Época de crise, tempo de organização: Circulando entre Betinho, Panteras Negras e Marx

A ideia de Política em Betinho

Herbert José de Souza, o Betinho | imagem: Ascom.

Para não correr o risco de ser repetitivo acerca da atual situação nacional, cujas graves dimensões políticas, institucionais, econômicas e culturais se fazem sentir por toda parte, principalmente quando refletidas pela esquerda do país, talvez seja o caso de resistir ao poder de atração que a conjuntura exerce sobre nós. Ao invés de nos permitir às famigeradas “análises de conjuntura”, que sempre servem aos lutadores, até quando não auxilia as lutas sociais, nossa sugestão é que seria conveniente retroceder até a mais insuspeita figura pública de que se tem notícia na história política da sociedade brasileira: Herbert José de Souza, o Betinho.

Levando a sério dois aspectos usualmente salientados por quem tem se dedicado a pensar nosso momento atual, a saber, a corrupção política e a intolerância ideológica, cabe dizer que nossa menção a Betinho não visa comentá-los. Confiamos plenamente na avaliação de nossos companheiros na esquerda sobre suas prováveis ou possíveis causas e efeitos. Registramos apenas que o gesto de voltar-se a ele não tem por função resgatar à nossa memória alguém que atravessaria nossa política, incrivelmente contaminada por toda sorte de corrupção, de maneira íntegra e correta, provando-se inocente por sua própria ética ante qualquer trama — como se a inocência fosse um atributo ético da política em geral; como se a inocência fosse uma qualidade daqueles que não são culpados, a despeito das circunstâncias 1. Nem se trata de evocarmos Betinho, num contexto de aparente elevação e acirramento dos antagonismos, como o modelo de alguém que pôde agir politicamente por meio de causas que não dividiriam ideologicamente orientações de esquerda ou de direita, mobilizando as pessoas de “boa vontade”, “acima” dos partidarismos — como se a política fosse a capacidade de dissuadir uma divisão ideológica, ao invés de ser a arte de nomeá-la apropriadamente2.

Então, por que falar sobre a história de Betinho? Atendo-se ao essencial, não parece incorreto sugerir que se trata de um dos mais emblemáticos brasileiros. Ao seu próprio modo, trágico e carismático em igual medida, ele marcou de maneira especial a transição do país entre sua última ditadura e transição democrática. Nascido em 1935, o sociólogo e ativista pelos direitos humanos faleceu no de 1997 em decorrência de complicações do vírus HIV, que contraiu em 1986 numa das sessões de transfusão de sangue a que se submetia regularmente por ser hemofílico desde nascença. Durante oito anos de sua vida passou exilado entre Chile, Canadá e México, retornando ao Brasil em 1979, quando a Lei da Anistia foi assinada pelo General Figueiredo, então Presidente da República, como parte dos processos que reconduziram o país à Democracia através do Estado de Exceção. Em muitos sentidos, ainda que não tenha sido o único, seu maior legado foi a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. Institucionalmente fundada em 1993 sob o lema “Solidariedade, todos nós podemos”, a ONG que capitaneou teve o mérito de consolidar uma consciência propriamente civil sobre a pobreza no país, ainda que não custe muito para se atribuir também a esse sucesso, dependendo do grau de simpatia que se tem por ele, a colonização do Estado brasileiro pela agenda neoliberal do período histórico seguinte.

Sem revisar seu passado como militante socialista nos anos de 1960, comprometido com ações clandestinas contra o Golpe Militar3, nem relativizar o que poderia ser descrito como um questionável senso de moralidade nos anos de 1990, de quem recorreu à contravenção carioca para financiar justos projetos sociais 4retroceder até Betinho nos dá a oportunidade de aprender algo acerca do tempo enquanto categoria fundamental à política. Por isso que nos parece ser possível especular que seu engajamento pessoal às causas sociais, invariavelmente talhado pelas coordenadas históricas da situação, exibe uma lição individualmente difícil para qualquer esquerdista, com respeito ao lugar do tempo dentro do ato irredutivelmente político. Afinal, quais são as conseqüências subjetivas de tornar “quem tem fome, tem pressa” uma espécie de axioma para agir politicamente?

