A Política para Todos de Gabriela Prioli

Em seu primeiro livro, Prioli expõe o básico da nossa estrutura política. Para além das controvérsias da sua figura pública, ela traz uma contribuição significativa

Gabriela Prioli em uma apresentação no TEDx São Paulo | imagem: Yvã Santos

Estive por um bom tempo com um ritmo de leitura bem desacelerado, sem conseguir progredir naquela pilha de livros que ficam nos encarando e julgando – sim, vocês sabem como ela é. Nesse cenário fiquei especialmente animado com a leitura do livro Política é para todos, de Gabriela Prioli, tanto por retomar um ritmo bom de leitura depois de todos os revezes do mundo pós-pandemia quanto pelo conteúdo do livro e a importância de sua mensagem justamente nesse mundo, com todas as complexidades políticas que ele apresenta.

Falar sobre essa obra não é apenas falar sobre um texto de divulgação sobre política, inevitavelmente parte do assunto vai ser a autora. Além de uma intelectual – e agora escritora – da área do Direito, Gabriela Prioli é também uma figura pública, que como tal também traz suas controvérsias.

Prioli alavancou sua fama por meio de suas participações no programa televisivo O Grande Debate, da CNN, em que por algumas vezes ela se incumbiu do papel de representar a visão de esquerda, ou progressista, num debate contra um representante da direita, e particularmente aquela nova direita reacionária que estava à época talvez em seu auge. Ocasiões em que a esquerda na internet comemorava o que percebiam como vitórias suas nas disputas – embora debates não sejam assim tão simples de avaliar e declarar vencedores – e a ovacionavam como sua heroína. Por vezes o público cria expectativas em excesso com pessoas que se destacam e que parecem ter alguma concordância com suas visões. Mas não tardaria para a visão da esquerda da internet sobre Prioli mudar.

Pouco tempo depois de sua estreia, Prioli abandonou o programa, por conta das condições inadequadas de como ele funcionava. A partir daí começou a se destacar com um canal no Youtube em que fala sobre política trazendo a abordagem técnica do direito, e sob o lema de avaliar a política com “menos emoção e mais razão”. Crítica assídua do governo Bolsonaro, mas sem explicitar posições e filiações políticas, a youtuber comenta os acontecimentos da sociedade e entrevista os mais diversos representantes políticos do espectro democrático. Em sua carreira no Youtube e em outros programas da CNN, ela conquistou mais destaque e mostrou proximidade com outros famosos, como Anitta e Leandro Karnal. Atualmente já passa da marca dos 800 mil inscritos em seu canal, o que é um grande feito para canais de comentário político.

Sua atuação pública merece outros comentários, inclusive sobre uma polêmica em que se envolveu, mas antes disso cabe não demorar mais e falar sobre sua obra, pela qual se pode também conhecer muito da Prioli e seu modo de pensar, a contribuição intelectual que acompanha a sua figura de destaque.

Capa do livro da Gabriela Prioli

No seu Política é para todos  Prioli explica de modo acessível a parte mais concreta de como os sistemas políticos funcionam – em especial o nosso –, como se desenvolveram essas instituições na história e a sua importância. Cabe lembrar que vindo de uma carreira no Direito a autora traz um repertório sobre nossas leis e regulamentos, que são o que organizam de fato a política institucional.

Embora falando assim a coisa pareça muito técnica, ter um conhecimento do funcionamento real (e legal) da sociedade é essencial para uma atuação política, ainda que seja informal. Como reclamar de pautas diretas da população (como saúde, educação, segurança) sem saber quem é o responsável por esse assunto? Seria o governo federal ou o estadual? Prefeitos ou deputados? Quem se interessa por atuação política muitas vezes vai aprendendo o básico desses temas naturalmente, mas não de forma organizada. Prioli oferece uma explicação de forma clara e simples, o que pode resultar numa leitura leve e mesmo prazerosa. Claro, não são temas relaxantes ou particularmente divertidos, e eu creio que muitos não vão ter um apreço semelhante ao meu de conhecer essas regras políticas e jurídicas. Ainda assim, o texto ameniza temas densos e intercala informação puramente teórica com comentários sobre a história desses modelos sociais, e com lembretes de como aquilo se relaciona com nossa realidade.

A abordagem do livro é mais descritiva do que normativa. Ou seja, diferente do que a gente lê sobre política na maior parte do tempo, ela não coloca o enfoque em pregar uma visão ideológica/partidária, mas em descrever como as coisas são na prática. Ainda assim, a autora não deixa de se posicionar, e demonstra no livro seus valores, criticando o autoritarismo e fazendo uma defesa da nossa democracia representativa – claro, sem ignorar que ela precisa melhorar. Um trecho na introdução do livro1 sintetiza muito bem sua abordagem:

Como professora, percebi como é importante que os alunos ganhem confiança na análise de situações complexas, conseguindo assim elaborar e expor seus pontos de vista. Meu desejo é que cada um forme a própria visão de mundo, e não que incorpore a minha.

