Entre autores canônicos e mais jovens, falam Cesar Candiotto, Margareth Rago, Sueli Carneiro, Priscila Cupello e Thiago Ribas
No prefácio à Arqueologia do Saber, o filósofo Michel Foucault monta uma pequena peça, com dois personagens e um diálogo de dois lances. De um lado, uma voz que aglutina o mau humor dos seus críticos e que prefigura a resposta imaginada ao seu livro:
— Você não está seguro do que diz? Vai novamente mudar, deslocar-se em relação às questões que lhe são colocadas, dizer que as objeções não apontam realmente para o lugar em que você se pronuncia? Você se prepara para dizer, ainda uma vez, que você nunca foi aquilo que se critica? Você já arranja a saída que lhe permitirá, em seu próximo livro, ressurgir em outro lugar e zombar como o faz agora: não, não, eu não estou onde você me espreita, mas aqui de onde o observo rindo.
O adversário acusa Foucault de inconsistência, mais do que isso, de incoerência deliberada. Por meio de recuos e esquivas, se esconderia da crítica; não se pondo jamais na situação de admitir uma falta, agiria ademais com soberba. É Foucault ele mesmo quem retruca:
— Como?! Você pensa que eu teria tanta dificuldade e tanto prazer em escrever, que eu me teria obstinado nisso, cabeça baixa, se não preparasse – com as mãos um pouco febris – o labirinto onde me aventurar, deslocar meu propósito, abrir-lhe subterrâneos, enterrá-lo longe dele mesmo, encontrar-lhe desvios que resumem e deformam seu percurso, onde me perder e aparecer, finalmente, diante de olhos que não terei mais que encontrar? Vários, como eu sem dúvida, escrevem para não ter mais um rosto. Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil, ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever.
Contra a vontade de fixidez do seu oponente, Foucault faz um elogio do movimento. Se o outro lhe pede fidelidade a ideias prévias e o cultivo de uma identidade, o filósofo fala do pensamento como extravio e anuncia que escreve para deixar de ser quem é. Ali, a imputação do “erro”, cá, o desejo de errar pelos caminhos. Essa multiplicidade marca a sua recepção: há quiçá tantos foucaults quanto leitores de Foucault.
Veja também:
>> “A Biopolítica do Coronavírus: O Paradoxo da Herança Foucaultiana na França“, por Mathieu Arminjon e Régis Marion-Veyron
>> “Traduzindo A Vida Enigmática dos Signos, de Patrice Maniglier“, por Fábio Roberto Lucas e Fernando Scheibe
“Não me pergunta quem eu sou”, demanda Foucault. Nesta coletânea de depoimentos em homenagem aos 40 anos da sua morte – nascido em 1926, ele morreu em 1984 – questionamos cinco pesquisadores sobre qual é o seu Foucault. As respostas da historiadora Margareth Rago e dos filósofos Cesar Candiotto, Sueli Carneiro, Priscila Cupello e Thiago Ribas apresentam modos de contato com o autor e expõem facetas distintas da sua obra. O rol de entrevistados – que reúne nomes já “clássicos” nos estudos foucaultianos, Carneiro, Candiotto e Rago, e autores mais novos, Cupello e Ribas – exibe consonâncias e dissonâncias, demonstrando a fertilidade investigativa da obra do homenageado.
A rima dessas diferenças talvez indique onde Foucault foi se esconder dessa vez.
Margareth Rago: Meu Foucault, entre a história e a liberdade
Foucault chegou na minha vida nos anos de 1970, quando já formada em História pela USP, em 1970, ingressei na segunda graduação, agora em Filosofia…Era o ano de 1976, aliás, o último momento em que ele visitaria o Brasil, mas não a região sudeste. A reação foi de estranhamento, claro! Que estranho pensador era esse francês que vinha com um espelho, forçando-nos a nos olharmos, numa época em que acreditávamos que deveríamos olhar para o alto e para o distante, “esquecer de si mesmos”, visando realizar o projeto revolucionário e a transformação radical da sociedade capitalista! Obviamente, nesse momento, não se falava ainda em subjetividade e a psicanálise e psiquiatria também não haviam sido amplamente conhecidas e aceitas.
