O mundo me olha, logo, existo

A psicanalista Dorli Kamkhagi fala sobre as concepções atuais da velhice e sobre a valorização dessa fase da vida

Como envelhecemos hoje? Como interpretamos a velhice, tanto os idosos, protagonistas dessa peça, quanto família, amigos, o próprio repórter — os coadjuvantes? Essa divisão que criei (personagens principais, personagens secundários) deve ser sustentada ou somos todos envolvidos no mesmo esforço? Capitu levanta o tema em razão do lançamento recente do livro Psicanálise e Velhice (via Lettera, 2009), da Dorli Kamkhagi. A psicanalista responde à revista sobre como os parentes podem ajudar o idoso a viver melhor essa fase da vida e as possibilidades de novas experiências que ainda existem. Ao lado dessa entrevista, Paula Caroline Iglesias, responsável pelo Residencial dos Girassóis, em São Paulo, comenta sobre o cotidiano e expectativas dos idosos com quem convive.

Kamkhagi coordena o Grupo de Gênero do Amadurecimento do Instituto de Psiquiatria, do Hospital das Clínicas de São Paulo, onde atende pacientes com mais de 55 anos. No livro, reúne informações de uma pesquisa de cinco anos, com dados de cinco pacientes do Grupo e de sua pesquisa para o mestrado em Gerontologia. Eu lhe falei da minha experiência com a velhice. Contei uma história de fatalismo e ela me devolveu uma de esperança. Assim: os meus avós tem mais de 75 anos; meu avô teve um Acidente Vascular Cerebral e nunca mais andou, minha avó tem a força e a persistência únicas para cuidar dele. Embora a desistência seja uma reação frequente para uma série de problemas não-relacionados. Ela diz que não tem sonhos, ele diz que é melhor morrer. Mas Kamkhagi disse o seguinte:

Os teus avós tem razão, quando as dores se tornam difíceis muitas vezes nem conseguimos realizar nossos sonhos e quem diria continuar a sonhar. Fico pensando em meus pacientes que dizem que tem projetos e metas para suas vidas, e que, embora a velhice para alguns represente uma metáfora de morte, ela também simboliza a vida. Uma vida que foi e teve um trajeto e que pode e deve ser respeitada e, por quê não? Mudada.

Penso no filme Elsa e Fred, em que a paixão de viver e o encontro de duas pessoas neste momento de quase finitude também foi vivida de uma maneira com tanta vida, plena de libido e Eros, não somente no sentido sexual, mas uma libido que significa o verdadeiro encontro entre as pessoas, que se permitem estabelecer trocas e vivenciar transformações. Este é o verdadeiro sentido da vida: as mudanças, o repensar, o deixar de lado antigos medos para poder de desconstruir e depois se construir novamente.

Quem são esses idosos, quais seus problemas, o que esperam

De acordo com Kamkhagi, “em outros momentos, se entendiam os idosos de diferentes formas. Ora eram vistos como sábios e guardiões da cultura e memória da sociedade; ora eram isolados, viviam esta fase da vida de uma maneira quase terminal. Nos últimos anos, começou a haver uma maior preocupação com a longevidade. Passaram a pensar em leis, aposentadorias, planos que cuidem dos idosos. Mas ainda vivemos dificuldades, a velhice é vista como algo que aterroriza e, portanto, muitas vezes, os idosos se sentem excluídos e vivem exclusões sociais”.

O Residencial dos Girassóis pode nos servir para explorar esses sentimentos. A situação é múltipla, segundo Paula Iglesias: “os mais lúcidos fazem amizade com outros igualmente lúcidos, os mais confusos se relacionam ocasionalmente, porém, sem vínculos de amizade ou lembrança de nomes. Alguns idosos são fechados e não gostam de se relacionar. Para eles, aquela situação é temporária (especialmente para aqueles que não conseguem mais se situar no tempo/espaço). Acham que chegaram ontem e que vão embora amanhã”.

Mas mesmo os que não querem se relacionar são afetados pelo ambiente. Nos momentos em que há um paciente mais agitado, com um estado emocional diferente ou com dor, faz com que os outros idosos ao seu redor se sintam da mesma maneira.

Ainda de acordo com Iglesias: “os idosos pensam frequentemente na família e nas situações do cotidiano, como os horários das refeições e outras atividades da casa. No caso dos mais confusos, a preocupação é em tentar ir embora, se preocupam com a antiga moradia, se a conta está sendo paga, quem está cuidando, moradia que pode ter sido desfeita pelos filhos, dado a impossibilidade do idoso voltar a morar sozinho devido a suas condições de saúde”.

O passado é o mais importante para o idoso, mesmo pacientes com Alzheimer lembram com facilidade de várias histórias ao serem instigados. O mais difícil para eles é relembrar de fatos presentes. Uma senhora lúcida me falou que lembra com maior dificuldade de fatos presentes, mas para as histórias do passado, não lhe fogem detalhes.

Os idosos que tenho no Residencial não possuem muito fomento por histórias novas não, dado que sua rotina atual se resume a esperar visitas das famílias e sair ocasionalmente em passeios curtos. Por isso que propiciamos atividades de lazer e festas temáticas, para que eles tenham maior quantidade de momentos felizes nesse último estágio da vida deles.

Além dos idosos que moram no asilo, Kamkhagi cita problemas políticos: “as questões da aposentadoria: alguém que se dedicou por toda uma vida em um trabalho e no final tem que mendigar. Que país é este? Necessitamos sim de uma nova visão que reconheça e dê ao idoso possibilidades médicas e sociais, e isto é possível”.

Porém, distante de grandes ações públicas, há uma atitude possível: “os maiores desafios hoje são entender o idoso e respeitar seus direitos e desejos. O desejo existe e é essencial. Eu trabalho com vários grupos, e pude perceber o quanto ser ouvido e olhado pode representar um novo momento. Ou seja: o mundo me olha, portanto, existo”.

Sou do tamanho da minha carência

A frase acima é da escritora Clarice Lispector, e eu a coloco com o intuito de dizer: sou do tamanho do meu desejo. De acordo com Kamkhagi, “Desejar é uma condição importante neste processo de manutenção de vida. Eu penso que se as condições de saúde permitem é necessário poder concretizar algumas coisas”, diz ela, “A família tem uma grande parcela de responsabilidade seja no respeito e na forma como mostra as outras gerações (mais jovens) o que é ser idoso e qual o respeito devido”.

Iglesias comenta sobre a posição das famílias em relação aos internos do Residencial: “A maioria dos idosos recebe visita com frequência; alguns também costumam sair nos finais de semana e viajar, porém isso depende das condições de locomoção e também do trabalho que o idoso pode dar em um passeio ou viagem (como os que usam fraldas). Mas existem famílias que visitam raramente, em casos que o idoso não tem mais noção de tempo/espaço ou memória recente”.

Para Kamkhagi, “acredito que, se fosse feita uma política nas escolas e um trabalho nas famílias de reintegrar verdadeiramente aquelas pessoas que tiveram e tem uma história e um legado a deixar, esta também seria uma maneira de recuperarmos tesouros, que muitas vezes não nos damos conta. Acredito que para os jovens pode ser muito mais fácil quebrar algumas barreiras e tabus na convivência e aceitação de alguém que teve e ainda tem uma trajetória a ser vivida”.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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