O livro nos explica diversos conceitos que usamos às vezes de forma vaga, como “cidadania”, “Estado”, os sistemas de governo e os regimes políticos. Entretanto, longe de ser algo abstrato e distante, ele nos aponta qual nosso papel nisso tudo, e de que formas podemos atuar, inclusive para conquistarmos mais participação nesse processo. Afinal, política não é apenas um conjunto de normas formais, mas, como diz Prioli, a política está ligada às “inúmeras formas de interação e de disputa entre indivíduos ou grupos que compõem aquela coletividade”.

Nas democracias modernas, uma das lógicas fundamentais que as organizam é o princípio da descentralização do poder, nos explica a autora. Em vista disso, nossa tradição política separa o poder em três: legislativo, executivo e judiciário. Nos importa enquanto cidadãos entender o que são os três poderes e qual sua função, por que é relevante dividi-los assim. Compreender quais são os atores políticos na sociedade e como eles a influenciam, inclusive no processo eleitoral. A ideia de um poder dividido passa por aceitar um outro, por entender que não se pode sozinho controlar tudo. Isso é importante porque muitas vezes nosso instinto quer esse controle total para nosso grupo, para nossa visão política, mesmo que com a melhor das intenções. Cabe aí lembrar que uma democracia é feita de diferentes, de forças que se contrapõem. E a grande conquista dela é que essas forças podem, ainda que discordando, conviver pacificamente com o outro. “Não existe democracia entre indivíduos exatamente iguais”, nos lembra Prioli. Se não fossemos diferentes a democracia nem seria necessária, mas ela é o espaço de disputa e de conciliação, de respeito ao adversário, já que no fim vamos ter que viver na mesma sociedade que ele. Do mesmo modo que a democracia preserva o adversário, é só nela igualmente que podemos ter a nossa própria posição.

Somos lembrados pelo texto que esses valores estão sob ataque. As democracias viveram uma crise em tempos recentes, com ascensão de líderes autoritários e antidemocráticos. Eles são o lembrete do perigo de perdermos nosso modelo democrático, e que tudo pode ficar muito pior. Temos um papel nisso, pois cabe a cada um de nós o esforço da convivência democrática com o outro. Estamos vendo onde o afastamento e o ódio podem nos levar, e não existe alternativa, é preciso mostrar para aquele adversário que tanto nos desagrada que nós temos semelhanças, que pode haver tolerância. Nós precisamos trazer essas pessoas de volta para a democracia.

De modo geral, a leitura nos faz enxergar com mais carinho a nossa democracia representativa. Às vezes não percebemos o quanto temos de conquistas, de direitos, liberdades, que em outras épocas históricas não eram óbvios. A apreciação nunca é ingênua, Prioli lembra que “reconhecer avanços não quer dizer que não precisamos mais avançar” .

Ainda que com essas ressalvas levadas em conta, muitos leitores adeptos de uma perspectiva mais revolucionária vão estranhar uma defesa assim do status quo das instituições. Muitos dos quais também já possuem uma desconfiança com Gabriela Prioli. Ela é um dos casos em que grupos de esquerda mais radical vão identificar a figura do “isentão”. A atitude de não se posicionar e se pretender isento (muitas vezes falsamente) é reprovada por quem defende que é indispensável uma atuação política firme. E a postura de Prioli de se esquivar de uma posição ideológica clara parece encaixá-la bem nessa categoria. Claro que essa preocupação é muito válida. Numa sociedade com tantas injustiças e sofrimento é necessário tomar um lado e tentar ser parte da solução. E sabemos também que existem aqueles que usam uma retórica de imparcialidade para defender interesses específicos e nada isentos, geralmente interesses de direita que por pudor não se quer mostrar abertamente. Aqui, porém, o caso pede que se avalie com mais nuance.

Para quem acompanha seu conteúdo não há dúvidas de que Gabriela Prioli não é uma defensora tímida da direita. É frequente e explícita sua oposição a Bolsonaro e à extrema direita. E isso é coerente com a relativa neutralidade que ela assume, pois defender a diversidade democrática de ideias passa por combater quem está fora do campo democrático e quer mesmo destruir esse modelo. Também não se pode acusá-la de ignorar os problemas sociais, que são sempre tematizados nas suas análises. É possível não ter um partido e ainda assim ter valores e se posicionar em pautas pontuais defendendo o lado da população e dos elos mais fracos. Isso mostra que a “isenção” não é total. E é importante que haja alguém que atue dessa maneira, pois ela está no melhor lugar para conseguir dialogar fora da bolha, trazer pessoas que não são simpáticas a um ou mais partidos para que elas entendam também a importância de pautas sociais.

