W. B. Yeats e a Magia

O poeta disse acreditar “na prática e filosofia da magia”, segundo doutrinas que falam da mudança e expansão dos limites da mente

Memorial a Keats, na vila de Drumcliff, condado de Sligo, na Irlanda | imagem: Keith Ewing

Introdução

Apesar de bastante conhecida, a relação da vida e da obra do poeta, dramaturgo e senador irlandês W. B. Yeats (1865-1939) com a magia é ainda um objeto profícuo e aberto para pesquisa e discussão. Neste breve artigo vamos abordá-la, conquanto de forma introdutória e livre.

Veja também:
>> “‘Eros e Psique’, de Fernando Pessoa: poesia e alquimia“, por Isabella Lígia Moraes
>> “Delfi Nieto-Isabel: ‘Estudar magia é crucial para entender o humano’“, entrevista por Duanne Ribeiro

Em uma carta, Yeats disse certa vez que tudo que fazia, inclusive a atividade literária, girava ao redor da mística e da magia:

Se eu não tivesse feito da mágica meu estudo constante, não poderia ter escrito uma palavra sequer do meu livro sobre Blake, assim como The Countess Cathleen jamais teria existido. A vida mística é o centro de tudo que eu faço, de tudo que eu penso e de tudo que escrevo. Ela tem para o meu trabalho a mesma relação que a filosofia de Godwin tem para o trabalho de Shelley e, tenho me considerado uma voz acerca do que acredito ser um grande renascimento – a revolta da alma contra o intelecto – começando agora no mundo. (Silva Andrade, 2007, p. 88, nota 55)

Na realidade, isso não era muito surpreendente para a época em que Yeats viveu e escreveu. Desde meados do século XIX (Bamford, 2018), a Europa e os EUA presenciaram um verdadeiro renascimento do ocultismo, em reação direta ao materialismo, ao darwinismo e ao cientificismo disseminados nos meios intelectuais. O centro de força desta reação encontra-se nítido nas obras de E. Lévi sobre ocultismo assim como na teosofia de Blavatsky (Moura, 2001, p. 42), além do espiritismo, demasiadamente popular. Renascimento do qual Yeats fez parte e é precisamente à luz desse contexto que precisamos encarar a relação da sua vida e da sua obra com o tema da magia.

Yeats e a Ordem Hermética da Aurora Dourada

Por volta de 1885, Yeats, sob influência direta da literatura teosófica em voga, fundou a Dublin Hermetic Society (Sociedade Hermética de Dublin), conforme Fennelly (1975, p. 287). Em 1887, em Londres, chegou a conhecer pessoalmente Madame Blavatsky, de quem teve e guardou uma impressão assaz positiva. Contudo, em 1890 foi excluído dos círculos teosóficos ingleses devido a seu interesse ardente por magia, o qual não era compartilhado pelos demais membros da Sociedade Teosófica (James, s/d). Não obstante, manteve igualmente vivo o interesse pela tradição espiritual hindu, presente na teosofia, e chegou a publicar e comentar ulteriormente materiais clássicos relacionados ao assunto.

Praticamente no mesmo período em que saiu do mundo da Sociedade Teosófica (1890), Yeats adentrou na famosa Ordem Hermética da Aurora Dourada (Ohad), em inglês, Hermetic Order of the Golden Dawn. O que era essa ordem, afinal?

As versões de sua origem não são claras e são sujeitas a polêmicas. Segundo Fennelly (1976, p. 291), em uma das versões existentes, certos manuscritos cifrados teriam sido encontrados por volta de 1884 por W. W. Westcott em uma banca de livros. Em outra versão, eles teriam sido encontrados por R. W. Woodman – que os passou para Westcott – entre os papéis de Fred Hockley, maçom e membro da Societas Rosacruciana in Anglia (SRIA), mas a autoria dos textos na realidade seria de Kenneth Mackenzie, um maçom, criptógrafo e membro da SRIA interessado em magia prática (cf. King, 1996, p. 23; Regadie, 2023, p. 23-24).

Já Howe (1900) constrói uma narrativa um pouco diferente dos fatos. Em 1887, Westcott teria conseguido os manuscritos cifrados, que poderiam ter como fonte o reverendo A. F. A. Woodford ou Kenneth Mackenzie. Westcott decifrou os manuscritos e os enviou os manuscritos para seu amigo maçom Samuel L. “MacGregor” Mathers, para que o ajudasse na sua difusão. Nesses manuscritos havia a descrição de rituais de iniciação rosacruciana, correspondentes aos graus de Neófito, Zelador, Teórico, Prático e Filósofo (Howe, 1990). Esses rituais lembravam os da própria SRIA, mas com influência evidente do sistema enoqueano de John Dee, dos escritos de místicos teosóficos como Pordage e Jane Leade, além dos do próprio E. Levi.