É quase certo que o tempo não é uma noção alheia à imaginação política de esquerda. Sem recorrer aos verbetes que tratam do assunto em toda sociologia política, é plausível interpretá-lo como um tipo de operador com o qual a esquerda do século XX está absolutamente familiarizada. Sem ir aos seus pormenores, ainda que se perca em nuances, se assumirmos a esquerda de inspiração marxista (o que por si já designa um amplo espectro político e ideológico), a operação política sustentada por sua noção histórica de tempo ganha forma através dos dilemas da chamada transição socialista5. Quer dizer, desde o ponto de vista mais generalizado à esquerda, o tempo comparece como um tipo de mecanismo para calcular as distâncias entre os meios e fins de uma tática determinada à luz do seu horizonte estratégico estabelecido. De tal maneira que não raras são às vezes em que o campo político abrangido pela esquerda se sente constrangido a decidir entre alternativas reformistas ou revolucionárias de saída. Logicamente, dessa “ansiedade” para determinar o começo pelo fim derivam inúmeras formas de divisão entre os setores críticos da sociedade capitalista, uma vez que todas as práticas atuais, sejam as correntes como as imaginadas, passam a ser julgadas em função do futuro que apontam e não pelo que arranjam no presente6.

Vale registrar ainda que os dilemas envolvidos pelos debates sobre os limites e possibilidades das vias reformistas e revolucionárias possuem uma relação notoriamente especial com o Estado. É como se a atualidade de cada alternativa, em referência às suas expectativas futuras, estivesse baseada na premissa de que o poder político institucionalmente concentrado no Estado consistisse o espaço em que o tempo do socialismo é realmente decidido. Numa palavra, a despeito da metáfora, não importando se é o caso de “conquistar”, “transformar”, “derrubar” ou “reconstruir”, o Estado é o local almejado por todos os ideais socialistas, sejam eles mais ou menos reformistas ou revolucionários, para que então possa haver aquilo que o capitalismo não entrega às pessoas. Se admitido como verossímil isso que foi esboçado de modo muito geral por nós, diríamos que é nesse pano de fundo em que as frações, escolas e correntes socialistas encontram seu sentido no interior da tradição política do marxismo — talvez fosse necessário nomear outras orientações anticapitalistas para além daquela encarnada pelo marxismo, mas falamos dele porque ele certamente é o campo político e teórico que mais dá material para sua análise ou crítica, seja por causa das tragédias que motivou, seja em função de suas contradições quase cômicas, seja em função de sua incorrigível compulsão autoreflexiva.

Ocorre que para Betinho, conforme registros do documentário que reconta sua vida7, eram problemas dessa exata natureza que teriam sido evadidos de suas preocupações pessoais quando decidiu por agir sob a verdade do emblema “quem tem fome, tem pressa”. Apesar das ambigüidades do “Terceiro Setor”, Betinho parecia compreender que as justificáveis censuras políticas e ideológicas que lhe faziam antigos companheiros de luta ou de organizações de esquerda recém-formadas, deveriam estar subordinadas a um tipo de ação direta, por assim dizer. Sem renegar a influência positiva que a política em seu sentido institucional certamente exerce sobre as questões sociais, é como se ele tivesse decidido por agir politicamente fora dos marcos políticos reconhecidos por seus pares de geração e de lutas. No limite, é como se ele tivesse intuído que a política real não é aquela que torna o Estado e todo o universo de relações nomeado por ele, incluindo aquilo que ele não toma por idêntico porque é seu avesso, distintamente importante à ação. A nosso ver, o Estado e toda série de questões que sua presença importa à política em Betinho aparece como aquilo que deveria ser esvaziado de significado porque imporia ao movimento político um tempo descompassado ao momento do seu próprio ato.

A ideia de Partido nos Panteras Negras

É em razão disso que talvez Betinho tenha prevalecido à esquerda como uma variante de um tipo qualquer de solidariedade social basicamente assistencialista. É realmente difícil de imaginar que coletivos de esquerda, críticos do capitalismo e politicamente orientados para sua superação econômica e social, façam hoje referência à sua figura. Mesmo partidos políticos, por mais rebaixados que sejam seus programas, não exibem militantes ideologicamente influenciados pelos ideais aos quais Betinho teria sido eternizado na sociedade brasileira. Ao mesmo tempo, nada parece despertar mais admiração à militância esquerdista brasileira do que a experiência black panther. Inclusive, somos tentados a sugerir que tão mais rebaixada uma partição política é, quão mais ambíguo parece ser a relação entre seus princípios e sua prática, maior é o interesse nessa experiência — o que, aliás, prova o caráter universal da força dela própria, uma vez que todos, mesmo os piores, se sentem atraídos por ela.