Igualmente, o foco do seu livro numa exposição descritiva cumpre um papel que precisa existir. É bom que tenham exposições normativas defendendo ideais, e é bom que tenham também conteúdos mais técnicos com afastamento e objetividade. Dotada de conhecimento jurídico, Prioli se adequa bem a esse papel. Tanto no seu livro quanto em suas contribuições audiovisuais.

A polêmica do desfile de Carnaval: estamos sendo justos?

Para refletirmos sobre a autora e sua recepção, há um exemplo pertinente bem recente. No meio tempo em que eu lia o Política é para todos e preparava este texto, Prioli se envolveu em uma polêmica que de certo modo também mostra sua relação com o público de esquerda. Convidada para desfilar como musa do carnaval, ela é criticada porque teria em uma entrevista demonstrado uma visão estereotipada sobre a festa, reforçando que mesmo com formação universitária também pode ocupar um espaço de sambista. Naturalmente esse tipo de estereótipo deve ser combatido, e isso motivou críticas à Gabriela Prioli.

Em controvérsias assim, entretanto, eu tenho o costume de buscar ouvir um mínimo dos dois lados antes de me posicionar, evitando julgar apressadamente. Buscando sobre o assunto encontrei uma entrevista posterior, em que Prioli explicou o caso. Enquanto boa parte das críticas a ela seriam porque ela estaria levantando e repetindo um estereótipo que não existiria mais, Gabriela nos explica que não foi ela quem o tematizou, mas o próprio entrevistador disse que ela não tinha o estereótipo da musa, ao que ela reagiu e rejeitou esses moldes. Só que na versão publicada da entrevista não é transcrita a pergunta, apenas a resposta dela – embora conhecendo esse contexto se pode perceber mesmo que esse tema parece que lhe foi apresentado, que não partiu dela.

Sei que em polêmicas divisivas como esta muitos não vão acreditar na versão dela e manterão as críticas; e, claro, existe a possibilidade de estarem corretos. O que essa situação me faz pensar apenas é o quanto uma pessoa ser ou não alvo desse tipo de reprovação tem a ver com os grupos a que ela se filia ou não. Desde a entrevista inicial se percebe que Prioli está combatendo o estereótipo e não defendendo, e o motivo de recriminá-la seria que esse estereótipo nem existiria mais e era apenas ela que o trazia de volta. Existe uma falta de caridade em buscar a pior interpretação possível e lançá-la ao tribunal da internet. Fico pensando sinceramente se isso ocorreria caso fosse outra pessoa dizendo exatamente o mesmo, alguém mais explicitamente ligado e defensor dos mesmos grupos e visões políticas desse público que no caso real não a recebeu bem. Vejo pelo contrário repetidamente que quando alguém mais alinhado comete erros reais e muito mais graves em seus discursos eles são defendidos e seus erros ponderados e amenizados. Será que estamos sendo justos?

É mais fácil compreender esse tipo de disputa com algum afastamento, tendo o mesmo olhar descritivo que a autora traz em seu livro. De fato, o tipo de entendimento das estruturas políticas que o texto nos apresenta nos ajuda a ter mais clareza em disputas ideológicas do dia a dia. Como os grupos políticos se organizam e como eles se comportam? Conhecer isso leva a entender porque certas esferas na internet (de que nós podemos ou não fazer parte) avaliam negativamente uma pessoa que não faz parte dos seus grupos, e leva a entender como essas disputas e discordâncias se demonstram em uma escala maior, no poder público de uma sociedade. O problema é que muitos não conseguem fazer esse afastamento, estão apegados demais a seus agrupamentos e perspectivas particulares, e aí não conseguem uma aproximação com a Prioli, que tem tanto em comum com eles em muitas pautas, e muito menos vão conseguir se aproximar de grandes parcelas da população que discordam deles em muitos assuntos. E essas são pessoas que irão, por exemplo, decidir uma eleição ao se aproximarem mais ou da esquerda ou da direita.

Concordando ou discordando (como nos permite a boa democracia) das abordagens e dos valores da Prioli, ela é uma figura com uma contribuição única na nossa política atual, e o seu livro apresenta bases teóricas que de qualquer modo, e seja qual for a posição do leitor, acrescenta algo para ele, aproxima-o da política. Seu título quer reforçar isso: “política é para todos”, para os mais diversos grupos em uma sociedade. Isso que parece tão distante para a maior parte da população precisa ser dela, precisa empoderá-la.

Autor

  • Bacharel em filosofia, largou um mestrado em filosofia da ciência. Teve formação bem tradicional, mas fugiu para a filosofia analítica. Possui interesse em diversas áreas filosóficas, questões políticas, sociais. Entusiasta da ciência no geral, da economia, e do bom diálogo aberto e democrático com o diferente. Atualmente, está mudando de área de atuação, estudando programação e tentando escrever romances no tempo livre.

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