Como o anarquismo vê as medidas do governo Lula e como avalia os avanços da direita? No que deve consistir a luta política?

Quando fui convidado para escrever este artigo, o novo pacote fiscal do governo Haddad ainda era tema de debates. Na época, as propostas incluíam limitações no aumento do salário mínimo, ajustes em benefícios sociais como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), além da promessa de ampliação na faixa de isenção do Imposto de Renda. Embora o assunto tenha perdido espaço no noticiário, suas implicações continuam gerando discussões sobre o impacto das medidas na economia e na vida da população. O pacote avançou e agora aguarda aprovação no Legislativo, onde enfrenta negociações e possíveis alterações antes de sua implementação – não devemos perder este fato de vista. Desde o início, os estereótipos permanecem barulhentos nas mídias sociais da seguinte forma:
Dos setores que apoiam o governo, temos os negacionistas que afirmam que tudo isso é invenção, uma “mentira da oposição”. Há aqueles que, mesmo reconhecendo os cortes e restrições, tentam justificá-los como medidas necessárias para combater fraudes e equilibrar o orçamento. O curioso é perceber como muitos que criticavam cortes semelhantes no governo Bolsonaro agora os defendem com veemência. Entre essas duas posições, há um consenso de que a falta de apoio ou as críticas ao governo podem abrir caminho para o fortalecimento de um projeto neofascista, ou algo semelhante ao que vivemos no governo passado. No entanto, essa percepção não encontra respaldo na história contemporânea: nunca vimos o fascismo ser efetivamente enfrentado apenas por meio das urnas. Essa estratégia, por si só, não se mostrou eficaz no combate a uma ideologia tão perniciosa e devastadora. A história mostra que o fascismo é combatido principalmente por organização popular e resistência direta, não pela dependência de governos liberais. Movimentos sociais, sindicatos, organizações de base e até mesmo a autodefesa comunitária foram as principais barreiras ao avanço fascista em diversos momentos históricos – a coerência parece ser algo em falta em certos setores chamados “petistas” ou “lulistas”.
O governo, claro, tentou amenizar a recepção negativa ao anunciar a proposta da isenção do Imposto de Renda junto às medidas restritivas. Contudo, essas promessas de alívio fiscal só começarão a valer, no melhor dos cenários, em 2026 — uma mudança que beneficia apenas uma parcela da população, enquanto a base de apoio mais fiel ao governo, composta em grande parte por pessoas que vivem com até dois salários mínimos ou dependem de benefícios sociais, sofre com as limitações impostas.
Diante desse cenário, a análise anarquista ganha relevância, pois desafia tanto a defesa incondicional dessas medidas quanto o otimismo passivo de que reformas institucionais, por si só, resolverão os problemas estruturais da sociedade. Este texto busca discutir como o anarquismo historicamente se posiciona em relação a reformas, governos e à luta por condições de vida mais dignas, traçando paralelos entre o presente contexto e os debates que atravessam a história do movimento libertário.
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Há quem diga que os anarquistas são extremados, agindo de forma inconsequente e caótica. De certa forma, isso orbita a história das práticas anarquistas, mas não se confirma como algo majoritário. A atuação dos anarquistas frente a governos liberais ou “sociais-democratas” se dá, muitas vezes, em um cenário de tensão entre a necessidade de lutas imediatas e o objetivo revolucionário de transformação social – no caso do terceiro mandato do Lula, um governo social-liberal, que fique claro. Esse debate não é novo. Desde o início do movimento anarquista, questões sobre reformas, organização e ação direta têm motivado intensas discussões internas. No que diz respeito às reformas, os anarquistas historicamente se dividiam entre possibilistas e impossibilistas.
