra o Estado foi claro, aberto e amplamente debatido por ela.

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O primeiro contato que tive com o nome Louise Michel foi no livro História do Anarquismo publicado pela editora Imaginário em 2008, com tradução de Plínio Augusto Coelho. O breve texto que falava sobre sua vida chamou muita minha atenção, principalmente por assemelhar-se a uma personagem fictícia, e isso ficou em minha memória. Ao iniciar a tese de doutorado, que a princípio tinha outro tema, fui provocada a trazer mulheres ao debate acadêmico, porque já tinha feito uma dissertação histórico-biográfica sobre Anália Franco. Diante do contexto em que estava imersa, elaborei uma proposta que trazia duas mulheres, a comunista russa Nadehzda Krupskaia (1869-1939) e a anarquista francesa Louise Michel (1830-1905), com o objetivo de consolidar uma pesquisa histórico-biográfica dessas duas revolucionárias e depois buscar as possíveis convergências educacionais que havia nelas, mesmo em locais e contextos distintos. Durante o desenvolvimento da tese eu tive oportunidade de fazer um “doutorado sanduíche” na Universidade de Rouen, com apoio financeiro da Capes, que me permitiu ficar por um ano na França (entre 2014-2015) e ter contato com documentos de Louise Michel que na época não estavam digitalizados. Cabe aqui uma observação: aquela mulher que havia despertado minha atenção era realmente impressionante e seus atos haviam reverberado em diversas partes do globo, mesmo aqui no Brasil. Defendi a tese em outubro de 2016, mas a ideia de publicação veio somente anos depois, no contexto da pandemia, fortemente impulsionada pelos 150 anos da Comuna de Paris, experiência de 72 dias marcantes ocorridos entre março e maio de 1871. A publicação, intitulada Louise Michel: pertenço à revolução social, feita pela editora Entremares em 2022, com projeto gráfico e diagramação de Adriano Skoda, é basicamente uma parte da tese que defendi com alguma revisão. E sobre sua menção a respeito do próprio movimento anarquista apagá-la, eu tive o desprazer de encontrar anarquistas homens que têm preconceito com Louise, diminuindo sua importância porque “ela não teria muito a oferecer”. Mesmo compreendendo nosso processo de machismo estrutural, ainda me surpreendo com essas observações.

Em seu livro, você apresenta uma mulher que passou de republicana para blanquista, até se tornar uma anarquista de fato. Como se deu esse processo de amadurecimento individual e político de Michel?

Louise nasceu em meio a uma família progressista, que tinha muito caros os ideais iluministas e republicanos. Em suas memórias ela comenta que quando criança brincava representando iluministas e revolucionários franceses, como SaintJus. Essa ideia de família também precisa de uma pequena explanação, pois oficialmente sabemos que ela era filha da Marianne Michel, governanta de um castelo em Haute-Marne no interior da França, mas seu pai não ficou registrado em sua certidão de nascimento, por isso cresceu com o cuidado e a educação dos castelães que ela acreditava ser seus avós. Ela deixa indícios em algumas cartas que aquele que ela chamava avô poderia ser na verdade seu pai. O fato é que ela recebeu uma educação incomum para meninas de sua época e aos vinte anos sonhava em ser escritora, lia e escrevia muito. Por isso, começou uma série de correspondências simplesmente com escritor mais famoso do período, e que ela considerava seu mestre: Victor Hugo – eles se corresponderam por quase trinta anos. Com a morte de seus avós, ela precisou sair do castelo e escolheu o magistério como sua carreira, mas trabalhou em escolas que não fossem estatais, pois recusava-se a prestar juramento à Napoleão III, o pequeno, nas palavras Hugo. Com sua mudança oficial para Paris em 1856 começou a frequentar os clubes republicanos, assim conheceu as ideias de Louis-Auguste Blanqui, que lutava pela igualdade de direitos entre sexos e pelo fim do trabalho infantil, normalmente reconhecido como socialista ou ainda republicano socialista. Pelos escritos da própria Louise, quando participa da Comuna de Paris, em 1871, ela ainda se identificava com as propostas blanquistas. Depois de vivenciar plenamente a experiência revolucionária durante a Comuna de Paris e cumprir pena de exílio em Nova Caledônia, na Oceania, retorna para Paris em 1880 afirmando-se como anarquista. Ela se posicionou contra o Estado, contra o sufrágio – que ela dizia ser prece aos deuses surdos – e dedicou seus últimos 25 anos de vida aos ideais anarquistas em militância constante, entre greves, passeatas, palestras, experiências educacionais, prisões e muitos textos publicados.

