Coronavírus, a queda da linguagem e o fim da política

O filósofo Walter Benjamin | imagem: Antonio Marín Segovia

Falecido em Port-Bou, vítima de uma pandemia. Esse poderia ser o obituário de morte de Walter Benjamin, que tirou a própria vida há 80 anos. Acompanhando a consolidação do capitalismo e a ascensão daquele que foi o capítulo mais sombrio do século XX, Benjamin fugia da pandemia que assolava a Europa entre 1933 e 1945, uma pandemia que não se fez propriamente orgânica, como as muitas a que a humanidade sobreviveu, mas que fez tantas ou mais vítimas que os vírus e as bactérias. Uma pandemia ideológica, que respondeu pelo nome de fascismo. Longe de estarmos na mesma situação limite, a pandemia que agora nos aflige é mais biológica que cultural, porém não deixa de trazer preocupações de ordem ética que, de certa forma e em algum grau, têm proximidades com o que vemos na emergência do totalitarismo em nosso tempo. Benjamin não escreveu sobre enfermidades, ainda assim, o que será que o filósofo das multidões parisienses pode nos ensinar sobre esse mundo globalizado que hoje se isola em quarentena?

Quando o vírus chegou ao Brasil com patente supostamente chinesa, batismo espanhol e alguns meses de atraso, os noticiários já sabiam como chamá-lo em rede nacional: Covid-19. A princípio uma questão menor perante a calamidade sanitária e econômica ocasionada pela doença no mundo – que paralisou as produções na Ásia e, que antes de encontrar este solo fértil para sua propagação, tinha deixado um rastro de morte na Europa – o modo como a comunicamos revela traços interessantes da maneira pela qual organizamos nossa sociedade. A metafísica da linguagem de Benjamin é quem nos guia nesse sentido.

Em Sobre a linguagem geral e linguagem do homem, ainda jovem e influenciado pela teologia judaica, o filósofo alemão enuncia uma teoria da linguagem em que o ato de nomear as coisas é central. Já na Bíblia vemos que a criação se dá pela palavra, Deus disse e assim se fez (Genesis, 1:1-31), mas é resgatando uma segunda versão, segundo a qual Ele insuflou na humanidade o sopro da vida (Genesis, 2: 7), que Benjamin estabelece singular interpretação sobre o ato criador. A criação divina “começa com a onipotência criadora da linguagem, e ao final a linguagem, por assim dizer, incorpora a si o criado, ela o nomeia. Ela é aquilo que cria, e perfaz, ela é a palavra e nome”, afirma ele no texto reunido em “Escritos sobre mito e linguagem”. Na palavra é que Deus concebe a criação como sua obra; ao nomeá-la, revela imediatamente sua essência, de modo que, “a relação absoluta do nome com o conhecimento só existe em Deus, só nele o nome, porque é intimamente idêntico a palavra criadora, é puro meio do conhecimento”. Todavia, criados a sua semelhança, não foi pela palavra e sim pelo sopro que os homens vieram a vida. Essa diferença estabelece uma ordem inteiramente outra na criação, “dentre todos os seres, o homem é o único que dá ele mesmo um nome a seus semelhantes, assim como é o único a quem Deus não nomeou”. O pneuma divino marca a vida, o espírito e, também, a linguagem para uma humanidade esculpida da argila; como os homens não são produtos direto do verbo divino, igual a natureza, é na doação da linguagem que se aproximam da imagem do Criador. Ao conferir o dom da língua aos seres humanos, “Deus não quis submetê-lo à linguagem, mas liberou no homem a linguagem que lhe havia servido, a Ele, como meio de Criação. Deus descansou após depositar no homem seu poder criador”, o poder da língua que salva as coisas de seu caráter objetal para religá-la, pela pura linguagem, ao que elas, verdadeiramente, são. Nesse estado paradisíaco, “o homem é aquele que conhece na mesma língua em que Deus cria”, com a dádiva da língua ele se torna o tradutor da natureza que, sem nome próprio, só é em Deus. Assim, se “no nome a essência espiritual do homem se comunica a Deus”, na multiplicidade infinita da linguagem, ele revela a essência das coisas que, só conhece porque sua voz expressa a própria natureza da criação.