Entre os manuscritos teria sido encontrada também uma folha cifrada com o endereço de uma tal “Fräulein” Ana Sprengel, supostamente uma iniciada ligada a um ramo secreto do rosacrucianismo alemão. Em 1888 Westcott, autorizado por supostas cartas trocadas com Ana Sprengel neste ínterim, fundou em Londres, junto com Woodman e Mathers, o Templo de Ísis-Urânia da Ordem Hermética da Aurora Dourada (Sablé, 2006, p. 128; Howe, 1990).

A partir de 1892 foi acrescentado aos cinco graus iniciais da Ordem o sexto grau, o de Adepto Menor, com isso criou-se a Segunda Ordem, a da Rosa Vermelha e da Cruz Dourada, a qual levou o grupo a uma guinada franca na direção da magia. Mathers, com sua varinha mágica e inteligência criativa à frente da organização, criou novos rituais e as técnicas de magia prática, sob alegação de tê-las obtido em contato com Chefes Secretos, clarividência, projeção astral, vozes internas e técnicas com objetos (mesa, anel e disco) que lembravam as práticas espíritas (King, 1996, p. 24).

Da Ohad fizeram parte, além de Yeats, outras figuras ilustres, tais como: Maud Gonne, nacionalista irlandesa e musa inspiradora de Yeats; Florence Farr, atriz, conselheira de Bernard Shaw; Arthur Machen, escritor de fantasia; (talvez) Bram Stoker, escritor, autor de Drácula; Violet Wirth (Dion Fortune), escritora e ocultista; Sam Rohmer, escritor; Aleister Crowley, mago, fundador da Astrum Argentum (Estrela de Prata) e de outras ordens; Moina Mathers, esposa de MacGregor Mathers e irmã do filósofo Henry Bergson; e Arthur E. Waite, escritor e ocultista.

Como Yeats adentrou na Ohad? Em 1890 ou um pouco antes disso, ele conheceu na sala de leitura do Museu Britânico aquele que seria o pensador e líder mais importante da ordem, “MacGregor” Mathers, um ocultista bastante excêntrico, porém erudito, enérgico e criativo. Em outro encontro, na casa de um amigo comum em Londres, Mathers teria exibido para Yeats seus dons psíquicos e mágicos, e isso deixou o poeta impressionado e com o desejo de ingressar na Ordem Hermética da Aurora Dourada (James, s/d; Fennelly, 1976, p. 286 ss).

Yeats rapidamente concluiu os graus básicos e adentrou na Segunda Ordem. Dentro da Ohad, era conhecido pela divisa “Demon est deus inversus”, o “Diabo é o Deus invertido”. Além de uma possível referência ao conceito neoplatônico de “daemon”, aquele era o título de um capítulo da obra A Doutrina Secreta de Blavatsky que Yeats conhecia muito bem. Subjacentemente, existia uma provável referência à doutrina cabalística e hermética da unidade dos contrários e da analogia inversa, onde o Mal não é absoluto, mas um elemento necessário dialeticamente para a existência do Bem, tal como sombra e luz (Harper, 2018, p. 210).

Consta que o grande rival de Yeats dentro da Ohad foi o famoso e polêmico ocultista inglês Aleister Crowley, na época um jovem de múltiplos talentos intelectuais e artísticos, membro da Ordem desde 1898. Crowley era apoiado por Mathers para ascender rapidamente ao grau de Adepto Menor, mas sem o aval dos membros da Loja de Londres, e isso ajudou na cisão interna do grupo, além da rejeição ao autoritarismo de Mathers, que estava em Paris cuidando de outra loja da Ohad. Os membros da loja londrina desconfiavam de Crowley, cuja reputação na imprensa inglesa já era péssima, e consideravam que ele, em última análise, perverteria os mistérios da Ordem.

No dia 19 de abril de 1900 ocorreu um conflito quase folclórico na loja londrina, situada na rua Blythe Road. Crowley, a mando de Mathers, chegou de manhã vestido de forma teatral para buscar manuscritos importantes ali dentro, mas foi bloqueado por funcionários e depois por Yeats. A polícia foi acionada e Crowley desistiu da empreitada (Howe, 1990). Vale a pena ressaltar, é puramente fictícia a versão que circula na internet de que Yeats teria chutado ou agredido fisicamente Crowley no episódio!

A Ohad começou a se dividir e desabar justamente nesse momento, com a expulsão de Mathers, cuja liderança era considerada tirânica por vários membros, e na saída de Westcott, sobretudo devido às acusações do próprio Mathers, em fevereiro de 1900, de ter cometido fraude na correspondência com Ana Sprengel, a qual provavelmente nunca existiu (Howe, 1990). Todavia, independente das polêmicas, fraudes e suspeitas, é inegável o grande papel da Ohad no renascimento da magia dentro da tradição esotérica ocidental ao longo do século XX.

Yeats permaneceu na Stella Matutina (Estrela da Manhã), uma ordem derivada da Aurora Dourada, até 1922. Ele não era apenas um crente, e sim um praticante dedicado da magia. Seus diários e objetos mágicos, que estão hoje preservados na Biblioteca Nacional da Irlanda, em Dublin, comprovam seu conhecimento minucioso do assunto (Rocha, 2016).