Para esse filósofo francês, a filosofia deve “tornar visível o que é visível” e certamente essa afirmação causou um espanto profundo. O discurso não era mais pensado como “reflexo da realidade”, e nós havíamos sido formados/as pelo pensamento crítico do período, o marxismo, entre G. Lukács e L. Althusser. As palavras, as narrativas não revelam as coisas, apontou Foucault; ao contrário, produzem as realidades de que falam… O poder deixou de ser visto como coisa e passou a ser pensado como relação que nos constitui num jogo constante entre poder e resistência. Esse vocabulário tão diferenciado que apontava para a “microfísica do poder” estava sendo esboçado em suas pesquisas inovadoras, que não enxergava apenas o poder institucional. Aos poucos, Foucault foi criando seus operadores conceituais como biopoder, biopolítica, tanatopolítica, governamentalidade, e, atentando para outros momentos de nossa própria tradição, destacou as práticas da liberdade, a atitude crítica, as contracondutas… Os volumes II e III da História da Sexualidade são reveladores!
Levou muito tempo para entender do que se tratava, mas hoje, podemos dizer que a ideia de um “dispositivo da sexualidade” produzindo os corpos e as identidades que nos conformam foi impactante, especialmente para as mulheres, mas não só, sempre vistas a partir da dimensão sexual e corporal, especialmente em nosso país, considerado o Paraíso Tropical. Na Grécia antiga, por exemplo, a relação entre dois homens não era definida e patologizada como homossexualidade, alertava Foucault, e aliás nem sequer existia a partilha hierarquizante entre hetero e homossexualidade, normal e anormal, criada no século XIX.
Como historiadora, Foucault marcou e tem marcado fundamentalmente minha produção: no mestrado, estudei a formação da cidade disciplinar e a resistência anarquista, pensando na São Paulo que emergia como uma cidade moderna, industrializada, com teatros, cinemas e cabarés, além das fábricas. E assim publiquei Do Cabaré ao Lar. A utopia da cidae disciplinar e a resistência anarquista, 1890-1930.
No doutorado, estudei a história da prostituição em São Paulo, também nesse período, e descobri aos poucos que eram os médicos e juristas as principais fontes documentais sobre o tema! O resultado é o livro Os prazeres da noite. Prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo, 1890-19030. Nesse trabalho, mostro o movimento de construção e difusão do ideal da “rainha do lar”, assexuada, em oposição à figura da “degenerada-nata”, logo, prostituta, segundo o criminologista Cesare Lombroso, nome de rua em São Paulo, desde 1957. O processo de higienização da cidade, realizado pelas autoridades políticas e médicas, norteadas pela teoria da degenerescência, criada no século XIX, que Foucault apresenta na História da Sexualidade I. A vontade de saber (1976) foi se esclarecendo… e também fica claro que hoje são outros os grupos marginalizados e estigmatizados…
Vale destacar que Foucault trouxe uma outra concepção de história, não mais vista como linha de continuidade marcada pelo progresso, legitimando a dominação dos poderosos e a exclusão dos pobres, marginalizados, a partir de referências racistas, sexistas, androcêntricas, como sabemos melhor atualmente. Foucault trazia a noção de “genealogia da história”, ou de “história genealógica”, uma concepção que apontava para as descontinuidades históricas e não apenas para as continuidades, abrindo espaço para inúmeros temas antes naturalizados, e portanto sem história.
Assim, passamos a fazer a história dos corpos, das mulheres, da sexualidade, das crianças, dos quartos, das emoções, dos sentimentos e até mesmo do cheiro, como nos apresenta Alain Corbin em Saberes e Odores. A desnaturalização que a concepção de história genealógica traz, mostrando que relações de saber-poder marcam as práticas, experiências, referências, formas de pensar e agir, permitiu desnaturalizar dimensões antes não historicizáveis, afinal, o que é natural não tem história, sempre foi e sempre será. Por isso mesmo, o famoso historiador Paul Veyne afirmou: “Foucault revoluciona a História”, e entendo também por aí que aquilo que tem história nasceu em algum momento e, portanto, pode acabar, desaparecer, morrer. Não é destino, nem necessidade inscrita na ordem natural do mundo, como então se afirmava. Se a prisão nasceu em determinado momento histórico, como lemos em Vigiar e Punir, ela pode deixar de existir, afinal, podemos “pensar diferentemente”, criar outros modos de vida, outras formas de existência mais dignas, libertárias, comunitárias, solidárias e filóginas. Aliás, filoginia é o oposto de misoginia, indica o amor às mulheres e à cultura feminina e me pergunto porque só conhecemos o que é o ódio ao feminino, a misoginia. Afinal, como mostra Foucault, é preciso ter conceitos para enxergar as práticas, e assim “tornar visível o que é visível.” Não vivemos apenas no negativo, não?