Um outro vírus assola a humanidade: a dimensão técnica do discurso que nos traz avanços irrefutáveis no campo das ciências, mas também revela um perigoso distanciamento das pessoas em torno do senso de comunidade e sua própria identidade

Contudo, ao se confundir pelo atributo concedido com o próprio criador, o homem deixa-se seduzir pela serpente, perdendo a dimensão divina da palavra. Na árvore do conhecimento sobre o bem e o mal é que conhecemos o único mal do paraíso, uma vez que este conhecimento é exterior ao nome. Ele não versa sobre a essência do dito, mas sobre o desconhecido, aquilo que não é nomeado na criação, que está em aberto para os seres. A dualidade moral não é apenas um saber restrito a Deus, como mesmo Ele, que reconheceu sua criação tão somente no bem (Genesis, 1:31), só o tem a posteriori. “O pecado original é a hora do nascimento da palavra humana, aquela em que o nome não vivia mais intacto, aquela palavra que abandonou a língua que nomeia, a língua que conhece, pode-se dizer: abandonou a sua própria magia imanente para reivindicar expressamente o caráter mágico, de certo modo a partir do exterior”, diz Benjamin, no texto citado acima. Na queda do homem a palavra passou a comunicar algo exterior à essência das coisas, perdeu a imediaticidade para se configurar enquanto signo que, em sua mediação, é incapaz de representar as coisas em si mesmas. Nessa dimensão semiótica, a comunicação direta que revela a essência do objeto em seu nome perde-se na linguagem humana que representa o objeto não mais enquanto tal, mas como fenômeno. Nessa intermediação comunicativa, a discrepância entre sujeito e objeto se manifesta na incompatibilidade entre o significante e o significado e a impossibilidade, na representação, da identificação absoluta, simbólica, mítica e universal, a qual pretendia a língua ao nomear. A linguagem humana, encarregada da nomeação e a quem as coisas se dirigem, perdeu a capacidade de representar com exatidão, na mesma medida em que fez da língua mero meio para dominação da natureza que, sem nome perde sua essência espiritual e se entristece muda, sem expressão e sem nada dizer, na tagarelice dos homens.

A dimensão instrumental dessa linguagem humana é retomada, em Origem do drama barroco alemão, no próprio fazer filosófico que, deposto e desorientado pelas ciências, perdeu sua capacidade contemplativa, ao se orientar por um método geométrico-transcendental que pouco se importa com o ser da verdade. A exemplo de Deus que, em sua onisciência, com a palavra incorpora a obra ao obreiro revelando a essência das coisas, a filosofia, em sua pretensão sistemática de saber a natureza das coisas, identifica consigo tudo que lhe é exterior e lhe parece estranho, mas acaba, na imperfeição da linguagem humana, diluindo nesse sujeito transcendental a dimensão própria do objeto. Em sua invocação more geométrica, a filosofia, na mesma medida em que abraça a matemática em sua representação objetiva como traço distintivo do conhecimento autêntico, “renuncia à esfera da verdade que é objeto intencional da língua original”. Nos sistemas das ciências e da filosofia “o conhecimento é um haver. O seu próprio objeto é determinado pela necessidade de ser apropriado pela consciência”, de modo que, “é próprio dele um caráter de posse, para o qual a apresentação é secundária”. O contrário do que acontece com a verdade, que revelada imediatamente naquela linguagem original, coincide o objeto com sua própria apresentação. Enquanto o conhecimento se dá por uma “conexão estrutural apenas mediatizada de conhecimentos isolados”, tal como a linguagem humana, na verdade “a unidade é uma determinação absolutamente imediata e direta”, tal como a língua de Deus. Por isso, “o conhecimento é questionável, a verdade não”. De tal maneira, no método representativo filosófico, o saber se esvai, como aquilo que não quer ser aprisionado por essa linguagem que não mais se configura como médium entre as coisas; tem-se uma linguagem distanciada que mirando conhecimento, mede, mesura, calcula, classifica e coisifica, mas que é incapaz de apresentar as coisas como são, uma linguagem que opera apenas como meio para fins de dominação daqueles que fazem de tudo, objeto. Mirando a ciência que destronou a sua autoridade sobre o conhecimento, a filosofia desposou-se também de sua dignidade metafísica sobre a verdade.