Sendo então o Partido dos Panteras Negras Para a Auto-Defesa (PPN), fundado por Huey Newton e Bobby Seale em 1966 nos Estados Unidos, inquestionavelmente uma referência para qualquer militante anticapitalista, protocolarmente ou não, parece inexistir espaço na atualidade para qualquer organização de esquerda que não compreende o seu significado político, ideológico e histórico. O legado do PPN é assim inconteste porque soube acusar de maneira muito particular e conseqüente a hipótese de que o capitalismo consistiria um sistema de exploração econômica, cuja forma básica de dominação estaria sustentada pela própria história da divisão racial que acompanha a fundação da sociedade norte-americana. Fundado na experiência local dos cidadãos e cidadãs negros, sua organização foi uma espécie de resultado das lutas associadas ao movimento dos direitos civis dos negros no país8, levando aos últimos termos o que havia sido acumulado politicamente pela resistência ao racismo da quadra histórica anterior. Como se não fosse o suficiente, o PPN também armou todo um campo de experimentação e discussão a respeito das relações de dominação entre os gêneros, vindo a formar importantes lideranças políticas e intelectuais em suas fileiras e ao seu em torno9.

No entanto, a nosso ver, menos que a capacidade de antecipar tendências de vanguarda que se provaram décadas mais tarde o próprio sentido da atualidade dos discursos e teorias de esquerda, é possível conjecturar que o legado black panther mais produtivo consista no próprio impasse a que chegou sua organização. Evidente que nossas ideologias atuais sobre a relevância do protagonismo negro e feminino nas lutas sociais anticapitalistas é parte enorme da importância atribuída aos panteras, mas diríamos que pode haver ainda mais para além dessa obviedade. Não se trata de negligenciar esse princípio às lutas sociais contemporâneas nem de investir num exercício de historiografia sobre o coletivo, cuja dissolução em 1982 certamente reflete o terrorismo estatal praticado pelo Governo Nixon contra seus membros, afiliados e simpatizantes. Entretanto, acreditamos que valeria a pena se deter um pouco mais num aspecto relativamente negligenciado da experiência black panther, que parece canalizar toda nossa atenção naqueles feitos mais sensíveis às mais heróicas fantasias políticas que nutrimos, como a resistência armada à violência policial, além do visual urbano consagrado por seus militantes, que se tornou estilo por meio da moda.

Quando Huey Newton voltou à liberdade em 197010, Eldridge Cleaver era uma voz relevante dentro do partido. Reconhecido publicamente como o “Ministro da Informação” da organização, Cleaver estabeleceu exílio na Argélia através de Cuba, de onde passou a se posicionar sobre a situação da sua organização nos EUA. Enquanto Cleaver era contrário aos “Programas de Sobrevivência”, Newton parecia convencido de que o projeto era essencial para que o partido pudesse estar conectado à comunidade negra norte-americana, uma vez que o período de radicalização da organização parecia ter agregado valor à sua imagem junto a intelectuais brancos e progressistas na mesma proporção em que somava rejeição e receio da parte dos trabalhadores negros dos EUA. Cleaver, cujo sucesso literário junto à crítica especializada o permitiu angariar simpatias, argumentava que o propósito do partido era revolucionário e, como tal, visava destruir a ordem, enfrentando o governo e o Estado dos EUA. Newton, que fundou o partido aos vinte poucos anos de vida, que buscou exercer politicamente a prerrogativa legal do direito ao armamento, acreditava que esse objetivo era exercido por meio da capacidade da organização black panther prover uma rotina de serviços comunitários, que pudesse atender as necessidades das pessoas.

Existem vários elementos a serem possivelmente considerados nessa divisão. De modo geral, a força revolucionária contida no ato de preparar cafés da manhã para crianças em fase escolar é realmente questionável. E o que pode fazer clínicas de saúde que oferecem atendimentos dentários gratuitos às lutas contra o sistema capitalista? Na melhor das hipóteses, o potencial revolucionário de tais iniciativas deriva mais do seu simbolismo político, como a prova política dos elevados, justos e nobres ideias do PPN, que afirmava ter um “amor infinito pelas pessoas”. Tanto que mesmo Newton parecia aceitar como tais os limites acusados por Cleaver aos programas de assistência social mantidos pela organização, quando os defendia com o argumento de que os negros precisariam estar vivos para lutarem contra seu próprio genocídio. O que revela que o sentido de urgência ao qual ele estava disposto a responder estava subordinado à expectativa de que algo para além ou posterior aos serviços comunitários precisaria ainda vir acontecer11. Possivelmente, Newton compreendia que Cleaver tinha razão no sentido de que ele imaginava um dia poder oferecer os mesmos serviços às mesmas pessoas não por meio da força política constituída pela mobilização social black panther, mas através dos instrumentos governamentais e órgãos oficiais, ainda que devidamente controlados pelo povo.

