A Tribo que Expulsava seus Membros lhes Dando Cenouras

Cresci numa cidade chamada Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, uma dessas cidades com personalidade própria onde surgem criaturas fantásticas que vão de Tenório Cavalcanti, um alagoano que lá se fez o “Rei da Baixada” ao se tornar vereador e matador, até Zeca Pagodinho, o homem mediano que todos gostaríamos de ser, ou de pelo menos ter algum grau de parentesco.

Caxias, como nós moradores costumamos chamar, é uma cidade de personalidade própria, ou talvez assim pareça somente a mim, por me marcar demais em aspectos sociais e culturais. Foi lá que eu aprendi as regras sociais resumidas na palavra “proceder” ao me relacionar com pessoas diferentes de mim. Aprendi até mesmo onde, quando e como chegar e sair de qualquer lugar sem ser levado à pena capital sumária (algo importante de saber quando se pretende ter uma vida intensa em pleno subúrbio fluminense). Em Caxias, me formei pedagogo, tornei-me um mestre em educação e fiz-me um homem, um ser social, um membro de minha tribo.

Neste mês, vi Caxias destruir tudo isso com algumas cenouras.

A ação foi chamada de “kit saudável de páscoa”. Na prática, a secretaria de educação comprou dez vezes mais cenouras que o necessário (segundo alguns, 93% mais cara que o preço normal) e viu como solução dar aos alunos da rede pública as cenouras que estavam estragando. Acompanhado de tais cenouras, cada escola deveria entregar também uma impressão ensinando como fazer um delicioso bolo de cenoura com cobertura de chocolate. Tudo isso como ação de comemoração à Páscoa.

Eu achei isso de uma crueldade tão grande. Porque pode parecer um simples acréscimo de algumas cenouras na vida, mas quando você é pobre, pobre de verdade, não pobre como você e eu somos, feriados nacionais de natureza de consumo podem ser muito cruéis e excludentes, porque não basta as tuas carências cotidianas comuns, mas também te esfregam na cara carências ocasionais, como essa da páscoa, na qual se celebra alimentações caras como bacalhau, chocolates e afins.

Como sei disso? Fui pobre. Muito mais pobre do que me considero pobre hoje. O mundo visto pelo ângulo da pobreza é muito diferente, porque fundamentamos nossa organização de vida pelo consumo. Quantas vezes você mesmo mediu o sucesso, teu ou de terceiros, pela capacidade de consumo? O que você compra pode te diferenciar entre um fracassado e um Very Important Person.

É essa estrutura de consumo que faz com que as datas comemorativas como a Páscoa, o Natal, ou mesmo outros mais direcionados aos laços afetivos, como Dia dos Namorados e Dia das Mães sejam dias cuja pobreza dói ainda mais. O sentimento de rejeição e de não-pertencimento social são acentuados, quando somos bombardeados pela impressão de que tudo o que podemos fazer nesses dias é consumir algo. Quando se é criança então, o que você percebe é que todo mundo (e hoje em dia, com as redes sociais, o “todo mundo” inclui muito mais gente), exceto você, faz parte de uma tradição social prazerosa que inclui comprar e comer algo específico. E você não sabe ao certo porque você não faz parte disso.

Um ovo de chocolate para uma criança pobre é extremamente simbólico. Criamos uma sociedade que confunde pertencimento com consumo e depois excluímos o pobre dessa sensação de pertencimento.

Não defendo que a Páscoa deva ser como é, ou mesmo que a sociedade deva se basear no aspecto do consumo. Pelo contrário, digo que o consumo é cruel por isso, por gerar tão facilmente outsiders involuntários. Porque criamos uma data cujas práticas tradicionais têm caráter de rito, e qualquer membro fora do rito é um membro fora da tribo. Um chocolate durante o feriado de Páscoa é muito mais simbólico do que dar um bombom num dia qualquer. Um chocolate nesse dia significa “você faz parte de nós e de nossos ritos”.

Ritos comunitários nos são importantes porque fazem com que nos sintamos humanos num mundo humano. Tratar assim uma criança pobre é dizer que ela não pertence, que ela não faz parte, que ela não é humana, só por ser pobre.

imagem destacada: Ponto e Vírgula

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