Finalizando, trago essa frase de Foucault que me acompanha: “É que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar.”
Sueli Carneiro: Ferramentas em defesa dos que sofrem
O impacto produzido em mim pelos volumes da História da Sexualidade de Michel Foucault durante um curso ministrado pelo professor José Augusto Guilhon Albuquerque nos idos de 1984 foi tão intenso que resultou num esboço de aplicação da noção de dispositivo às relações raciais no Brasil apresentado como trabalho de conclusão desse curso na forma de um fluxograma dos elementos constitutivos de um dispositivo e que eu iria desenvolver como tese de doutorado quase duas décadas depois.
A hipótese desta tese era: é possível tomar a racialidade como um dispositivo de poder tal como concebido por Foucault para o caso da sexualidade? Nisso consistiu o exercício especulativo que realizei mediante aplicação das noções de dispositivo, resistência e biopoder de Foucault ao domínio da racialidade estabelecendo a genealogia desse dispositivo, os saberes que o suportam e retroalimentam e as subjetivas que ele produz. Assim pude cunhar o dispositivo de racialidade como um domínio que organiza as relações rciais no Brasil usando a caixa de ferramentas foucaultiana com a liberdade que ele autorizou preferencialmente em defesa dos que sofrem.
Cesar Candiotto: Como se formam, lutam e se transformam os sujeitos
Desde que comecei a ler Michel Foucault, me interessaram os diversos extratos dos diferentes momentos de sua investigação. Contudo, o escrito que mais me chamou a atenção, inicialmente, foi As palavras e as coisas, pelo estilo barroco, pela abertura da filosofia a outros saberes e, especialmente pela hipótese da arqueologia do saber. Evidentemente que este livro faz parte de uma trajetória de refinamento do método, mas, como nenhum outro, foi objeto de diversas análises e críticas que atravessam o estruturalismo, o marxismo e a fenomenologia nos anos 1960 na França. Fui muito impactado também pelos Dits et écrits, especialmente artigos e conferências de Foucault que precederam e seguiram a publicação de seus livros. Dentre eles, o mais marcante para mim foram as cinco conferências oferecidas na PUC-Rio, em maio de 1973, A verdade e as formas jurídicas. Ele é uma síntese de ao menos dois cursos dados no Collège de France, no início dos anos 1970, assim como antecipa teses desenvolvidas em 1975, no livro Vigiar e punir. Quando fui fazer meu estágio doutoral na França, há 20 anos, minha atenção voltou-se fortemente para os cursos de Foucault sobre a governamentalidade e os processos de subjetivação. Havia sido recém publicado o curso de 1982, A hermenêutica do sujeito, sendo que após sua leitura passei a ouvir as fitas-cassete da série de cursos, de 1978 a 1984. Inclusive, acabei alterando o escopo de minha tese por conta desta experiência de “audição” das aulas. Pretendia defender uma tese sobre a crítica da verdade em Michel Foucault. Permanecer somente na arqueologia, como inicialmente havia projetado, pareceu-me insuficiente. A escuta desta série de cursos também mudou minha percepção do assim chamado “último Foucault”, normalmente conhecido somente pelos volumes II e III da História da sexualidade. Este périplo para o mundo grecorromano era muito mais amplo que a história da sexualidade. Tratava-se de uma genealogia dos processos de subjetivação no Ocidente, com ênfase na relação com os regimes de verdade e o dizer-verdadeiro (parresía). Dentre os vários resultados destas leituras, destaco meu livro, Foucault e a crítica da verdade (2010). Algo marcante é a relação que Foucault propõe entre filosofia e espiritualidade, ressoando trabalhos de Pierre Hadot, mas também a ideia de espiritualidade política, nos artigos sobre o Irã no final dos anos 1970. Foucault aponta a presença de uma espiritualidade entre os processos revolucionários que não remete diretamente a uma confissão religiosa, mas que comunga da vontade coletiva de transformar o mundo e as práticas institucionais, de deixar de obedecer da mesma maneira que se obedece. A crítica do excesso de obediência política está no centro da relação entre governamentalidade e atitude crítica, algo que, a meu ver, permeia a relação entre luta política e sua relação com o trabalho intelectual do diagnóstico do presente. No livro, A dignidade da luta política: incursões pela Filosofia de Michel Foucault (2020) tentei mostrar como Foucault valoriza as diferentes formas de luta políticas não a partir de uma única matriz referencial – como é o caso da luta de classes, para o marxismo – mas pelo que elas são em si mesmas, ou seja, ao mesmo tempo um processo que busca transformar o mundo em que vivemos e também a experiência de transformação de nós mesmos. As diferentes formas de luta têm uma certa “dignidade”, sempre que freiam a tendência do exercício do poder em se transformar em estado de dominação. Finalmente, tenho procurado avaliar o alcance das principais hipóteses de Foucault para o diagnóstico de problemáticas cujas marcas ainda constituem nosso presente, tais como a relação entre neoliberalismo, democracia e constituição do sujeito.
