A Sombra do Passado nas Redes

A internet se tornou a forma contemporânea de expressão dos mais variados aspectos do humano. Entre esses, aquele que faz perseguições públicas, que amarra uma pessoa na praça e lhe taca pedras. Vez por outra vemos esse fenômeno retornando, em que um indivíduo é malhado publicamente.

Não me entendam mal, a repressão moral tem um papel importante na sociedade. Muitas vezes o indivíduo relegado ao escárnio e à repressão pública tem uma conduta repreensível. No caso mais recente, o youtuber Cocielo mostrou postura racista, e é uma resposta adequada numa sociedade democrática que se recrimine essa postura moralmente, que se cobrem as instituições e empresas para que o punam, como busca a tática recorrente (e geralmente justa) de expor o indivíduo à empresa em que trabalha ou a seus patrocinadores. Cocielo perdeu patrocínio e benefícios de diversas firmas, e esta é uma reação social apropriada e condizente com o patamar de ofensa pública que ele perpetuou.

A discussão aqui não é sobre se devemos reprimir moralmente numa sociedade democrática (isso concordamos que devemos), mas a discussão que quero levantar é sobre metodologia. Após um primeiro tuíte racista do Cocielo, seus condenadores foram atrás de tuítes antigos dele em que ele explicita todo tipo de preconceito, em níveis absurdos. Isso se tornou uma metodologia comum: caçar tuítes antigos da pessoa em que ela está falando algo condenável, buscar anos atrás nos históricos dela nas redes sociais, para achar algo que atacar. Essa metodologia não parou apenas em Cocielo. Depois dele, foram atrás de outros youtubers e personalidades da internet, e desenterraram tuítes de anos atrás. Parece ter se instaurado uma espécie de caça às bruxas com eles (em algum tipo de mentalidade de perseguir a categoria, afinal se um é babaca obviamente toda ela o é…) e para achar motivos para condená-los enquanto grupo, chegaram a pegar coisas de quase dez anos atrás, como um tuíte do Gregório Duvivier.

Claro que no caso do Cocielo os tuítes não são tão antigos assim e o agravante que fez com que fossem desenterrados foi um tuíte novo que mostra que o seu comportamento continua o mesmo de anos atrás.

Porém, o caso mais emblemático me parece ser o do Cauê Moura. Ele foi o mais perseguido nessa leva, e logo começaram a divulgar seus pecados e o fizeram perder o patrocínio. Algumas manifestações realmente condenáveis do Cauê foram expostas, que datam de 2011, 2012, 2013. Porém dessa época para cá o youtuber mudou bastante. Eu acompanho o trabalho dele e vejo que demonstra em seus vídeos uma preocupação social constante, e uma defesa das minorias, antes vilipendiadas por seus tuítes. Mais do que isso, ele fala numa linguagem que atraí os adolescentes e ensina a esses jovens sobre essa preocupação social e respeito a minorias. Não seria razoável pensar que ele de algum modo se arrependeu daquelas manifestações e não mais as sustente?

A questão central é: quanto tempo demora para algo dito na internet ser perdoado e considerado antigo? Me parece uma questão bastante importante e que é ignorada pelos utilizadores da rede. Também não é o caso que seja simples, algo que pode ser pacificamente apontado e resolvido, como estabelecendo “três anos” ou “cinco anos” — tratam-se de limites tênues. Será que as ofensas do Cocielo eram antigas o bastante? Parece que não. E as do Cauê?

Um ponto que cabe lembrar é que, mesmo em termos legais, um crime pode prescrever. Se o crime foi cometido há muito tempo a pessoa não pode mais ser condenada por ele. Para dar um exemplo relevante para nosso caso, pesquisei a prescrição do o crime de injúria racial (e aqui falo  como leigo, e me desculpo de engano que possa ser observado por algum jurista atento), ele teria prescrição de oito anos. Ou seja, um crime de injúria racial cometido, digamos, por Cauê oito anos antes, seria anulado.  Pegando os tuítes mais antigos do Cauê, de 2011, com apenas mais um ano as injúrias por ele cometidas iriam prescrever legalmente.

E sobre o julgamento moral que podemos fazer sobre eles? Será que não deveriam prescrever também?

Parece razoável que haja um prazo de prescrição moral para esse tipo de ofensa, e talvez até razoável que tenha menos rigor do que o seu equivalente do direito. Pois em casos assim mais morais, podemos entender mais as complexidades subjetivas e os atenuantes, as possibilidades de o indivíduo não se reconhecer mais em seus discursos anteriores com base nos atuais.

Mas esse prazo provavelmente não poderá ser determinado de modo rígido. Cabe aqui o bom senso, e levantar essa reflexão. Cabe a nós avaliar o tempo como relevante em momentos como esses e questionar se é justo esse método de revolver o passado de quem se quer perseguir, em vez de expor seus crimes ou más condutas atuais, pois é quem a pessoa é hoje que é relevante.

O ser humano é uma mudança constante, ele aprende, ele se transforma. Isso não desculpa crimes ou ofensas que uma pessoa cometeu e que podem afetar muitas outras pessoas. Mas será que só um passado que pode nem mais corresponder à pessoa hoje, deve ser suficiente para destruí-la?

Autor

  • Bacharel em filosofia, largou um mestrado em filosofia da ciência. Teve formação bem tradicional, mas fugiu para a filosofia analítica. Possui interesse em diversas áreas filosóficas, questões políticas, sociais. Entusiasta da ciência no geral, da economia, e do bom diálogo aberto e democrático com o diferente. Atualmente, está mudando de área de atuação, estudando programação e tentando escrever romances no tempo livre.

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