Feito esse preâmbulo, não pretendo fazer um perigoso discurso anticientífico em um momento em que a ciência, nossa tábua de salvação nessa emergência sanitária, é atacada por governos e vilipendiada por parte da sociedade civil, mas problematizar aspectos que vieram à tona nessa crise, ao acompanhar a evolução linguística do vírus. No primeiro mês, quando tínhamos algumas dezenas de infectados e alguma solidariedade com os mortos e suas famílias, o vírus respondia por Corona, mais próximo à dimensão divina da linguagem, uma vez que, em sua estrutura fisiológica, os cientistas observaram uma coroa em seu corpo biológico. Após alguns meses, vimos que o vírus não era apenas uma “gripezinha”. Com falta de ar, milhares de mortos e sem ministro da Saúde, passamos a combater a Covid-19, um termo científico que, ainda que como abreviação se referisse ao nome originário, entre siglas e números, já nos inseria no momento da queda adâmica da linguagem. Chegávamos a 100 mil mortos com um “e daí?” e gritos de “é campeão!”. Conforme o vírus se multiplicava em um alto e estável platô, a popularidade do presidente subia e o mantinha no Planalto. Naturalizamos friamente as mortes, vidas se tornaram números, objetificadas em mapas, gráficos e porcentagens de acordo com a linguagem científica. Nessa linguagem, a Covid-19, agora Sars-Cov-2, perdia qualquer capacidade de comunicação com as pessoas que, na mesma medida, a despeito da doença e suas vítimas, se desumanizavam. Não é de hoje que pelo discurso científico, as doenças deixaram de nos comunicar. Antes as moléstias, além de seu nome científico, tinham nome de doença e anunciavam seus efeitos em nossos corpos: caxumba, catapora, sarampo1. Hoje as enfermidades carregam uma denominação científica como hospedeira de um outro vírus que assola a humanidade: a dimensão técnica do discurso que nos traz avanços irrefutáveis no campo das ciências, mas também revela um perigoso distanciamento das pessoas em torno do senso de comunidade e sua própria identidade, uma dimensão discursiva que, isso foi demonstrado por diversas vezes, mata nossa relação com o mundo e com a própria política.

Na política, ao rezar o discurso do técnico, não perdemos apenas a liberdade dos modernos, mas também o lugar de fala, arriscando a própria democracia. O espaço público desaparece porque não há debate e nem espaço para interpretações. A democracia é substituída pela lógica de guerra

Nisto é que consistia a crítica de Benjamin a racionalidade técnica, a qual permitiu que, no mais alto grau de desenvolvimento científico, caíssemos em barbáries e degenerações éticas como o que se viu no período entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. Não é por menos que o filósofo berlinense alerta — em As Armas do Futuro — que as designações desse tipo de discurso “serão tão populares na próxima guerra quanto trincheiras, submarino, Berta gorda e tanque foram na passada. Para os vocábulos químicos difíceis de pronunciar serão adotadas em poucos dias cômodas abreviações (…), promovidas em poucas horas a uma atualidade jamais imaginada”, como também observamos durante a pandemia que nos assola. Cloroacetofenona, difenilamina, cloroarsina e sulfeto de dicloetila, a partir desse vocabulário técnico durante a guerra que Benjamin previu a próxima. A mesma racionalidade que inaugura a modernidade pelo desencantamento do mundo, apresentava no domínio da técnica a sua nova face no século XX: a desnaturalização do homem. Se, como é dito na “Rua de Mão Única”, em Para o Planetário, a “dominação da natureza” era “a finalidade de toda técnica”, Benjamin concebe, a partir da obsessão técnica, os mecanismos de dominação da própria humanidade enquanto segunda natureza. Não é sem propósito que sob o impacto da técnica da guerra, Benjamin percebe uma transformação da linguagem e da subjetividade de uma juventude negligenciada entre arames farpados e céus tingidos de mostarda. “Nossos telescópios, nossos aviões, e foguetes transformaram os homens tradicionais em criaturas novas” que “já falam uma língua totalmente nova”, que contrasta com a dimensão orgânica na medida em que “eles rejeitam a semelhança com os homens”, afirma ele em Experiência e pobreza. Se, em um primeiro momento, a técnica ajudou a humanidade a controlar a natureza e transformá-la de acordo com suas necessidades, desde os horrores da guerra, a técnica se emancipava da própria humanidade, estranhando-nos de nós mesmos. De tal modo, Benjamin mostra que o compromisso técnico é apenas consigo; tal qual o vírus que nos assombra, ela também tem como fim somente sua reprodução, um ritual mecânico de posição e reposição, que faz de vidas inocentes, nas guerras e nas fábricas, mercadorias descartáveis. É nessa racionalidade marcada pela técnica, desenvolvida mecanicamente como um eterno retorno de si, que, não apenas natureza e humanidade, mas também a história, corre, em oposição a sua essência, de maneira ‘natural’.

