O taoísmo é uma filosofia milenar que nos ensina de modo prático a superar e integrar a dualidade

Ao longo de nossas diversas experiências de vida, temos o hábito de nos apegar a um determinado aspecto em detrimento do outro. É como se a nossa mente vagasse na superfície das ondas de um oceano, ora se apegando a um aspecto, ora a um outro, sempre de modo inconstante e instável. Em algum momento, você já sentiu que a realidade perdeu o seu sentido de ser? Como se estivesse num lugar inóspito e absurdo, mergulhado num poço escuro, ou mesmo sufocado num mundo caótico de tantos estímulos externos que mal consegue sentir, pensar e refletir com serenidade? Às vezes, sua mente fica tão dispersa que nem percebe o que é importante, aquilo que é essencial e intrínseco à sua vida. Ou seja, quando várias situações aparecem sucessiva e vertiginosamente a ponto que você se torne incapaz de distinguir o que é essencial e o que não é. Eis o que é a condição de nossa mente.
Veja também:
>> “Essa ânsia de escavar à força – três poemas inéditos do Osso Vazio“, por Chiu Yi Chih
>> “O imortal do Sul da China e um mortal do Norte do Brasil – traduzindo e explicando o Zhuangzi”, por Giorgio Sinedino
A sensação de inconsistência que não é senão algo que decorre da inconstância interna e externa de nossa mente transforma todas as coisas em meras banalidades. Não sei se você já percebeu isso. Eventualmente quando, após a conversa com um amigo ou depois de um encontro com um colega de trabalho, ou em qualquer situação do dia a dia, você começa a sentir que esqueceu de dizer algo importante ou de ter ignorado algum aspecto essencial do que foi vivido. No fundo, isso que chamo de essencial só poderá ser percebido e sentido se a nossa mente estiver atenta e flexível a ponto de estar porosamente aberta às sutilezas e surpresas do fluxo da vida. Por que nos prendemos a um determinado padrão fixo? Se observarmos a nossa mente, veremos que somos limitados por certos condicionamentos e hábitos preestabelecidos.
Sentimos que tais condicionamentos nos deixam incapazes de fluir com as circunstâncias da vida. Parece que somos arrastados e governados por inúmeras vicissitudes. É nesse momento que você já deve ter sentido um apego a uma determinada ideia, crença ou sentimento. Entretanto, ainda que estejamos agarrados a uma determinada coisa, gostaríamos de nos desprender dela. Porém, esse esforço de tentar se desapegar também provoca uma ação forçosa, um esforço demasiadamente artificial no sentido de se livrar de todo peso do problema.
Ora, tanto o apego como a tentativa obstinada de desapego nos levam cada vez mais a um fenômeno curiosamente paradoxal: ficamos mais dependentes de nossos padrões de ação, pensamento, sentimento e crença. Ficando cada vez mais compulsivos e incapazes de nos desprender de certas amarras, tentamos cada vez mais nos desapegar. Entretanto, quanto mais nos esforçamos, mais ficamos apegados. No entanto, o que gera tanto apego em nós? Ao examinarmos essa questão internamente, percebemos que muitas de nossas sensações, emoções e pensamentos compulsivos decorrem de uma carência profunda, de uma insatisfação crônica, e, desse modo, como forma de compensação, criamos uma suposta sensação de falso bem-estar, isto é, para nos sentirmos seguros, nos agarramos a certos bens como fama, poder, riqueza, pessoa amada etc. Contudo, se você praticar a Não-Ação e seguir a Naturalidade, agirá de maneira adequada e fluirá de acordo com os acontecimentos. Agindo com a plena consciência e não mais de acordo com a intenção deliberada, deixaria de lado o excesso da racionalidade pragmática-calculista que apenas visa à satisfação de interesses e desejos caprichosos. Largaria também o peso da artificialidade do ego parcial e limitado.
Ora, a artificialidade surge na medida em que se distanciando da Naturalidade, nos submetemos às convenções superficiais. No entanto, se soubermos agir de acordo com o que é essencial, genuíno e autêntico, ou seja, como diz Laozi no capítulo 23 do Dao De Jing, de acordo com a natureza do Dao, estaremos mais integrados e sintonizados com o Sopro Primordial (元气-yuánqì, cuja natureza é constante, eterna e inesgotável.
É preciso compreender que os seres humanos se tornam engessados em regras e formalidades ao longo da vida, perdendo a espontaneidade autêntica, o vigor e a força originária da vida. Com o objetivo de se imporem a si mesmos uma espécie de autoidealização, criam valores normativos e dogmáticos, e consequentemente, esquecem do “fruto”, daquilo que é o mais verdadeiro. Tanto na antiguidade como nos dias atuais, as pessoas se apegam à “flor” (aparência) e ao “dissolvido” (supérfluo) e ignoram o que é essencial na existência. Por isso, Laozi também no capítulo 12 do Dao De Jing diz: “o Sábio realiza pelo ventre e não pelos olhos: afasta aquilo e alcança isto.” Nesse sentido, basta desviarmos das aparências exteriores e superficiais para que possamos voltar à raiz do Dao, à fonte originária da consciência, do espírito e da vida. Eis a tarefa do homem taoísta, daquele que seguindo a Virtude Misteriosa, se torna um recém-nascido impregnado de Sopro Quintessencial (精气-jingqì).
Segundo o filósofo e comentador clássico Wang Bi, é preciso que estejamos em sintonia com o Supremo Dao, uma vez que ele é a Grande Imagem que engloba todas as coisas. O Supremo Dao é informe e a sua natureza é ilimitada. Ele não possui gostos e predileções nem quaisquer limitações e, por isso, todas as coisas seguem o fluxo do Dao sem serem impedidas. Por isso, no capítulo 35, Laozi diz: “Conserve a Grande Imagem e o mundo fluirá (tiānxiàwǎng-天下往). Fluirá com imenso equilíbrio sem causar prejuízo”.