Priscila Cupello: A recusa daquilo que fizeram de nós
O meu Foucault é o da “coragem da verdade”, do “diagnóstico do presente” e das ontologias críticas de nós mesmos. O Foucault que me interessa é aquele que questiona porque as coisas são como são e os porquês de cada época histórica se configurar de uma determinada maneira e não de outra. O meu Foucault é o que critica as relações de saberes-poderes e problematiza como o saber-poder vai organizando os corpos na sociedade a fim de beneficiar uns e excluir outros, ou seja, para alguns governa-se para a promoção da vida e para outros na gestão da morte individual e/ou coletiva. Foucault nos chama atenção para a forma como a população é governada por meio do recorte do “fazer viver”, “deixar viver” e no racismo de Estado que “faz morrer”. Pensar com a perspectiva foucaultiana é analisar a história dos acontecimentos e nas emergências de configurações específicas de saberes-poderes, para que possamos pensar em modos de resistência, que consiste na recusa daquilo que fizeram de nós, a fim de nos constituirmos de modos outros.
Thiago Ribas: A inquietação sobre o nosso modo de viver
O Foucault que mais me interessa é o que faz da filosofia um modo de invenção de nós mesmos pelo questionamento do presente. Algo que é realizado de 1961, com História da loucura, até o final de sua vida. No seu último curso no Collège de France, intitulado A coragem da verdade, Foucault mostra como o cinismo antigo toma como tarefa justamente o exercício de uma vida verdadeira ao tornar manifestas as falsidades das vidas governadas por convenções sociais irrefletidas que nos aprisionam com demandas ilusórias. O diagnóstico histórico-filosófico de nós mesmos, entendido como a interrogação sobre como podemos pensar e viver diferentemente do que pensamos e vivemos é a tarefa que Foucault acredita ser a tarefa essencial da filosofia desde Nietzsche. Assim, sendo o diagnóstico uma tarefa sempre renovada de transvaloração dos valores, o Foucault que me interessa nos leva à inquietação sobre como podemos viver sem nos deixarmos ser capturados pelos dispositivos e racionalidades que limitam nossa existência em sistemas verdade-poder-subjetivação que mascaram suas contingências históricas. O Foucault que me interessa é, então, uma ferramenta valiosa para não sermos tão governados por dispositivos normalizadores, por humanismos redentores ou por racionalidades neoliberais. É o Foucault da crítica como arte de não ser tão governado em nome de determinados valores e princípios. O Foucault que nos mostra que, apesar de sermos atravessados em nosso ser histórico por condições de existência, quando levamos a cabo o trabalho da crítica histórica de nós mesmo podemos questionar o presente sobre seus regimes de verdade, de poder e de construção das nossas subjetividades. Suscitando a inquietação com o que fazemos de nós mesmos, acredito que Foucault nos interessa principalmente enquanto inspiração para invenção de vidas singulares e capazes de uma busca permanente por formas belas e verdadeiras de modular a existência na relação consigo, com os outros e com o mundo.