Os possibilistas acreditam que as reformas podem funcionar como ferramentas de fomento, ajudando a criar força social e instituições autônomas da classe trabalhadora, servindo como contraponto ao Estado e ao Capital dentro do capitalismo estatista. Para eles, conquistas a curto prazo e a construção de alternativas no presente fortalecem a perspectiva de uma superação revolucionária futura dentro do socialismo libertário. Um exemplo de alguém ligado a esta estratégia é Errico Malatesta, que defendia a organização e a ação gradual dos trabalhadores. Já os impossibilistas consideram esse esforço uma perda de energia e acreditam que, em vez de focar em reformas, os anarquistas deveriam priorizar ações mais combativas e diretas, como a propaganda e atentados contra alvos específicos – algo comum em períodos de forte repressão estatal. Um dos que advogam essa abordagem é Émile Henry, que justificava a violência anarquista como resposta à opressão. As posições possibilistas e impossibilitadas não são estáticas ou monolíticas; elas passaram por um processo de análise histórica, refletindo a materialidade de cada momento vivido pelos militantes anarquistas, cada qual à sua época. Esse movimento é fundamental para a execução estratégica do anarquismo no contexto do socialismo libertário. Emma Goldman é um exemplo claro de anarquista que transitou entre essas estratégias. Inicialmente, ela se alinhou às ações diretas violentas, influenciada pela repressão brutal ao movimento operário nos Estados Unidos, chegando a apoiar atentados como o de Alexander Berkman contra Henry Clay Frick. Contudo, com o tempo, Goldman passou a enfatizar a importância da educação, da organização e da construção de espaços autônomos, como jornais, sindicatos e círculos de debate, aproximando-se de uma estratégia mais possibilista.
Essa divisão gerou um debate longo, duro e espinhoso, que não cabe nestas linhas. O que se pode afirmar, contudo, é que, dentro da história do anarquismo, encontramos posições pragmáticas, estratégias e abordagens inteligentes que continuam a orientar os anarquistas nas últimas décadas do século XXI.
Malatesta afirma que conquistar reformas equivale a “arrancar pouco a pouco do inimigo o terreno que ele ocupa”. Já Ba Jin, um importante anarquista que atuou no movimento revolucionário chinês, reforçou que a transformação social será gradual, e por isso é necessário lutar por melhorias como a redução da jornada de trabalho e a proteção dos meios de vida dos trabalhadores. Entretanto, essas reformas devem sempre estar alinhadas com o objetivo revolucionário. Ou seja, ao tratar das reformas como parte de um exercício revolucionário, em que os trabalhadores e os oprimidos exercem sua ação direta para conquistar direitos, os anarquistas recorrem a estratégias que tornam essa luta mais eficaz. É a estratégia de massas defendida por Bakunin no seio da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), que, segundo ele,
dará à agitação operária em todos os países um caráter essencialmente econômico, colocando como objetivo a diminuição da jornada de trabalho e o aumento dos salários; como meios, a associação de massas operárias e a formação de caixas de resistência. (Bakunin, 2008, p. 68)
“A ideia de Bakunin sobre a ‘ginástica revolucionária’ é apresentada como um processo no qual as lutas por reformas servem para exercitar e preparar os trabalhadores para ações revolucionárias mais amplas”, afirma Felipe Corrêa em Bandeira Negra: Rediscutindo o Anarquismo. As lutas a curto prazo estabelecidas pela Internacional (AIT) só foram intensificadas conforme a estratégia de Bakunin, pois existia uma organização paralela. Isso se refletia nas estratégias revolucionárias a longo prazo, associadas ao que chamamos de primeiro partido anarquista: a Aliança da Democracia Socialista (ADS). O dualismo organizacional, proposto por Mikhail Bakunin, que articulava a Aliança da Democracia Socialista (ADS) e a Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), concretiza o projeto revolucionário anarquista.
Essa base organizacional dual permitiu aos anarquistas atuar em dois níveis distintos: no nível de massas, por meio de instituições e organizações criadas por e para trabalhadores; e no nível específico, com organizações anarquistas de quadro, uma espécie de “partido” no sentido estratégico, responsável por articular e orientar a ação revolucionária em uma perspectiva libertária.