Na modernidade primeira, soberano era quem dispusesse do cetro da história, aquele que dominava os acontecimentos e a causalidade do processo histórico por uma racionalidade que se acreditava transcendente. Os dramas do barroco alem–ão foram o terremoto de Lisboa 2 sobre essa concepção, mostrando, sob visão luterana, que os príncipes, que posavam impassíveis como encarnação da história, estão presos e envoltos à imanência terrena que não controlam; e sucumbem sem nada conciliar e transformar. O estado de exceção era expressão dessa história natural barroca em que os personagens mudavam, mas o cenário era sempre o mesmo. A promessa de secularização do Iluminismo também não foi capaz de romper essa trajetória. Ora, ao destituir as decisões políticas do temperamento e paixões do soberano, a letra da lei, razão pela qual a república se guia, admitiu que, mesmo na ordem do direito, o estado de exceção fosse possível como forma de assegurar e preservar a organização social da produção, da vida e do Estado. No inconsciente constitucional que guarda para si a possibilidade de exceção (sobre isso, o texto de Olgária Matos, Modernidade: república em estado de exceção), é que no tempo de Benjamin, o estado de exceção continuou como expressão dessa história natural barroca em que os personagens mudavam, mas o cenário não3. A mathesis universalis que caracterizava a racionalidade histórica do século XVII não foi abandonada pelos séculos posteriores, pelo contrário se intensificou no discurso científico até chegarmos ao discurso técnico da religião de nosso tempo, o capitalismo (como o analisou Benjamin em Capitalismo como religião). Na coincidência entre política e economia neoliberal, que destitui o político de decisões, tomadas agora, em nome da técnica por especialistas supostamente neutros, talvez não encontremos o fim da história (como quereria o Francis Fukuyama de O fim da história e o último homem), mas o fim da própria política (voltamos ao texto de Olgária citado acima). A política se torna refém do poder econômico e o Estado passa a ser desacreditado e malquisto.  É em nome da fé na técnica que despolitiza o político que sacrificamos nossos direitos sociais e civis e que desmontamos as instituições estatais para nos fecharmos em nossa individualidade. Ao rezar o discurso do técnico, a linguagem decaí mais um círculo da divina tragédia, se expulsos do paraíso tornamo-nos incapazes de representar, na política não perdemos apenas a liberdade dos modernos (sobre isso, Isaiah Berlin. “Dois conceitos de liberdade”, de Estudos sobre a humanidade: uma antologia de ensaios), conexão entre a função parlamentar e eleitor, mas também o lugar de fala, arriscando a própria democracia. No monopólio epistêmico dessa racionalidade puramente técnica, o espaço público desaparece porque não há debate e nem espaço para interpretações. A democracia plural, altera e da diferença que imaginamos é substituída pela lógica de guerra, do amigo-inimigo que reverbera na cultura, pelas práticas de cancelamentos, na política, pelo atual mandatário da República, e na sociedade, pelo fascismo cotidiano. “O fascismo é o capitalismo liberal que perdeu seus escrúpulos”, define Olgária Matos, em Benjaminianas: cultura capitalista e fetichismo contemporâneo, e, mais uma vez, o estado de exceção encontra campo fértil para completar mais uma volta desse eterno retorno que é a história natural barroca, onde os personagens mudam, mas o cenário é sempre o mesmo.

