E esse é o Mal

imagem: Úrsula

A explosão de Beirute escancarou a naturalização da tragédia. Cem mil mortos já não são suficientes para nos chocar, vidas que somem, levando de roldão a existência como a conhecíamos. Falemos da estetização da desgraça dos vídeos.

Sob a capa do desagravo ao horror, apareceram vídeos de todo tipo no tuíto: crianças olhando da janela o fumaceiro que subia, e a explosão inesperada. Estupefação, lágrimas e a legenda: “poor kids”. Outro anuncia que colocou o vídeo da explosão em câmera lenta: “vejam, ficou ainda mais horrível”.

Ainda: o vídeo da noiva que gravava seu vídeo de casamento no exato instante da explosão. O vento causado pelo impacto erguendo o véu que se perde num ângulo impossível, a maquiagem escorrendo na fuligem.

Tais vídeos dão um passo adiante no processo de naturalização do horror, primeiro porque encontram elementos de beleza – a câmera lenta, a explosão registrada sob a estética kitsch dos vídeos de casamento, a ingenuidade infantil habitualmente explorada em propagandas – para maquiar a catástrofe real do mundo, isto sob critérios absurdos, que não atendem ao dever de informar da imprensa, agravados pela estética deslocada: “vejam, como no fundo é bela essa explosão”; “vejam, o sonho da inocente noiva explodindo na cara dela, ao vivo, sem cortes, que triste, não?”

Segundo, porque a repetição promovida pelos algoritmos das redes torna aquilo que já era perverso – por sua carga fetichesca, por atender essa satisfação atávica e inexplicável do serumano diante da infelicidade alheia – em algo banal, decorrente desse loop infinito em nossa timeline.

O efeito brutal dessas visualizações redunda noutra reação, a da satisfação por aquilo não ter ocorrido conosco, satisfação que aos poucos nos conduz, levianamente aliviados, à desgraça seguinte, ao próximo horror, a fim de manter essa falsa felicidade hormonal em seu clímax. E esse é o Mal.

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[republicação autorizada de texto originalmente postado no site do autor]

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