Tempos mais tarde, figuras como Errico Malatesta e Luigi Fabbri seguiram essa tradição. Defenderam sindicatos não vinculados programaticamente a uma ideologia específica, permitindo atrair um maior número de trabalhadores. Como Malatesta aponta, a existência de um “partido anarquista” – entendido não como um partido político convencional, mas como uma organização específica – é essencial para promover posições anarquistas de maneira eficaz. Esse modelo, conhecido como dualismo organizacional, distingue entre as organizações de massa e as organizações específicas, ambas essenciais para a estratégia anarquista.
No Brasil não foi diferente, em 1906, durante a Primeira República Brasileira, o movimento anarquista se destacou na luta pela jornada de oito horas de trabalho. A Confederação Operária Brasileira (COB), uma das principais organizações de trabalhadores da época, foi fundamental nesse processo. Inspirada pelas reuniões AIT da década de 1860 e pela Confederação Geral do Trabalho (CGT) francesa, a COB se organizou de forma federada, propondo uma nova forma de organização sindical e social. Anarquistas como Edgard Leuenroth, Domingos Passos e Neno Vasco, um luso-brasileiro, estiveram à frente dessas mobilizações ao afirmar que as táticas precisam ter coerência estratégica. Por meio de greves e manifestações, a COB impulsionou a reivindicação das oito horas de trabalho, conectando essa luta às demandas globais da classe operária.
Essas ideias são particularmente relevantes quando analisamos governos liberais ou sociais-democratas contemporâneos. Voltamos ao exemplo do pacote fiscal de Fernando Haddad, que, apesar de vir de um governo dito “progressista”, revela-se tão austero quanto às políticas neoliberais de Paulo Guedes. Essa realidade expõe o limite de reformas conduzidas por governos, cuja lógica se submete à manutenção do capitalismo e do Estado, estruturas que os anarquistas buscam superar. Tanto o governo Bolsonaro quanto o governo Lula reforçam um modelo neoliberal, em que o “equilíbrio das contas” depende de cortes em direitos sociais e serviços essenciais, enquanto o Estado serve aos interesses do capital financeiro. Essa lógica fortalece a ideia de um Estado mínimo. Isso é falacioso, como aponta a teoria social anarquista, o Estado tem exatamente o tamanho que a classe dominante exige. Ao priorizar ajustes que favorecem grandes corporações e especuladores financeiros, o governo prejudica a classe trabalhadora, agravando a exclusão social e criando um ciclo de vulnerabilidade.
Não se pode esquecer que nesse período político de escandalosos estímulos à direita se construiu a partir do processo do golpe contra a presidenta Dilma. Avançou, somados a operação Lava Jato, por meio de um processo de lawfare, e o estímulo ao sentimento antipolítica, com foco no anti-PT e na anti-esquerda. Uma política nacional mais aberta e agressivamente neoliberal foi impulsionada pelo governo Michel Temer. No contexto desse enfrentamento, a direita caminhou majoritariamente para a extrema direita, em um processo fascistizante que culminou na eleição de Bolsonaro em 2018. A esquerda viu enfraquecidos seus projetos mais radicalizados e, resignadamente, respondeu caminhando ao centro, agrupando-se em torno do petismo e propondo formas de diálogo com o centro e a direita. A vitória apertadíssima de Lula em 2022, fruto de uma ampla frente que uniu desde a esquerda até a direita moderada, não modificou significativamente esse quadro. No momento, o governo Lula tenta, sem sucesso, retornar às fórmulas conciliadoras do início dos anos 2000, mas está constantemente encurralado pela extrema direita e pela tradição do “centrão”, fortíssima no legislativo nacional. Para alcançar uma governabilidade quase que imaculada e sagrada, o governo, tanto nas escolhas do executivo quanto nas direções de seus ministérios, foi cada vez mais inclinando-se para decisões neoliberais. Esse movimento reflete, na prática, a hegemonia de um projeto que, embora se identifique com a esquerda, acaba incorporando elementos da ordem capitalista, muitas vezes subvertendo as promessas de transformação social.