O Dao está além das oposições. Não é calor nem frio. Não é quadrado nem redondo. Não é isso nem aquilo. Em sua vasta amplitude, abarca as miríades de manifestações e por isso se chama Grande Imagem. A maioria das pessoas somente acredita naquilo que vê e percebe pelos sentidos e, por essa razão, se apega às aparências externas. Por exemplo, comparado com as melodias das músicas e os sabores das iguarias, o Dao nos parecerá como algo quase insípido. Laozi observa que “músicas e iguarias estancam o peregrino” e “aquilo que se origina do Dao é insípido”. Com efeito, como nos apegamos às aparências superficiais, às pequenas imagens, ignoramos a natureza sutil e grandiosa do Dao, cuja eficácia é inesgotável. Como ressalta Su Zhe, a comida e a música são efêmeras, mas o Dao, devido à sua inesgotabilidade, jamais findará. Além disso, o Dao não faz diferenciações e não possui gostos nem aversões. De maneira semelhante, o sábio que age no Dao também considera todos com equanimidade e não produz discriminações. Jamais age movido por caprichos e juízos parciais. O sábio não afirma nem suprime, não glorifica nem despreza. É de sua natureza ser englobante.
Parecem insípidas e insignificantes as ações do sábio na opinião da maioria das pessoas. É porque a multidão somente valoriza os bens visíveis, externos e efêmeros. Contudo, o Dao, perdurando na sua Constância, possui uma inesgotável potência de energia perene e revitalizante. É por esse motivo que podemos considerá-lo como a Grande Imagem, ou, como Laozi nos diz no capítulo 41, a grande imagem não possui forma, ou ainda no capítulo 14, é a forma da não-forma (无状之状-wú zhuàng zhīzhuàng), a imagem do não-existente (无物之象-wúwù zhīxiàng), o indistinto (惚恍-hūhuǎng).
Portanto, é necessário que abracemos a essência do Todo e retornemos à Natureza Originária, deixando a visão limitada e parcial. Agindo sem ser movido pelo apego às formas externas e aos conceitos polarizados de bem e mal, deixaremos de privilegiar apenas aqueles homens considerados virtuosos, já que isso provocaria invejas e rivalidades. Deixaremos também de privilegiar os bens valiosos, uma vez que tal atitude estimularia a ganância e o excesso dos desejos.
É nesse sentido que o governo do sábio “conduz sempre o povo ao Não Saber e ao Não Desejo. Jamais deixa os homens sagazes atuarem com audácia.” (capítulo 3 do Dao De Jing). Isso significa imparcialidade e moderação, ao invés de parcialidade e intemperança. No capítulo 27, Laozi sublinha que o “sábio é constante e bondoso. Socorre as pessoas sem nunca abandoná-las. Sempre é bom em resguardar as coisas sem rejeição. Eis o que é seguir a Iluminação”. Agindo de modo imparcial e guiado pela visão do Todo, ele compreende, aceita e inclui a diversidade de toda espécie humana. Por isso, ele nem terá de utilizar mecanismos artificiosos para beneficiar os seres humanos, visto que já está enraizado na Naturalidade e, portanto, não tenta agir
intencionalmente como um bondoso. Em outras palavras, as suas ações e ensinamentos se propagam de maneira natural no estado de Não-Mente (无心-wúxīn), a saber, num estado de mente esvaziada de apegos.
Com a compreensão iluminada que não discrimina os bondosos e os não-bondosos, o sábio se torna útil e benéfico para todas as pessoas. Como não age pelos interesses egoicos, se torna o “modelo do mundo” (capítulo 28) no qual as pessoas podem depositar a sua confiança. Tornando-se o modelo do mundo, “impecável, com a Constante Virtude”, torna-se capaz de assumir a responsabilidade diante de todos. Justamente porque ele não age mais para si próprio (capítulo 7), recua e esquece de si, e por isso mesmo consegue atuar com eficácia. Tratando de maneira equânime todos os seres sem nenhuma discriminação, não se serve mais de “medidas”, “fechaduras” e “palavras”, ou seja, de quaisquer artifícios estratégicos com vistas à manipulação e dominação. Abandonando a mente astuciosa e sagaz, ele age com Naturalidade e retorna ao estado de simplicidade (capítulo 28), propiciando na sua “grandiosa regência” um estado de tranquilidade e harmonia.
Assim, segundo Su Zhe, nesse estado de simplicidade originária, não haverá discórdias, separações, dualismos e distinções, pois o sábio na sua regência harmoniosa considera o mundo como sendo parte de si próprio e intrínseco à essência da totalidade do Dao. Nesse aspecto, sem detestarmos o que é inferior e sem ansiarmos pelo que é superior, com a virtude da equanimidade, poderemos abraçar a totalidade de todos os fenômenos da Vida. É somente quando abandonarmos a mente artificiosa e discriminativa que seremos capazes de retornar ao Sublime Vazio, tornando-se o “vale do mundo” tal como o recém-nascido cheio de eficácia virtuosa e de potência iluminadora. É somente a partir daí que agiremos de modo autêntico em harmonia com a natureza e com todas as criaturas do universo.
Referências bibliográficas
Laozi, A sabedoria de Dao De Jing / Daodejingdezhihui 道德经的智慧 (com comentários dos comentadores clássicos chineses Wang Bi e Su Zhe – traduzido por Huang Xian Sheng). Beijing: Xinshijiechuban, 2016.
Laozi, Dao De Jing; tradução de Chiu Yi Chih . São Paulo: Editora Mantra, 2017.