Muito criticado, foi preocupado com o fantasma do estado de exceção que Giorgio Agamben teceu uma série de ensaios sobre a pandemia (reunidos em Reflexões sobre a peste: ensaios em tempo de pandemia). Considerado insensível e irresponsável pelas críticas às regras de contenção social e recomendações de isolamento que estamos experimentando no combate a pandemia, e que são efetivamente necessárias para o momento em que vivemos, o pensador aponta para um problema que merece reflexão: o estabelecimento das técnicas de gestão de corpos aprendidos durante esse período, no pós-pandemia, como ‘novo normal’. Em outras palavras, a pandemia passa, mas o estado de exceção fica.

Uma aflição que não parece desmotivada, como nos mostra Paul B. Preciado ao comentar a pandemia em sua perspectiva biopolítica (onde o corpo não é simplesmente um organismo biológico, mas um organismo social forjado na ação política, prefigurado, nas modalidades de discurso, trabalho, reprodução, por “técnicas governamentais biopolíticas que se estendiam como rede de poder que extrapolavam o âmbito legal e a esfera punitivista”. Ao partir do paradigma foucaultiano sobre as sociedades disciplinares, o filósofo mostra como “as distintas pandemias materializam no âmbito do corpo individual as obsessões que dominam a gestão política da vida e da morte de populações em um período determinado”, colocando “em cena a utopia de comunidade e as fantasias imunitárias de uma sociedade, externando seus sonhos de onipotência (e as falhas desastrosas) de sua soberania política”. De um lado, valendo-se do estudo entre imunidade e política na crise de poliomielite e aids de Emely Martin, demonstra que a imunidade corporal “não é um mero fato biológico independente de variáveis culturais e políticas”; ela “se constrói coletivamente através de critérios sociais e políticos que produzem alternativamente  soberania ou exclusão, proteção o estigma, vida ou morte”. O que temos visto com clareza no descaso de discursos que contrapõem a situação da economia com a saúde pública e, na rede de desinformação e políticas públicas irresponsáveis que levam, especialmente as classes menos favorecidas para morte. Já, de outro lado e em complemento, articula Roberto Espósito que nos “ensina que toda biopolítica é imunológica: pressupõe uma definição por parte de uma comunidade e o estabelecimento de uma hierarquia  entre aqueles corpos que estão isentos de tributos (os que são considerados imunes) e aqueles que a comunidade percebe como potencialmente criminosos”. Uma configuração da normatividade social que alterna, entre corpos puros, imunes e disciplinados que regula, tantos outros não eleitos, passiveis de exclusão e extermínio. Esse modelo imunológico que poderíamos referir ao nazismo, não foi abandonado de todo nas democracias contemporâneas liberais que “constroem o ideal do indivíduo moderno não apenas como agente (masculino, branco, heterossexual) econômico livre, mas também como corpo imune, radicalmente separado, e que nada deve a comunidade”. Pelo contrário, é essa compreensão imunológica que acabou “legitimando as políticas neoliberais de gestão de suas minorias racializadas e das populações imigrantes” que, sem pátria e esperança, procuravam apenas um lugar seguro para sobreviver na Europa.

O combate ao vírus apresenta a conversão de um mundo ao outro, o processo de passagem de uma sociedade disciplinar para uma sociedade digital. Ante a queda de uma sociedade disciplinar, o liberalismo autoritário pode emergir com mais pujança, convertido em um estado policial digital em que o estado de exceção passa a ser o paradigma do novo normal