No entanto, uma coisa que certamente deveria chamar atenção é a relação estranha do partido com a política em geral. Ainda que haja algo dúbio no modo como Newton se colocava em relação à Cleaver diante da questão do Estado e do governo, e mesmo que não exista muito espaço para especular sobre o fato do seu engajamento pessoal para comprometer a organização à candidatura de Bobby Seale para a prefeitura de Oakland entre 1972 e 1973, somos levados a destacar sua intuição de que talvez haja uma função para um partido político que não se restringe aos compromissos revolucionários ou reformistas clássicos, se olharmos para o PPN. O que gostaríamos de sinalizar é que em larga medida toda imaginação política black panther se concentrou numa prática de organização que intuiu uma forma de partido que prescindia do Estado, pois ela própria o emulava. Apesar de alinhada às tradicionais tarefas de “elevação da consciência popular” ou do “armamento revolucionário”, que não se deixam aburguesar pelo calendário eleitoral por sua própria natureza, é revelador que a organização buscava através dela mesma os meios para que o povo fosse atendido em suas carências e necessidades. E a organização convertida como o fim da sua própria política deu vazão à uma ação revolucionária cujo sentido não era mais transformar a sociedade norte-americana, mas a geração de outra, que por um acaso a confrontava.

A Ideia de Comunismo para o CEII

Pretendendo conquistar maior clareza sobre essas ideias, diríamos o seguinte: a despeito das expectativas dos Panteras Negras, quaisquer que sejam as orientações que tomemos em particular, o valor político dos serviços comunitários da sua experiência política pode ser mais bem avaliado se analisados não à luz de seus ideais, mas da reação de John Edgar Hoover, a maior autoridade do FBI de então. Seguindo a linha narrativa do documentário “Panteras Negras: A vanguarda da revolução”12, aprendemos que Hoover formou o sistema de contrainteligência que perseguiu, confundiu, incriminou e executou membros do PPN, com total anuência do Governo Nixon, conduzindo a organização ao seu desaparecimento. A iniciativa do FBI que ele coordenava, conforme documentos tornados posteriormente públicos, tinha como objetivo declarado neutralizar as ações do coletivo. Segundo relatos e falas do filme, incluindo de agentes que à época trabalharam no sistema, Hoover via nos black panthers uma ameaça ao status quo norte-americano de caráter nacionalista. A nosso ver, é bastante sintomático que a mobilização “nacionalista” do FBI tenha coincidido com o momento em que os panteras pareciam mais dedicados à ideia de comunidade que seus discursos e práticas ideologicamente insinuavam ao se referirem aos negros e não-negros das classes trabalhadoras nos EUA.

Haja vista a resposta das autoridades policiais e políticas do país, é possível pensar que mais que satisfazer as necessidades da comunidade que os antecediam historicamente, os panteras estavam formando outra naquela, e exatamente isso pareceu intolerável à Hoover. Num certo sentido, a força revolucionária real do PPN não decorreria da realidade da memorável coragem física de seus membros, do seu reconhecido extremo talento intelectual ou da combinação entre elas para destruir a ordem social norte-americana, mas da virtual capacidade que sua organização demonstrou para mobilizar tais energias para criar outra força que pudesse vir a ser conservada. Aliás, o novo, contido em meios às muitas novidades trazidas pelo PPN à história das lutas sociais modernas, talvez consista na noção de que a força política de uma revolução não é adequadamente medida pelo seu poder para desfazer os vínculos sociais que lhes confronta, mas pela capacidade que essa revolução exibe para estabilizar um novo regime de relações sociais entre as pessoas. No seu conjunto, a nosso ver, a black community propriamente black panther era menos aquela porção populacional violentada pela dominação capitalista e racista nos EUA do que aqueles indivíduos que se sujeitaram à ideia de que sua mútua associação era a maneira através da qual uma nova forma de vida social ascenderia entre eles e para eles. Numa tragédia que não deixa de conter um traço de ironia, o PPN sofreu por sua própria incapacidade de perceber que não era a heróica guerrilha urbana que incomodava o Estado norte-americano (mais que habituado a todo tipo de lida com violência política), mas o trabalho cotidiano nas comunidades periféricas.