Em termos sociais, a grande disputa atualmente se dá entre o bolsonarismo (extrema direita) e o petismo, que a cada dia se posiciona mais ao centro. Não há perspectivas de mudanças significativas em termos econômicos, políticos ou culturais. O pacote fiscal proposto pelo ministro Fernando Haddad busca reduzir gastos públicos, impactando áreas fundamentais como saúde, educação e segurança. Medidas como limitar o abono salarial a quem ganha até R$2.640 e restringir o aumento do salário mínimo a 2,5% acima da inflação mostram como o ajuste afeta diretamente os trabalhadores. Embora apresentem soluções para equilibrar as contas públicas, essas ações podem prejudicar ainda mais a qualidade dos serviços essenciais e reduzir o poder de compra da população mais vulnerável.
Os apoiadores do PT persistem em dizer que essas medidas são necessárias para o bem da população. Essa justificativa, porém, é como uma falácia. O crescimento do PIB, frequentemente usado como argumento, não reflete automaticamente melhorias no bem-estar social. O PIB pode crescer sem que a distribuição de riqueza seja equitativa, sem aumento na renda real dos trabalhadores e sem garantir comida na mesa dos mais necessitados. Esse crescimento econômico, na maioria das vezes, beneficia uma elite minoritária, mantendo a concentração de renda e aprofundando as desigualdades.
Além disso, questões estruturais como o controle da financeirização das commodities e a indexação dos juros seguem fora do debate. Políticas de juros altos e dependência do mercado financeiro impõem trabalhadores e pequenos empreendedores em uma espiral de dívidas, enquanto o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) e outras medidas beneficiam os grandes bancos. Esse modelo de “ajuste” fortalece a especulação e mantém o trabalhador preso a um sistema injusto.
O governo também celebrou a ideia de que o Brasil voltou a ser um “país de classe média”, mas essa visão é distante da realidade. Ser classe média significa estabilidade financeira, acesso a serviços de qualidade e uma vida com segurança. Em um país onde o custo de vida está nas alturas, os esforços estagnados, e onde milhões ainda enfrentam dificuldades para garantir o arroz e o feijão de cada dia, afirmar que somos uma nação de classe média é, no mínimo, uma piada. O custo de vida é alto, e o mercado informal representa 38,8% da força de trabalho, segundo o IBGE, ou seja, cerca de 40 milhões de pessoas que vivem sem vínculo formal. A disparidade racial também é gritante: enquanto os brancos recebem em média R$ 23,02 por hora, os negros ou pardos recebem R$ 13,73, uma diferença de 67,7%. Esses números desmontam a narrativa de uma suposta “classe média brasileira”.
Reformas que buscam o mercado financeiro não solucionam os problemas estruturais. A anarquista Lucy Parsons, com sua visão revolucionária, poderia dizer algo parecido, talvez destacando como essas medidas buscam distrair a classe trabalhadora, apontando que problemas como a miséria são resolvidos com pequenas reformas, quando na verdade são os próprios sistemas de opressão que precisam ser destruídos. Ela argumentava que tais medidas só reforçariam a ideia de que uma classe trabalhadora não deve depender do capitalismo-estatista, em vez de se organizar para sua própria libertação, como ela defende em suas lutas por uma sociedade sem classes e sem opressores. A estratégia consciente do governo Lula, com algumas de suas medidas, pode acabar, paradoxalmente, empurrando parte da classe trabalhadora para a extrema direita como uma aparente alternativa. Isso ocorre devido a um conjunto de fatores, incluindo o descontentamento com ações que não atacam diretamente as raízes das desigualdades e, em vez disso, reforçam a dependência de medidas paliativas.