Nessa trilha imunológica da biopolítica, Preciado mostra como as pandemias forjam a sociedade e nossos horizontes utópicos, criando os homo sacers (debatidos por Giorgio Agamben, em Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua) de amanhã. Como agora acontece com o coronavírus em relação a sua origem, sobretudo com o estigma sobre os chineses, quando a sífilis afligiu a Europa em 1494 os ingleses culparam os franceses, os franceses os napolitanos, e estes, a população nativa da América, tornando o outro sempre o objeto de exclusão. Como aponta Paul B. Preciado: “Infecção sexualmente transmissível, a sífilis materializou nos corpos dos séculos XVI ao XIX as formas de repressão e exclusão social que dominavam a modernidade patriarco-colonial”, sustentando a pureza racial e a ética matrimonial; a condenação de casamentos mistos e, sobretudo, das prostitutas, mulheres já precarizadas e abusadas de todas as formas, que passaram a carregar a mácula da doença. “Meio século depois, a aids foi para a sociedade neoliberal heteronormativa do século XX o que a sífilis tinha sido para as sociedades industrial e colonial”; com ela a repressão substitui as mulheres pela população homossexual, a qual recai. No caso da pandemia pela qual passamos, as vidas sacrificadas já foram escolhidas há muito tempo pelas transformações estruturais iniciadas já antes do coronavírus: pretos, pobres e periféricos4. Não precisamos ir longe para testemunhar, como escreveu Achille Mbembe, a “redistribuição desigual da vulnerabilidade” humana para com o vírus: a ausência de leitos hospitalares, respiradores, exames e testes em massa, máscaras e álcool em gel nos é familiar.  Entre entregas de comida por aplicativos, filas em agências bancárias e ônibus lotados, na asfixia dos “corpos vivos expostos ao esgotamento físico e a todo tipo de risco biológico, por vezes invisível”, assistimos a empresários5 “delegar a morte a outros e fazer da própria existência um grande banquete sacrificial”. Por isso que o mundo por vir, ainda segundo Mbembe, apresenta “compromissos novos e ruinosos com formas de violência tão futuristas como arcaicas”.

A incidência maior de contaminação em populações vulneráveis não põe somente o vírus como cúmplice da necropolítica (discutida por Achille Mbembe em Necropolítica) permanente da periferia do capitalismo, como também é consequência do encantamento do sujeito contemporâneo perante as novas relações materiais, de consumo e tecnologias a qual está submetido; é efeito da falência da crítica e da ideologia cínica (pensada por Peter Sloterdijk, em Crítica da razão cínica) que impregna a razão de nosso tempo. No mais alto grau de desenvolvimento tecnológico testemunhamos a morte do sujeito disciplinar e o surgimento de uma nova subjetividade regulada pela interação digital que se despede de direitos trabalhistas e previdenciários em nome de um mundo desregulado, sem lastro e vazio de fundamento, como a lógica do capital fictício. Em nosso estado de natureza virtual, as mudanças nas formas de interações sociais, padrões de consumo e âmbito privado dos negócios (que fizeram de nossa sala de estar, escritório, shoppings e prisão particular) só aceleram uma nova configuração de sociedade, tecnológica e fluida, como as nuvens do big data, e que, na mesma medida em que oferta desregulação do trabalho e empregos precarizados, mantém – na vigilância sobre os dados, informações e dispositivos – um alto controle sobre os corpos e suas identidades. Um contrato social para essa nova sociedade digital pode ser a revolução hobbesiana-capitalista do vírus. O novo mundo ainda convive com o anterior. O combate ao vírus apresenta a conversão de um mundo ao outro, o processo de passagem de uma sociedade disciplinar para uma sociedade digital. A estratégia europeia que prega confinamento social e controle populacional no combate a pandemia, ainda está centrada nas sociedades disciplinares pautadas pelo conceito de soberania, e se difere muito do modelo asiático, onde vemos “os celulares e cartões de crédito se tornarem instrumentos de vigilância que possibilitam traçar os movimentos do corpo individual”, como descreve Paul Preciado. O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han aponta o sucesso dos países orientais no combate ao vírus exatamente na esteira da troca de dados, que realizamos de maneira espontânea como caráter aparentemente emancipador de nossa interação social, sem muita consciência crítica da face sombria e autoritária que ela esconde. Ante a queda de uma sociedade disciplinar, o liberalismo autoritário (como o apontam Grégoire Chamayou, em Sociedade ingovernável: uma genealogia do liberalismo autoritário, e Wendy Brown, em Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente) pode emergir com mais pujança, convertido em um estado policial digital em que o estado de exceção passa a ser o paradigma do novo normal. Assim sendo, Agamben não se equivoca. A sociedade digital pode ser mais um capítulo dessa história natural barroca que como Benjamin nos ensina pela tradição dos oprimidos, faz do estado de exceção em que vivemos, regra geral.

Lembrando por fim das Teses Sobre o Conceito de História (principalmente a 2 e a 7), para que as vozes não se encerrem amanhã para outros mais 181 mil e 402 brasileiros6, faz-se urgente um conceito de história a favor dos oprimidos.

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