Yeats escreveu:

Eu acredito na prática e filosofia do que concordamos em chamar de magia, desde que devo chamar de evocação de espíritos, mesmo que eu não saiba o que são, no poder de criar ilusões mágicas, nas visões daquela verdade que reside nas profundezas da mente quando os olhos estão fechados; e eu acredito em três doutrinas, que passaram de geração a geração, se não me engano, desde o início dos tempos, e que formam a base de quase todas as práticas mágicas. Essas doutrinas são:

Que os limites da mente nunca cessam de mudar, e que muitas mentes podem convergir, por assim dizer, e criar ou revelar uma única mente, uma única energia.

Que os limites da nossa memória são os mesmos mudando, e que nossas memórias formam parte de uma grande memória, a memória da própria natureza.

Que esta grande mente e esta grande memória podem ser evocadas por meio de símbolos. (Yeats, 2018, p. 23-34)

Nesse texto, Yeats praticamente repete as ideias dos magos do passado, cujas origens distantes remontam tanto ao ocultismo renascentista quanto à teurgia neoplatônica, sobre a existência de uma Alma do Mundo (a Luz Astral de E. Levi), na qual se registrariam ademais todos pensamentos e sentimentos, e que os símbolos conformam, devido às analogias e correspondências, uma linguagem supra-humana revelada que permite uma comunicação e uma atuação por meio de rituais e técnicas específicas entre os diferentes níveis de realidade.

Mesmo com o declínio da Ohad, Yeats não perdeu, evidentemente, o interesse pelo mundo do oculto. Em 1917, sua esposa George Hyde-Lees começou a se comunicar com supostos espíritos através de uma espécie de escrita automática, cujas frases desconexas Yeats tentava organizar e dar sentido lógico e textual.

Em 1919 o processo passou a ocorrer através de falas pelo sono, que Yeats anotou em 50 cadernos e que foram a base para sua obra metafísica e esotérica Uma Visão, publicada em 1925 e em uma edição revisada em 1937. Nela, existe um sistema que integra a psique humana com o universo, com uma astrologia poética ilustrada por gráficos e diagramas, construídos sobre uma notável erudição literária, filosófica e esotérica. Nesse sentido, a nosso ver, Yeats não era só um homem do revival oculto do final do século XIX e começo do século XX, mas talvez um continuador digno de Ficino, Pico della Mirandola, Bruno, Paracelso e outros magos eruditos da Renascença.

Referências bibliográficas

BAMFORD, Christian. Blavatsky, Rudolf Steiner, and the Perennial Tradition, 2018, Disponível In: Blavatsky, Rudolf Steiner, and the Perennial Tradition – Embodied Philosophy

FENNELLY, Laurence. W.B. Yeats and S. L. MacGregor Mathers. In: Yeats and the occult, George Mills Harper. Londres: Macmillan, 1976, pp. 285-306.

JAMES, Jamie. W.B. Yeats, Magus, In: Lapham’s Quarterly, s/d. Disponível In: W.B. Yeats, Magus | Lapham’s Quarterly (laphamsquarterly.org)

HARPER, Margareth. Dobbs and the Tiger: the Yeatses’ intimate occult. In: Ilha do Desterro v. 71, nº 2, p. 205-218, Florianópolis, mai/ago 2018.

HOWE, Ellie. Los Magos da Golden Dawn. Buenos Aires: Kier, 1990.

KING, Francis X. Magia: a tradição ocidental. Madrid: Edições del Prado, 1996.

MOURA, Eliane Silva. O ocultismo do século XIX: uma hermenêutica cultural. Campinas: IFCH/Unicamp, agosto de 2001, Textos Didáticos n. 44.

REGARDIE, Israel. A Golden Dawn: A Aurora Dourada. São Paulo: Madras, 2023.

ROCHA, Servando. Las armas mágicas y el diario secreto de W. B. Yeats, In: Agente Provocador, 2016. Disponível In: Las armas mágicas y el diario secreto de W. B. Yeats — Agente Provocador

SABLÈ, Erik. Dicionário dos Rosacruzes. São Paulo: Madras, 2006.

SILVA DE ANDRADE, Katia Maria. Lendo William Butler Yeats em português: uma análise descritivo-comparativa de traduções de peças irlandesas. Salvador: Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, 2007. (Dissertação de Mestrado)

YEATS, William Butler. Magia, compilado por Matías Battistón. Buenos Aires: Interzona Editora, 2018.

YEATS, William Butler. Swedenborg, Mediums and the Desolate Places, original de 1914. Disponível In: Visions and Beliefs in the West of Ireland: Swedenborg, Mediums and the Desolate Places (W.B. Yeats) (sacred-texts.com)

YEATS, William Butler. Poesía reunida. Valencia: Editorial pré-textos, 2010.

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