Um exemplo emblemático é o vídeo do deputado Nikolas Ferreira sobre a “taxação do pix”. Nele, o deputado critica a estratégia econômica, destacando várias promessas não cumpridas pelo governo. O fato de uma mensagem com esse tipo de crítica encontrar eco, mostra que setores da população percebem as políticas sociais do governo como insuficientes. A extrema direita, então, se aproveita dessa insatisfação para capturar o imaginário popular, posicionando-se como uma alternativa à “mesmice” do assistencialismo estatal. Ainda que suas propostas sejam, muitas vezes, antagônicas aos interesses da classe trabalhadora, o discurso de “liberdade” e “autonomia” seduz e se torna uma resposta aos ouvidos da população. A crítica se intensifica quando medidas como o aumento do salário mínimo ou transferências diretas são anunciadas sem um plano robusto de desenvolvimento econômico inclusivo. Para os trabalhadores, essa falta de perspectiva a longo prazo reforça a sensação de que não há uma saída viável para suas dificuldades no horizonte oferecido pelo governo, e a retórica populista da extrema direita ganha terreno. O que o deputado faz, de fato, é uma apropriação seletiva do assistencialismo estatal. Em vez de rejeitar completamente as políticas assistenciais, ele as utiliza de forma estratégica para ganhar apoio popular, especialmente entre as camadas mais vulneráveis da população. A crítica à “taxação do pix” e a ênfase no discurso de “liberdade” e “autonomia” podem ser vistas como um discurso de “liberação”, mas que, na prática, mantém o sistema de assistencialismo, com a diferença de que ele busca moldá-lo para seus próprios interesses ideológicos e eleitorais.
Essa é a estratégia de Nikolas Ferreira, que se apresenta como defensor dos trabalhadores contra um governo que, segundo ele, os mantém submissos e dependentes. O deputado aqui se apresenta como o tocador de flautas da famosa fábula: a classe trabalhadora, desiludida e em busca de mudanças reais, pode ser seduzida pelas falsas promessas da extrema direita. Lucy Parsons afirma: “O fato é que o dinheiro e não os votos […] que rege o povo. [..] é apenas um véu de papel que esconde os truques”.
Durante sua trajetória política, Nikolas Ferreira se posicionou contra medidas que poderiam melhorar a vida do trabalhador brasileiro. Ele foi contra o fim da escala 6×1, que permitiria aos trabalhadores terem mais tempo de descanso e qualidade de vida. Além disso, se posicionou contra propostas de taxação de grandes fortunas, um mecanismo que poderia reduzir as desigualdades sociais, e também foi contrário à isenção de impostos em itens da cesta básica, que impactaria diretamente às famílias de baixa renda.
Essas posições deixam claro de que lado ele está. Nikolas não representa a classe trabalhadora. Ele defende um projeto político que mantenha os ricos ainda mais ricos e coloca o peso da economia nas costas dos mais pobres. E isso é estratégico: ao criar narrativas como essa do Pix, ele tenta desviar o foco do verdadeiro problema – um sistema que favorece os bancos e grandes empresas enquanto mantém o trabalhador preso na precariedade. Isso reforça o que Parsons chama de “ilusão”, situação em que a classe trabalhadora é manipulada tanto pelos governantes quanto pelos oportunistas, sem se emancipar de fato. Essa lógica revela que, ao não enfrentar as condições estruturais de exploração, tanto as promessas vazias dos governantes quanto a retórica da extrema direita reservada para perpetuar o ciclo de dominação, dependência e profundas desigualdades. O verdadeiro protagonismo está nas mãos da classe trabalhadora organizada, que, com ação direta e poder popular, pode criar alternativas ao sistema opressor. Fica, então, a difícil tarefa para os anarquistas de implementar um programa que supere as propostas anestésicas e burocráticas do atual governo lulopetista, cujo verniz de assistência social é frágil e craquelante. Não é uma tarefa fácil, mas a pergunta é simples: como fazer isso?
Para os anarquistas, o apoio às reformas promovidas por Haddad só faz sentido se tais reformas realmente avançarem nos interesses e contribuírem para a melhora de vida dos trabalhadores . O que, ao meu ver – e depois de todos os argumentos deste artigo, o pacote fiscal de Haddad se configura em um ataque e mais dominação.