No meio anarquista, os nomes mais reverenciados são Proudhon, Bakunin, Kropotkin, Emma Goldman, Errico Malatesta, entre outros. Louise Michel não é muito citada como uma teórica do anarquismo. Quais as principais contribuições de Louise Michel?

Esse é um ponto fundamental para pensar porque ela sofre preconceito ainda hoje, conforme mencionei. Louise Michel não se colocou como uma teórica do anarquismo, sua atividade militante era muito intensa e cotidiana, o que lhe causou o encarceramento diversas vezes. Aliás, quando ela estava em liberdade era uma forte ativista, quando encarcerada aproveitava para estudar e escrever. Sua produção, que é bem significativa, conta com memórias, poesias, alguns ensaios a partir de estudos, discursos que realizou e longos romances; seu gênero preferido foi o literário, que perpassa toda sua obra. Para mencionar algumas contribuições temos: Memórias de Louise Michel: escrita por ela mesma; A Comuna: histórias e memórias – em suas memórias acrescia seus julgamentos, nos quais ela fazia sua própria defesa; História, contos e lendas para crianças; O livro do cárcere; Lendas e cantos de gesta canaques com desenho e vocabulário – esse resultado de sua experiência em contato com os povos originários da Nova Caledônia; A miséria – romance escrito em parceria com Jean Guêtré; os romances Micróbios humanos, O novo mundo, O ranger dos dentes, esses títulos estão em francês e fiz uma livre tradução para apresentá-los, mas há outros, além de artigos para jornais, cartas que foram compiladas, peça de teatro. No ano passado tive a oportunidade de coordenar uma publicação da editora Barricada de Livros, de Lisboa – Portugal, a convite de Mario Rui Pinto, intitulada Louise Michel: de luto em luta, com prefácio de Alexandre Samis e projeto gráfico autêntico de Ana Paula Pais, que é uma coletânea de textos de Louise Michel, mesclando seus estilos para ilustrar sua potência.

Pensando na atualidade do anarquismo e no movimento feminista atual, como você entende que as contribuições de Louise Michel precisam ser lidas e revisitadas? Como a experiência e vivência histórica dessa mulher podem inspirar a esquerda num contexto de avanço da extrema-direita no mundo?

Entre o movimento anarcofeminista ou entre as anarcas (o termo ainda é controverso) Louise Michel é lembrada e serve de inspiração. Sua luta, sua dedicação à causa da liberdade, a crítica que fazia aos preconceitos em torno da figura feminina – ela faz uma crítica direta à Proudhon, por exemplo, que via as mulheres como inferiores – [são marcantes. Além disso, ela] foi adepta do vegetarianismo e entendeu a educação utilizando o que chamava de “ensino vivo”, uma metodologia para compreender a realidade e criar laços de solidariedade e cooperação. É claro que eventualmente encontramos algumas notas ou menções que são específicas da época em que viveu, mas ela não tinha medo de enfrentar as injustiças e lutar por igualdade. Sua ação com os canaques na Nova Caledônia e também na Argélia no início do século XX são anticolonialistas, ela colocou-se claramente contra as explorações dos franceses em outros territórios, defendendo a liberdade para todos, o que hoje poderíamos relacionar com a autodeterminação dos povos, sem interferências imperialistas, sem hierarquias internacionais.

Para encerrar, se me permite, deixo as duas últimas estrofes da poesia de 1887, Lembranças da Caledônia (O canto dos prisioneiros) que está no Louise Michel: de luto em luta, página 141:

Traz-nos a salvação, ágil navio,
Iça o cativo a bordo!
Aqui, a ferros, ele está a morrer,
Que o degredo é bem pior que a morte.
O nosso coração mantém da esperança um fio,
E se voltarmos a pisar a França,
Será sempre para combater!

Eis a luta universal:
No ar sente-se a Liberdade!
À batalha nos chama
O clamor do deserdado!…
… A aurora capturou a sombra espessa,
Enquanto o Mundo novo se dirige
Ao horizonte ensanguentado!

Viva Louise Michel! Obrigada.

Autor

  • Bacharel e licenciado em História pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC/Campinas), com especialização em Patrimônio Histórico e Cultural pela mesma universidade. Possui também especialização em Gestão Cultural pela Cátedra de Girona e Observatório Itaú Cultural.

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