Claro que essas ideias parecem herméticas para nós mesmos do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia, ainda mais quando projetadas nos atuais desafios da conjuntura política nacional. Geralmente, somos os primeiros a trocar acusações e denunciar como nosso coletivo parece desconectado da realidade da situação presente. A verdade é que ainda não encontramos um modo ideologicamente confortável para cada membro poder ser comunista e ser indiferente à política. Desde 2012, fazemos um esforço para formalizar os vínculos políticos que construímos com partidos e coletivos de esquerda, contribuindo com tudo o que nossa organização possa oferecer. Ocorre que ser indiferente à política seria algo mais ou menos como se “envolver com ela, mas não ser envolvido por ela”. Na verdade, acreditamos que essa é a lição mais abrangente dos comentários que Marx e Engels fazem em 184813sobre a maneira como os comunistas deveriam se comportar diante da realidade política e sua necessária diversidade. Claro que a sugestão de que os comunistas não guardam nenhuma solidariedade essencial com qualquer orientação política em particular pode ser infinitamente interpretada como mais uma tática ou estratégia política para a conquista do poder político-estatal, mas achamos que se trata mais de compreender que basicamente o comunismo contém a política, ao passo que ele a excede.

Mas em que sentido o comunismo não pode ser determinado pela política? Digamos que quando nos deparamos com experiências como a black panther à luz dos princípios a que nos dedicamos trabalhar como um coletivo político, pudemos lembrar de algumas linhas esquecidas pelo materialismo histórico em sua aurora. Em 184314, Marx fala do comunismo como a reunião dos comunistas, sugerindo que os comunistas seriam não somente os que se juntam para potencializar coletivamente a força de suas individualidades, visando satisfazer politicamente suas necessidades e carências sociais (afinal, sejamos francos, qualquer grupo social politicamente orientado agiria assim). Mais que isso, os comunistas formados através dessa reunião terminam por descobrir um novo regime de necessidades, e satisfações, através de sua própria organização. Com efeito, comunismo como associação não significaria exatamente a passagem histórica de um tempo político e econômico para outro. A ideia do comunismo como associação seria exatamente isso: a formação de uma conexão social entre pessoas que não possuem nada em comum, salvo a própria comunidade que há entre elas através do engajamento que mantêm para fazer essa comunidade existir entre elas e para elas. Portanto, menos que um instrumento ou meio de luta política, o partido tomado pelos comunistas encararia sua organização como a finalidade de sua reunião, ao invés daquilo que seu encontro eventualmente atingiria no futuro. Evidente que a relevância da política tradicional para esses comunistas permanece central, mas não por sua condição de comunistas, e sim porque a política guarda uma importância particular nas questões atinentes à realidade da vida social para qualquer grupo na modernidade. Numa palavra, os comunistas basicamente compreendem que não é na política que sua diferença será exercitada, afinal a própria defesa dos trabalhadores, para sequer mencionar as chamadas “minorias”, pode ser perfeitamente cumprida sem sua contribuição… Não é mesmo?

Claro está que nossa atual conjuntura está muito distante da Alemanha vivida por Marx em 1843. Sem contar que os marxistas de um modo geral não vêem muita serventia analítica em termos políticos e práticos nessa fase de elaboração teórica de Marx. Na melhor das hipóteses, essas reflexões são consideradas esclarecedoras, poéticas, mas não mais que isso. Mas ao modo como têm sido assimiladas no CEII, elas nos motivaram a conjecturar que o coletivo poderia encontrar material suficiente para a imaginar à construção de uma espécie de programa político propriamente comunista. Não no sentido de que aquelas palavras de Marx seriam capazes de produzir um consenso entre eventuais divisões entre nós em nome do comunismo. Mas porque a ênfase na organização determina o campo em que nossas hipóteses políticas comunistas devem ser testadas. Por exemplo, nos parece claro que nenhuma organização pode mobilizar seus militantes sem que ela mesma esteja suficientemente mobilizada para lidar com a vida deles. Para nós, é uma questão central criar organizações capazes de abranger a vida dos seus membros, de maneira a disputar com o capital o tempo de suas vidas. Em nossa opinião, o esforço de engajamento da organização com seus membros, que só pode ser construído através do engajamento dos membros com ela, seria uma maneira de responder a baixa presença das camadas mais populares no campo da esquerda. Numa palavra, não é que o povo não se veja nos hábitos, costumes ou princípios advogados pela esquerda. É que a política é um luxo que poucos podem se dedicar.

É possível que a consciência desse problema em específico possa ser avaliada por outros companheiros de esquerda e de lutas como uma realidade prática a ser enfrentada hoje por qualquer organização. Se for esse o caso, os convidamos a chamá-lo pelo nome de comunismo junto do CEII.

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