Diante de governos liberais ou sociais-democratas o apoio dos anarquistas é estratégico e varia conforme a conjuntura. Não se trata de apoiar ou rejeitar reformas de maneira automática, mas de avaliar se elas fortalecem a luta pela emancipação dos trabalhadores e a construção de uma sociedade libertária. O que importa para os anarquistas de ontem e de hoje são as mudanças genuínas que vêm “de baixo para cima”, “da periferia ao centro”, com trabalhadores se organizando de forma independente. Por isso, fica cada vez mais evidente que não há possibilidade de apostar no espontaneísmo. As massas não sairão de suas casas e irão automaticamente às ruas para construir um projeto de esquerda revolucionária e libertária, mesmo que estimuladas por coletivos e organizações. No Brasil, no caso do anarquismo, para que essa construção e direcionamento libertários ocorram, é indispensável a existência de uma organização política que aponte para um projeto de transformação social.
Essa visão ganha força em organizações como a Organização Socialista Libertária (OSL), a Coordenação Anarquista Brasileira (CAB) e a Federação das Organizações Sindicalistas Revolucionárias do Brasil (FOB) são destacadas por promover autogestão, solidariedade e ação direta, oferecendo uma alternativa concreta à lógica neoliberal e estatal. A simpatia conquistada por essas organizações entre os trabalhadores vêm de ações práticas que dialogam com as necessidades reais da população.
O que tem sido feito pelas organizações anarquistas, pensando principalmente no Brasil contemporâneo, é juntar forças, propagar ideias e criar uma atuação popular que combata esse pacote fiscal no que afeta o cotidiano dos trabalhadores e dos mais precarizados, ou seja, dos mais oprimidos. Além disso, em uma estratégia de médio prazo ou de maior conjuntura, busca-se criar um debate que questione a reforma trabalhista, como a promovida por Michel Temer em 2017. Em vez de focar apenas na questão do fim da escala 6 por 1, é importante problematizar e tornar o debate mais agudo, defendendo a revogação da reforma trabalhista. Isso não quer dizer que o fim da escala seis por um representa, de fato, um avanço significativo na qualidade de vida da classe trabalhadora. É o que Malatesta diria:
Quaisquer que sejam os resultados práticos da luta pelas melhorias imediatas, a utilidade principal está na própria luta. Com elas, os operários aprendem a ocupar-se dos seus interesses de classe, aprendem que o patrão tem interesses opostos aos seus e que não podem melhorar suas condições,— ainda menos emancipar-se — se não se unirem e se tornarem mais fortes que os patrões. Se conseguirem obter aquilo que querem, estarão melhores: ganharão mais, trabalharão menos, ou ao menos terão mais tempo e força para refletir sobre as coisas que lhes interessam. Logo, sentirão desejos maiores e necessidades mais amplas. Se não conseguirem, serão conduzidos a estudar as causas dos insucessos e a reconhecer a necessidade de maior união e energia.
Compreenderão, enfim, que, para vencer, o modo seguro e definitivo é necessário: destruir o capitalismo, a causa da revolução, da elevação moral do trabalhador e de sua emancipação.
Sempre que uma reforma ou movimento político seja originado pelo capitalismo-estatismo, pela máquina burocrática ou pelo progresso do Parlamento, não há um verdadeiro sentido. Há um efeito anestesiante, praticamente um entorpecente, que gera uma desmobilização da classe trabalhadora. Muitas vezes, com a mudança de governo ou de quem está no comando do Congresso, esses benefícios sociais e direitos são retirados na mesma velocidade com que foram votados, aprovados e implementados. Fica evidente que a classe trabalhadora não se sente empoderada, nem parte do processo. Malatesta, como vimos, já apontava isso de maneira clara. Em vez de dependerem de promessas governamentais, a classe dominada cria redes de apoio e espaços de resistência, desafiando o controle estatal e promovendo uma transformação radical. Essas práticas demonstram que por meio da organização horizontal e da solidariedade, é possível construir uma sociedade mais justa e equitativa. É uma tarefa árdua, longa e exaustiva, mas cada passo firme e concreto nos aproxima do objetivo. Entre avanços e retrocessos, perdas e vitórias, seguimos em frente. Porque, como em uma maratona, a chegada está sempre adiante.